Dia do Índio V

Sem emprego formal, comércio de artesanato traz sustento na cidade

A Associação das Mulheres do Alto Rio Negro (Amarn) existe desde 1984 e, com o artesanato, conseguiu tirar do isolamento mulheres que foram trazidas para Manaus como empregadas domésticas, sem conhecidos na cidade, sem direito a folgas e, por vezes, sem direito a salários
Texto e fotos de Priscila D. de Carvalho
 24/04/2007
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Em Campo Grande, os quiosques onde os Terena vendem frutas, legumes e cerâmicas não são novidade: estão há 17 anos no centro da cidade e têm freguesia cativa. Os Guarani podem ser vistos, rodeado por suas crianças, perto da estação de metrô Anhangabaú, em São Paulo, vendendo algum artesanato. Os Guarani também estão no centro de Porto Alegre. Na praça dos Andradas, na capital gaúcha, estão as barracas de artesanato dos Kaingang, das mesmas famílias que expõem na feira do Parque Farroupilha, tradicional local de passeio aos domingos. Os momentos em que os povos indígenas ficam mais visíveis nas grandes cidades são aqueles em que participam do comércio de artesanato.

A estratégia de sustentação não é nova. A Associação das Mulheres do Alto Rio Negro (Amarn) existe desde 1984 e, com o artesanato, conseguiu tirar do isolamento mulheres que foram trazidas para Manaus como empregadas domésticas, sem conhecidos na cidade, sem direito a folgas e, por vezes, sem direito a salários. "Traziam das aldeias, mas depois diziam que não tinham que pagar porque os índios não conhecem dinheiro. Davam só roupa usada. Quem trabalhava como doméstica não podia ir para canto nenhum", relembra Lucimeire Wanano. "A maioria das meninas veio como empregadas domésticas. As mais velhas foram trazidas pelas irmãs Salesianas. Na aldeia, a sobrevivência já era difícil, as famílias não tinham como ganhar dinheiro para se manter, responder às necessidades novas, comprar vestimentas. Então, elas se envolviam com irmãs para vir para a cidade nos anos 80. Nos anos 90, as meninas já vinham por conta própria", explica Lucia Sarmento, atual presidente da associação.

A Amarn surgiu como um espaço de encontro, para que as mulheres pudessem se encontrar, falar seus idiomas e se fortalecer contra o preconceito que enfrentavam na cidade. Primeira associação indígena na cidade de Manaus, a Amarn foi criada com apoio de uma antropóloga, Janet Chernela, que conhecia a realidade das migrantes desde que tinha trabalhado na região do Rio Negro. Os primeiros encontros aconteciam nos finais de semana. "Foi um dos primeiros espaços, na cidade, onde elas podiam ser elas mesmas", avalia Rosa Helena Dias da Silva, doutora da Universidade Federal do Amazonas. Logo, as mulheres encarregadas da coordenação passaram também a participar de encontros, fóruns de articulações políticas. O grupo contribuiu para a criação de outras entidades indígenas, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileria (Coiab), a mais abrangente entidade indígena do país.

O trabalho com artesanato começou em 1987, com o objetivo de trazer alternativas de sobrevivência para as mulheres que já viviam na cidade. Com o tempo, a comercialização dos produtos ganhou escala – um dos clientes grandes é a estatal Petrobras – e a associação mantém barracas na central de artesanato, na Praça Clementino Aranha e na Praça da Saudade. "A associação, as mulheres que se uniram, lutaram junto, foi muito importante para vencermos a discriminação. Foi graças ao movimento que isso mudou", avalia Irenice Dessano, sem tirar os olhos da cesta que tece.

Porém, desde o final dos anos 90, a Amarn vem enfrentando dificuldades. Dívidas de administrações anteriores e gastos com advogados em ações trabalhistas consomem grande parte dos recursos divididos entre as 80 artesãs associadas, relata Lucia, sem esconder o desânimo. "Muita gente hoje faz trabalho individual, particular. Está ruim de dinheiro e, só vendendo artesanato, n&atilde
;o dá pra manter os pagamentos. Como temos dívidas, é mais difícil conseguir projetos de organizações internacionais [que garantem o pagamento do aluguel e dos gastos de manutenção da Amarn]", conta a coordenadora.

