Indígenas

Comissão privilegia Estatuto e enfraquece projeto de mineração

A discussão integral do Estatuto dos Povos Indígenas - e não apenas o projeto isolado sobre mineração - consiste na prova de fogo da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), que se reúne pela segunda vez em Brasília
Por Maurício Hashizume
 12/07/2007

Líderes indígenas não estão dispostos a abrir mão da discussão mais ampla do Estatuto do Índio, pendente desde a Constituição de 1988, em nome da regulamentação isolada da mineração em Terras Indígenas (TIs). A decisão pela retomada do debate inconcluso do Estatuto deve ser confirmada na segunda reunião da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), instância ligada ao Ministério da Justiça que reúne membros do governo e da sociedade civil, incluindo representantes de organizações indígenas e entidades indigenistas. Desde segunda-feira (9), índios que participam da Comissão estão reunidos em Brasília para definir posições que serão apresentadas na reunião extraordinária desta quinta-feira (12).

Para Jecinaldo Cabral, do povo Sateré-Mawé e membro da direção da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o Estatuto é fundamental para "nortear toda política indigenista". "Discussões isoladas enfraquecem o movimento indígena e favorecem os interesses do poder econômico", argumenta Jecinaldo. Na primeira reunião do CNPI realizada no início de junho, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira, apresentou um anteprojeto sobre mineração em TIs elaborado pelo governo federal, que ainda não foi apresentado ao Congresso Nacional. A minuta foi prontamente submetida à Subcomissão Legislativa, uma das mais importantes entre os nove agrupamentos internos da CNPI, que dedica espaço especial para o Estatuto dos Povos Indígenas.

A fixação de uma porcentagem mínima de apenas 3% do faturamento bruto obtido com a atividade mineradora para as populações indígenas foi um dos pontos do anteprojeto que mais sofreu críticas. "As terras são da União, mas na prática somos nós que zelamos pela Amazônia. Não achamos justa essa imposição de uma cota tão pequena. A Funai pode intermediar as negociações, mas a decisão precisa ser dos povos", coloca o coordenador da Coiab. Na I Conferência Nacional dos Povos Indígenas, realizada em 2006, a necessidade de regulamentar a mineração chegou a ser colocada na mesa pela Funai, mas não foi recebida com muito entusiasmo pelos participantes. As TIs somam um total de 110 milhões de hectares (13% do território nacional) e correspondem a cerca de 25% da área denominada como Amazônia Legal.

A regulamentação definitiva da relação do Estado com os povos indígenas ocupa o cerne do desafio colocado pelos índios ao poder público quando da retomada do Estatuto do Índio. "Estamos diante de uma oportunidade única de dar espaço para que a política indigenista seja construída a partir das aldeias", observa o líder indígena de uma das mais importantes organizações indígenas do país. Jecinaldo realça que a questão da tutela (proteção especial do Estado aos povos indígenas, presente no Estatuto do Índio aprovado em 1973) sempre esteve muito vinculada a conceitos de quem é de fora das comunidades. É preciso, segundo ele, dar esse passo definitivo para a superação do assistencialismo e do paternalismo, prossegue o indígena. "Existe uma diversidade enorme entre cada povo. Os níveis de contato [com não-índios] são muito distintos. Queremos buscar uma linha geral que garanta os direitos à proteção física, cultural e territorial de todos", anuncia. "O movimento indígena já tem maturidade para discutir a relação com o Estado por conta própria. Somos plenamente capazes de decidir o nosso futuro".

Dentro dessa concepção sustentada pelos representantes indígenas da CNPI, a mineração se insere apenas como mais um item do capítulo sobre gestão dos recursos naturais e sustentabilidade. "Não queremos ficar apenas com buracos na terra e epidemias de malária. Esses erros já foram cometidos no passado. O Estatuto pode estabelecer uma nova referência e ajudar a reparar erros históricos de violação dos direitos indígenas", adiciona Jecinaldo. A liderança conta com o apoio da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas e pede a instalação de uma comissão especial na Câmara dos Deputados para discutir todo o Estatuto (aglutinado no PL nº 2.057/91), e não apenas propostas que se resumem à mineração, como defendem as empresas do setor, que apresentaram as suas reivindicações em reunião recente com o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP). "Não vamos aceitar uma discussão fragmentada. E trabalharemos pelo envolvimento do conjunto dos povos e da sociedade como um todo", antecipa Jecinaldo.

