Concluído o voto do ministro Joaquim Barbosa – que assegurava a maioria de seis votos favoráveis, sem nenhuma manifestação contrária ao seu relatório -, Carlos Ayres Britto não se conteve. Desatou a dizer que o posicionamento majoritário dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF) de manter a demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, colocava o Brasil em posição de "vanguarda", confirmando a "vertente constitucional" que trata a questão indígena "com contemporaneidade e com toda fuga de preconceitos e discriminação".
Carlos Ayres Britto classificou a posição da corte suprema como "mais sonoro e rotundo não ao etnocídio", que "extermina o espírito" e promove a "eliminação progressiva dos elementos de cada cultura [povo originário]". "A partir de nossa decisão, o Brasil vai se olhar no espelho da história e não mais vai corar de vergonha. O Brasil, agora, com esta decisão, resgata a sua dignidade, tratando os índios brasileiros como nossos irmãos queridos", comemorou.
A confirmação na Justiça do perímetro homologado pelo decreto presidencial de 2005 sobre a Raposa Serra do Sol, na visão do relator da matéria, emite um sinal do tratamento dos índios "como irmãos queridos". Lembrando o educador Paulo Freire, o ministro reproduziu: "Não há saber maior nem maior; há saberes diferentes". Frisou ainda que a postura favorável aos direitos dos indígenas estava sendo tomada num dia consagrado: nesta quarta-feira (10), a Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 60 anos.
A esperada decisão acerca da Terra Indígena (TI) de Roraima, avaliou Carlos Ayres Britto, avança no sentido da "democracia racial no melhor sentido", no "mais depurado humanismo", tal qual a sexagenária carta internacional. "Estamos desfazendo um preconceito multissecular", adicionou o entusiasmado membro do STF, antes de louvar o passo dado pelo ente maior do Poder Judiciário para um país mais "civilizado", "fraterno" e "pluralista".
População de 19 mil índios de 5 povos vive na Raposa Serra do Sol (Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr) |
Apesar do discurso do relator, o julgamento da petição (PET 3388) que contesta a demarcação em área contínua da Raposa Serra do Sol, apresentada pelos senadores Augusto Botelho (PT) e Mozarildo Cavalcanti (PTB), ambos de Roraima, ainda não foi concluído. O ministro Marco Aurélio Mello pediu vistas tanto do pedido de cassação de liminar como do julgamento do mérito do processo, que terá seu desfecho apenas em 2009. A cassação da liminar, concedida em abril deste ano pelo próprio STF, implicaria na retirada imediata dos fazendeiros que ainda estão no interior da TI.
A suspensão do julgamento pelo presidente do STF, Gilmar Mendes, na prática, apenas adia a decisão – até agora unânime, com a concordância de oito dos 11 ministros e ministras – de manter a demarcação em área contínua. Ainda não se pronunciaram Marco Aurélio Mello – que pedira vistas logo após a apresentação do voto de Carlos Alberto Menezes Direito, que acabou se tornando referência no julgamento, antes da manifestação de Carmen Lúcia Tavares, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Pelluzo e Ellen Gracie -, Celso de Mello e o próprio Gilmar Mendes. Na teoria, quem já se pronunciou pode mudar o seu voto quando o julgamento for retomado, mas é muito difícil que haja uma reviravolta após o anúncio público dos votos.
Fator "Direito"
Interrompido em agosto passado logo após o pronunciamento favorável à demarcação em área contínua por parte do relator Carlos Ayres Britto, o julgamento do caso Raposa Serra do Sol acabou sendo influenciado, em grande medida, pelo voto do ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Ele anunciou um parecer parcialmente favorável ao voto do relator em que estabeleceu um conjunto de 18 condições para a confirmação da área integral de 1,67 milhão de hectares, nas divisas com a Venezuela e a Guiana, para os 19 mil índios dos povos Macuxi, Wapixana, Ingaricó, Taurepang e Patamona.
Entre as condições apresentadas por Carlos Alberto Menezes Direito, estão: o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos sempre que houver o interesse público da União; a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, bem como a pesquisa e a lavra de recursos naturais, mediante autorização do Congresso Nacional; o condicionamento do usufruto da área pelos índios ao interesse da Política de Defesa Nacional (e aos órgãos competentes, Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), independentemente de autorização da Fundação Nacional do Índio (Funai); o não impedimento da instalação pelo governo federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, especialmente os de saúde e de educação; a responsabilização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade como entidade responsável pela gestão do Parque Nacional Monte Roraima, que ocupa cerca de 6% da área da Raposa Serra do Sol (confira lista completa de condições).
Depois que o colegiado decidiu dar seqüência ao julgamento – mesmo diante do pedido de vistas de Marco Aurélio Mello -, Carmen Lúcia confirmou não ter detectado ilegalidade nem inconstitucionalidade na demarcação contínua da Raposa Serra do Sol. Fragmentar a área em "ilhas" – conforme o pleito da petição em julgamento – desrespeitaria frontalmente a Constituição, que determina que as áreas de ocupação imemorial sejam demarcadas na sua integralidade. A ministra ressaltou também que a homologação de TIs não "inviabiliza o estado", pois a área não caracterizada como terras indígenas (54% do território estadual) é maior que países como Bélgica e Israel, que tem populações muito superiores, na casa dos milhões de habitantes.
