Casa Nova (BA) – Seu Joaquim da Rocha, 75 anos, sabe de cor as histórias de lutas e resistências das comunidades tradicionais de fundo de pasto de Areia Grande, localizada no município de Casa Nova (BA).
"Desde que me conheço por gente, meu manejo é na Caatinga. Não existia nem o lago de Sobradinho [construído na década de 1970] quando minha família chegou aqui. Os gananciosos cresceram os olhos nas nossas terras, os homens que nos perseguem dizem que não somos daqui, mas eu sei a história toda desse lugar, eu fiz essa história".
Seu Quimquim, como é conhecido, lembra exatamente quando seu bisavô chegou à comunidade de Riacho Grande, uma das quatro (as outras são Salinas, Melancia e Jurema) que integram o fundo de pasto de Areia Grande, ocupado desde 1850 por famílias de pequenos agricultores.
Faixas estendidas na entrada da área de fundo de pasto demonstram indignação (Foto: Bianca Pyl) |
No último dia 5 de março, o juiz Eduardo Padilha, da Comarca de Casa Nova (BA), o oficial de justiça Alberto Rocha (o "Feijão"), o Promotor de Justiça substituto de Casa Nova (BA), Sebastião Coelho, e um "grileiro" conhecido como "Gileno" entraram de surpresa na área da comunidade.
"Desfizeram o arame do portão e quebraram a tranca da casa onde Zé de Antero foi morto. Nosso companheiro que estava no local fugiu para o mato com medo", relata Geová Almeida da Silva, presidente da Associação dos Produtores de Jurema, 38 anos, nascido e criado no local, assim como seus pais.
Após o ocorrido, representantes dos agricultores registraram queixa, mas não chegaram a citar o nome do juiz porque não tinham certeza da participação dele na ação. Em 11 de março, um grupo de pessoas das comunidades, acompanhados por advogadas da Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR) e do Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas Agrícolas da Bahia (Sintagro-BA), foram conversar com o juiz sobre a invasão.
Para surpresa do grupo, o próprio juiz afirmou que ele esteve no local pessoalmente e mandou todos se retirarem de sua sala dizendo que a avaliação da titularidade da terra realizada pela Coordenação do Desenvolvimento Agrário (CDA) – que concluiu que as terras são devolutas e que os títulos de posse privados são irregulares – tinha sido uma mentira.
"Depois disso, fomos à Polícia Militar e o delegado se recusou a renovar nossa queixa porque íamos incluir a informação que foi o próprio juiz que invadiu. Nós ficamos a mercê das autoridades locais e, quando chamamos a polícia, eles mangam (zombam) da gente", conta Geová.
Vivem hoje 366 famílias nas quatro comunidades de fundo de pasto de Areia Grande, com 26 mil hectares. Elas vivem tradicionalmente da agricultura de subsistência e da criação de caprinos, ovinos e bovinos. Os animais pastam coletivamente em território de uso comum. As famílias também trabalham com a apicultura, aproveitando a florada da nativa Caatinga.
Disputa
O envolvimento direto de Eduardo Padilha no caso vem pelo menos desde março de 2008, quando o juiz emitiu sentença favorável a dois empresários da região que se apresentam como proprietários das terras em disputa. Após a decisão, efetivos da Polícia Militar e da Polícia Civil, sob supervisão de um oficial de Justiça, entraram na área para expulsar os posseiros. Casas, chiqueiros, currais, roçados e cercas foram destruídos.
Moradores acamparam no local para impedir a continuidade da destruição de suas benfeitorias, mas nove capangas encapuzados, portando armas de grosso calibre, invadiram o acampamento com tiros, ameaças de morte, agressões físicas a mulheres e crianças, usando-as como escudo. Um destacamento policial esteve presente, mas não reprimiu os jagunços.
Uma das seis casas que foram destruídas por jagunços em março de 2008 (Foto: Bianca Pyl) |
"O juiz está há três anos na Comarca. Parece que ele chegou querendo acelerar o processo e a primeira providência que teve foi favorecer os empresários", opina Valério da Rocha, presidente da Associação de Fundo de Pasto dos Pequenos Produtores da Comunidade de Melancia.
O despacho provocou reação das comunidades que, por meio de mobilizações, conseguiram que fosse instalado um processo de discriminação para avaliar a titularidade da área. Entre abril e agosto de 2008, equipe da CDA (formada por um procurador jurídico, uma engenheira agrônoma, uma auxiliar administrativa, um supervisor de cadastro, dois engenheiros agrimensores, três topógrafos e um desenhista) compareceu ao local, analisou a situação das comunidades de Areia Grande, e determinou que a área é de fato pública.
Mas como ações discriminatórias de titularidade de terra só podem ser concluídas quando não existe nenhum tipo de contestação (nesse caso, pretensos donos particulares também reivindicam a área), o processo – que deve ser julgado preferencialmente em relação a todas as outras ações referentes ao terreno – voltou para a Comarca de Casa Nova (BA). Ou seja, o juiz Eduardo Padilha está a cargo do julgamento da ação discriminatória proposta pela Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE-BA).
O magistrado já fez duas "visitas" ao local. A primeira inspeção aconteceu no dia 19 de fevereiro de 2010 e contou de forma acordada com a participação de ambas as partes interessadas no processo.