O próprio setor empresarial concorda que a ausência de uma regulamentação sobre a autonomia dos povos é um fator complicador para o pleito de exploração dos recursos existentes em TIs. Para o diretor de Assuntos Ambientais do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Rinaldo Mancin, o Estatuto contém uma gama de temas complexos e exige uma negociação de fôlego, haja vista que a matéria não foi aprovada nos quase 20 anos que se passaram desde a Assembléia Constituinte. O diretor do Instituto – que representa 160 grandes empresas da área de mineração como a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), o Grupo Votorantim e a Anglo American, gigante britânica da mineração – não menospreza o mérito da discussão mais ampla, até porque tem interesse na definição de modelos de cooperação entre a iniciativa privada, o Estado e os povos indígenas: seja na forma de fundos, como propõe o anteprojeto do governo, seja na formação de joint ventures (parcerias entre empresas), como ocorre em outros países como o Canadá. No entanto, o instituto prefere a definição legal específica da mineração para viabilizar a atração de investidores e aproveitar o quadro favorável de valorização de minérios no mercado internacional.

Em defesa do projeto em separado de mineração em TIs, o Ibram destaca que a atividade mineradora tem impacto social e ambiental localizado. Alega ainda que as empresas do setor movimentam 10,5% do Produto Interno Bruto (PIB) e apresentam políticas consistentes de gestão ambiental e responsabilidade social. "São transnacionais no mundo globalizado. Qualquer deslize terá reflexo nas ações dessas empresas na Bolsa de Valores", salienta o diretor do Ibram, sem esquecer de citar o potencial de exploração dos recursos minerais, já que o mapeamento geológico realizado compreende apenas 18% do território nacional. "A mineração não é pecuária nem soja", compara Rinaldo. Na avaliação dele, a pre
sença em regiões isoladas de líderes da mineração mundial comprometidos com o desenvolvimento sustentável poderá até ajudar a preservar territórios sob pressão econômica e conter o avanço da fronteira agrícola. "A inteligência ambiental migrou do setor público para o privado nos últimos 20 anos. Há empresas com mais de 200 funcionários só para cuidar dessa área. Ninguém fará nada sem consentimento dos povos indígenas", promete.

Esquizofrenia legislativa e Convenção 169 da OIT
A apreciação de um projeto específico sobre mineração pode dar margem para que outros setores (manejo florestal, uso de recursos hídricos e agricultura, por exemplo) também apresentem propostas voltadas à exploração de TIs, de acordo com o assessor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Raul Silva Telles do Valle. O risco de segmentação e a incoerência podem provocar uma "esquizofrenia legislativa", como define Raul. "O debate da mineração dentro do Estatuto dos Povos Indígenas, como vem sendo realizado na Comissão Nacional de Política Indigenista contribui para que não haja esse descompasso".

Além da tutela, outros aspectos importantes como a questão penal carecem de regulamentação. "Hoje, um índio que é preso e não conhece a Língua Portuguesa não tem direito a um intérprete", relata Raul. "O governo federal precisa bancar essa discussão por inteiro. Os povos indígenas são uma minoria numérica e tem pouca influência político-econômica no Congresso", coloca o advogado do ISA. Decorre daí a aposta das organizações indígenas e de representantes de entidades indigenistas nas resoluções da CNPI, mesmo sabendo que há setores dentro do próprio governo que estão aliados aos interesses da indústria da mineração. "A conjuntura nunca será favorável aos indígenas. Pelo menos esperamos contar com parte do governo do nosso lado", emenda o assessor do ISA.