Apoio governamental
Em Porto Alegre, a presença nas feiras da Praça dos Andradas, durante a semana, e no Parque Farroupilha, aos domingos, conta com autorização pública. Na capital gaúcha, a venda de artesanato. A história de Dona Irundina Vergueiro, da aldeia do Morro do Osso, mostra o caminho trilhado pelos indígenas. Depois de perder a lavoura em Nonoai dois anos seguidos, ela resolveu migrar. "Pra pagar o prejuízo, vendemos tudo: porco, vaca de leite. Aí eu disse pro meu marido: sabe, eu vou fazer artesanato pra vender, pra comprar o que comer e comprar calçado pras crianças. Elas estudavam no colégio, mas iam descalças, na geada. Aí, viemos para Porto Alegre."

Uma estrutura simples de três quiosques cobertos de palha, ao lado do Mercado Municipal, gera renda para até 90 famílias Terena no centro de Campo Grande. Quem trabalha ali ou mora na cidade – nas aldeias urbanas de Marçal de Souza, Água Bonita e Jardim Noroeste – ou vai para as aldeias a cada 15 dias, segundo Jurandir Ximenes, presidente da Associação de Feirantes Indígenas. A prefeitura entra com água e luz para os quiosques, a Fundação Nacional do Índio (Funai) entra com a casa onde dormem os que vêm de fora. As famílias abastecem a cidade com manga, pequi, milho verde, feijão, mandioca e guariroba, entre outros alimentos. Eles levam de volta para a aldeia óleo, pão e arroz.

Também em Manaus a administração municipal promove a feira Pú Kaa – Mãos da Mata desde fevereiro de 2006. O evento mensal na Praça Saudade reúne 17 barracas de artesanato e 12 de comidas típicas, mantidas por cerca de 90 indígenas de 18 povos. A feira chegou a abrigar apresentações de grupos de teatro e dança indígenas nas primeiras edições, que depois foram canceladas por dificuldades no pagamento (entre elas a necessidade de notas fiscais). "Optamos por uma coisa simples, mantendo o foco de gerar trabalho e renda. Tínhamos as barracas, começamos a conversar com os indígenas em janeiro e a feira começou em fevereiro. A programação é toda feita por eles", explica Jefferson Praia, secretário municipal de Desenvolvimento Econômico Local (Semdel) da capital amazonense. "Temos que ver o nosso olhar e o olhar dos índios. Para o poder público municipal, o custo é reduzidíssimo. As barracas são usadas em outros eventos, funcionários trabalham também em outras feiras da cidade. E temos o apoio de outras secretarias e entidades. A Funai contribuiu com alimentação na primeira feira e depois parou. Pelo ângulo dos índios, a percepção é que hoje com a feira se pode ter renda", avalia.

"Vendendo bem, dá pra tirar de R$ 100 a R$ 150 por mês", calcula Marilda Tukano, que expõe na feira. O cálculo é semelhante ao dos números apresentados pela Semdel, de um faturamento médio total de R$ 14 mil por mês. De acordo com Maria, a renda não garante todo o sustento do mês, mas é suficiente para a compra de roupa e comida para os irmãos que estudam.

Sem esconder a origem
Os povos que vivem nas cidades podem, por meio desta atividade econômica, efetivamente se apresentar como indígenas, e até agregar valor a sua produção pela origem étnica. Diferentemente daqueles que escondem sua origem durante o expediente de trabalho, como fazem muitos dos que migraram no Nordeste para São Paulo e são empregados como pedreiros, jardineiros, empregadas domésticas, etc. A Kaingang Irene Xarim migrou da terra Icatu, em Bauru, no interior, para a capital paulista, e criou três filhos trabalhando como doméstica em casas de família, sem contar sobre sua origem. "Nunca neguei de onde vim, mas não falava sobre isso, não".

Também optavam pelo silêncio os indígenas que trabalhavam nas indústrias da Zona Franca de Manaus, antes das mudanças tecnológicas e de produção dos anos 90, quando as fábricas passaram a cobrar maior qualificação dos operários. "Eles começaram a exigir o segundo grau, e eu não tinha estudo. Com a tecnologia, a mudança, precisa de muito estudo. Agora, eu vivo de [vender] Din Din [suco de frutas congelado em saquinhos plásticos]. Continuei aqui porque quero que meus filhos estudem", conta Osmar Apurinã, que mora no Distrito Industrial de Manaus – em barraco de madeira, sem água encanada.

* O projeto que deu origem a este trabalho foi ganhador das Bolsas AVINA de Investigação Jornalística. A Fundação AVINA não assume responsabilidade pelos conceitos, opiniões e outros aspectos de seu conteúdo

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