"Desde o início, havia denúncia que as famílias eram oportunistas. Muitos movimentos sociais têm se utilizado desta prática. Na primeira inspeção, vi pessoas, animais, um verdadeiro ´circo armado´", afirmou Eduardo Padilha em entrevista à Repórter Brasil. Ele diz ter concluído que, na primeira "inspeção", a situação teria sido "mascarada pelas famílias".
Segundo Eduardo, porém, "um juiz não pode ser inerte". "Resolvi fazer uma visita surpresa. Quando cheguei, encontrei a cancela fechada, e durante quatro horas pude verificar que não tinha ninguém na área, havia poucos animais", relata o magistrado
que responde na Comarca de Casa Nova (BA). Na opinião do juiz, não há conflito algum no local. Para ele, "quem gastou dinheiro com as terras não pode usufruir enquanto eles estão lá".
Tatiana Gomes, advogada da AATR que atua no caso, declara que a primeira inspeção já não deveria ter ocorrido por falta de ligação direta com o processo. "A ação julga a validade das matriculas de propriedade e que constavam no cartório de registro de imóveis de Santana do Sobrado (BA)", afirma.
"O código do processo civil não permite visitas surpresas para averiguar nada. Esse argumento do juiz não se sustenta, quem tem que provar se houve preparação da área pelos posseiros é a parte interessada e não o juiz. O magistrado pode produzir provas desde que seja comunicado ambas as partes", explica André Ângelo Ramos Coelho Mororó, procurador-geral do Estado, responsável pelo registro no processo na Justiça.
Ele disse que entrou com recurso chamado agravo retido. "O objetivo do recurso é pedir nulidade do processo, caso ele utilize o relatório da última visita como elemento probatório para sentença", explica. O recurso será analisado pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA). "Levamos o fato ao conhecimento do procurador-geral do estado e solicitamos que a nomeação de um juiz agrário, ato previsto na Constituição do estado, para julgar o caso".
O julgamento da ação discriminatória está suspenso porque os advogados das famílias ajuizaram ação na Vara Civil de Casa Nova (BA) questionando a imparcialidade do magistrado. "Nós tomamos esta providência por conta da atitude do juiz. Na ação, alegamos que ele tem interesse na causa e não está apto para julgar. O processo ficará parado até que o TJ-BA determine se ele pode dar a sentença no caso ou não", explica Tatiana.
"Se eu sair daqui para onde vou?" questiona seu Antunino Rocha, de 85 anos (Foto Bianca Pyl) |
Histórico
O problema na área se iniciou com a construção da barragem de Sobradinho, construída na década de 1970, e a primeira resistência das famílias foi não aceitar a mudança para outra região. A intenção do governo era levar essas famílias para as agrovilas construídas no município de Bom Jesus da Lapa (BA), distante 700 km da área tradicional. Apesar de todas as perdas, a maior parte das famílias fez a opção de permanecer na região.
Em 1979, a empresa Agroindustrial Camaragibe, munida de títulos (que vieram a ser deslegitimados pela CDA), anunciou empreendimento que visava produzir álcool a partir da mandioca. Com apoio do governo federal, foi estruturada uma usina de álcool, mas perdas de safras forjadas serviram para burlar a quitação dos empréstimos feitos junto ao Banco do Brasil. O desvio de recursos públicos ficou conhecido como "Escândalo da Mandioca".
Posteriormente, heranças da Camaragibe – dívidas e inclusive os contestados títulos de terra – acabaram sendo incorporados por dois empresários – Alberto Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima e Silva, que toparam, em 2006, envolver R$ 639 mil no negócio e ingressaram com ação de Imissão de Posse visando legitimar, através de decisão judicial, os documentos adquiridos.
O conflito instalado de terras provocou inclusive uma vítima fatal. No dia 4 de fevereiro de 2009, foi encontrado o corpo de José Campos Braga, conhecido como Zé de Antero, que nunca deixou a área.
"Nunca aconteceu investigação nenhuma da morte do nosso companheiro. O ouvidor agrário inclusive emprestou um carro por três meses para o delegado porque ele tinha dado a desculpa que não fazia investigação porque não tinha carro", relata Valério, presidente de associação da comunidade Melancia. Tatiana, da AATR, conta que esteve na delegacia de Casa Nova (BA) em janeiro de 2010 e o escrivão negou o acesso ao inquérito. "Até o laudo da morte, o Instituto Médico Legal (IML) não liberou" complementa.
Antunino Rocha, de 85 anos, morador mais antigo da comunidade de Riacho Grande – onde nasceu e sempre morou, lembra dos tempos em que seu pai era vaqueiro e chegou ao local. "Era um tempo tranqüilo, de paz. Desde a instalação da Camaragibe, temos problemas", relembra.
O agricultor reclama que agora tem de vir diariamente para vigiar a área. "Se eu sair daqui para onde vou? Eu e meus 9 filhos fomos nascemos aqui", questiona. Ele tem criação de bode, boi e cultiva uma pequena roça. "A luta tá dura", resume Antunino, que acaba de completar 85 anos.
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Comunidades de fundos de pasto resistem a pressões
*Convidada pela organização do evento, a jornalista conheceu a comunidade de fundo de pasto como parte da programação do 7º Encontro Nacional da Articulação do Semiárido (EnconAsa)