Porta-vozes do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), ligado ao Ministério de Minas e Energia (MME), tem apresentado o anteprojeto do governo, que contou notadamente com a colaboração de autoridades militares e da Casa Civil para ser elaborado, em eventos públicos como uma alternativa concreta ao garimpo ilegal. A ocorrência do conflito na Terra Indígena Roosevelt, em Rondônia, que resultou na morte de 29 garimpeiros no ano de 2004 contribuiu para trazer novamente a polêmica à tona. O Ministério da Justiça até estimou em US$ 3,5 milhões a projeção de arrecadação governamental anual caso a exploração de diamantes na terra do povo Cinta-Larga fosse legalizada. Dados da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), estatal ligada ao Executivo federal, apontam a existência de indícios de ocorrências de recursos minerais em 14 TIs – localizadas no Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia e Pará – e de 192 focos de exploração não-autorizada.

Desde a Constituinte, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) segue uma tese política apresentada pelo então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Luciano Mendes de Almeida, falecido no ano passado, quando se trata de mineração em terras indígenas. Segundo as palavras que Dom Luciano proferiu no processo de elaboração do texto constitucional em vigor, a exploração só deve ser autorizada pelo poder público como uma alternativa extrema em caso de escassez de minérios estratégicos para o interesse público nacional.

Segundo Paulo Machado Guimarães, assessor jurídico do Cimi, o anteprojeto do governo traz alguns avanços com relação ao projeto anterior de autoria do senador Romero Jucá (PL 1.610/96), hoje líder do governo no Senado, mas ainda não é compatível com a Constituição. Apenas três direitos dos povos indígenas estão garantidos no texto: pagamento de royalties, indenização e participação nos lucros. "Todos eles pecuniários, na base do dinheiro", descreve. A divisão das receitas proposta aglutina contestações. Metade dos recursos reservados aos indígenas seria enviada a um conselho gestor local – que pode ou não ter índios – e a outra metade iria para o Fundo de Compartilhamento de Receitas sobre Mineração em Terras Indígenas, criado para atender populações indígenas carentes. "O recurso pode nem ser aproveitado pelos próprios povos afetados pela atividade de mineração", completa o advogado do Cimi.

A ausência de restrições para a área de servidão – superfície do terreno utilizada para lavra, beneficiamento e infra-estrutura operacional (pátio de manobra, escritório, estoque, oficina, etc.) do projeto de mineração – no anteprojeto governamental também é alvo de reprimenda. Concedida antes da promulgação da Constituição de 1988, a única exploração legal em terra indígena se localiza no município de Presidente Figueiredo (AM), a cerca de 250 km de Manaus, e possui uma larga faixa de servidão, ocupada por equipamentos e construções para o exercício da atividade. Lá, a empresa Paranapanema mantém a Mineração Taboca, que explora cassiterita na área tradicional do povo Waimiri Atroari. Na visão de Paulo Guimarães, seria importante estabelecer critérios para garantir uma distância mínima entre o ponto de escavação e as aldeias. Pesquisa do ISA detectou 317 mineradoras interessadas na exploração mineral em 123 TIs. Entre pedidos de prospecção e de lavra, há 1.839 anteriores e 2.982 posteriores à Constituição de 1988.

No bojo da discussão sobre a mineração e o Estatuto dos Povos Indígenas, as organizações indígenas e indigenistas defendem a aplicação do conceito da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo governo brasileiro, que prevê a participação de representantes indígenas na tomada de todas as decisões que guardam vínculos com os povos. O espaço adequado para essa consulta seria o Parlamento, que deveria recolher informações e documentos produzidos para a viabilização de cada projeto econômico que envolve indígenas – inclusive os Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) – e consultar devidamente os povos impactados. Dessa forma, os índios teriam condições de avaliar tudo o que está em jogo para decidir se sim ou não. Grande parte da falta de sintonia entre o ímpeto empresarial e as exigências dos índios, reflete Raul do Valle, do ISA, se dá por causa de um "choque entre visões de mundo", entre a lógica da acumulação do mercado e do mundo corporativo com o modo de vida indígena. "Eles estão interessa
dos apenas na reprodução da vida e da cultura dos seus povos".

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