A ministra lembrou ainda que a administração estadual participou direta e ativamente do processo de demarcação, contestando diversos atos, todos eles respondidos pelo ministro da Just
iça à época, Nelson Jobim (ex-presidente do STF e hoje ministro da Defesa). O processo de delimitação da área começou em 1977, antes mesmo da existência de Roraima – criado pela Constituição de 1988. Carmen Lúcia não concordou apenas com algumas das condições sugeridas por Menezes Direito. Não referendou, por exemplo, as regras para o trânsito de pesquisadores e o veto à ampliação futura da área. Ela também disse entender que os não-indígenas que moram na Raposa Serra do Sol que estão integrados às comunidades não precisam ser expulsos da área.
"Quem tiver adquirido a qualquer tempo mediante compra, doação ou qualquer outro tipo, terras indígenas, na realidade não adquiriu coisa alguma, pois essas terras pertencem à União e não podem ser negociadas", sublinhou Ricardo Lewandowski, que enunciou o seu voto depois de Carmen Lúcia. Ele acatou integralmente as 18 condições apontadas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que estabelece restrições ao usufruto da terra pelos índios.
Eros Grau, por seu turno, foi enfático na defesa da idéia de que o caso Raposa Serra do Sol não se trata de um conflito de direito entre indígenas e agentes econômicos privados. Invasores (no caso os fazendeiros que insistem em permanecer dentro da terra indígena), segundo ele, não são portadores de direito. Já o ministro Joaquim Barbosa preferiu não aderir à lista de consições propostas por Menezes Direito e sublinhou estudos da antropóloga Manoela Carneiro da Cunha sobre indígenas de outras regiões do país que mostraram que a demarcação "em ilhas" resultou em conseqüências desastrosas.
O relator Carlos Ayres Britto admitiu ter ficado inicialmente um pouco surpreso com o voto de Menezes Direito. Após essa primeira impressão, contudo, o relator decidiu acolher as sugestões e disse ter compreendido as condições apresentadas pelo colega como uma "técnica interessante, inovadora, que, embora inusual do ponto de vista da operacionalização do que estamos aqui a decidir, resulta altamente proveitosa".
Preocupações
Cezar Pelluzo apresentou uma série de ressalvas à Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas, ressaltando a "inoperância jurídica" e a "negação da força normativa" do compromisso internacional que, para ele, "não pode ser invocado em nenhuma circunstância". O ministro externou ainda estar de acordo com algumas das preocupações relacionadas aos riscos à soberania nacional que aparece com vigor no discurso das Forças Armadas e outros segmentos da sociedade.
Nesse sentido, Cezar Pelluzo também aderiu às condições apresentadas por Menezes Direito, que reforça a ação autônoma das Forças Armadas nas faixas de fronteira, sem necessidade de prévia autorização das populações indígenas ou da Funai. O ministro também disse ser contrário ao regime de dupla afetação (União e povos) das terras indígenas. Para ele, o interesse comum deve estar acima dos direitos dos povos indígenas e as condições esquadrinhadas por Direito resguardam as suas preocupações.
Pelluzo destacou ainda que as demarcações envolvem complexos interesses e que, em nome da segurança nacional, órgãos como o Conselho de Defesa Nacional, os governos estaduais e municipais precisam ser ouvidos. Também defendeu a formação de equipes multidisciplinares – com arqueólogos, engenheiros e cientistas, para além dos antropólogos – com a finalidade de tornar o ato "absolutamente claro". "De pouco ou quase nada valerão as observações, disposições dessa Corte, se as populações indígenas não contarem com o apoio do Estado na garantia que a Constituição garante".
A ministra Ellen Gracie também subscreveu às preocupações de Menezes Direito e de Peluzzo. Ela salientou que nunca esteve em questão a brasilidade dos índios e repetiu o "esta terra tem dono" de Sepé Tiaraju. "A corte sinaliza muito claramente nesse sentido", disse. A delimitação exata do usufruto das populações indígenas feita pelas condições do voto de Menezes Direito foi classificada por Ellen Gracie de "oportuna".
O presidente do STF, Gilmar Mendes, não apresentou propriamente seu voto, mas fez alguns comentários nos quais declarou ter ficado "impressionado" com a manifestação do ministro Menezes Direito. Gilmar Mendes afirmou que, diante do atual estágio do sistema federativo brasileiro, o processo de demarcação de TIs poderia dar mais espaço para a participação dos estados e dos municípios. Na próxima sessão, devem apresentar os seus votos os ministros Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e o próprio Gilmar Mendes.
Confira a lista de 18 condições propostas por Menezes Direito
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