Casa do Migrante oferece teto, comida e esperança há 30 anos

 26/08/2010

Salgueiro é uma empobrecida cidade do sertão de Pernambuco, de onde veio o nordestino Edvaldo da Cruz Neves, 44 anos, de ônibus, em busca de trabalho. Ele viajou cerca de 3 mil quilômetros, parando de déu em déu, até aqui chegar. Quando aportou em Cuiabá, dia 1 de agosto deste ano, ou seja, há 24 dias, o parco dinheiro que trouxe já tinha acabado. Sem nada no bolso, sem teto, sem comida e sem conhecer ninguém por aqui, ficou sabendo que o Centro de Pastoral para Migrantes (CPM) acolhe os que, como ele, por algum motivo, estão em trânsito na vida.

Edvaldo é uma das 205.088 pessoas para quem, em 30 anos de existência, a Casa do Migrante foi abrigo, alimento e esperança, em momento de incerteza e dificuldade. Este mês a Casa completa três décadas, prestando este serviço social fundamental em um Estado onde ainda hoje ocorrem "ondas" de migração. A data de fundação é 17 de agosto de 1980.

Ontem, Edvaldo estava feliz. Conseguiu um emprego de pedreiro com carteira assinada em Cuiabá. "Isso eu não tinha há anos", diz ele. À noite, ligou para a mulher, que, junto com a filha de 3 anos, esperava ansiosa, lá em Salgueiro, por uma boa notícia. "Mandei dinheiro e vocês já podem vir", avisou Edvaldo, que só frequentou escola até a quinta série. "Agora me deu uma vontade de voltar a estudar… Ainda não sei como vou fazer isso, mas vou conseguir!"

"Gente é para brilhar", diz a frase, na porta da Casa do Migrante. Mais adiante, outra frase pintada na parede deseja que "Deus abençoe quem chega e quem parte". Em um banner, uma homenagem ao beato João Batista Scalabrini, pai dos migrantes. Mais à frente corredores levam aos 75 leitos, aos banheiros e à cozinha. Nove funcionários cuidam da Casa: administram, fazem a limpeza e as três refeições do dia – café da manhã, almoço e janta.

Eliana Vitaliano coordena a Casa. Segundo ela, o princípio básico que os rege é a acolhida. "Isso é fundamental", diz ela.

Para quem pensa que só homens passam por essa situação, não é verdade. Em 30 anos de serviços prestados pela Casa, passaram por ali 55.627 famílias. Dava para povoar uma cidade do tamanho de Rondonópolis, que é a terceira maior de Mato Grosso. Só menores de 18 anos foram 67.735.

Marcos Gomes tem hoje 22 anos. Mas, assim como esses 67.735 menores citados, já precisou de muitos abrigos, quando ainda não havia chegado à maioridade. Ele foi abandonado pela família bebê. Cresceu em orfanatos e na rua. "Fui criado no trecho", resume ele, que nasceu em Peixoto de Azevedo (a 696 quilômetros de Cuiabá). Sua última parada, havia sido Santo Antônio do Leste (GO). Metade do tempo Marcos passa trabalhando; outra metade, parado, ou melhor, buscando emprego. Não tem formação alguma; jamais foi à escola. "Sou totalmente analfabeto. A pior coisa do mundo é enxergar e não saber o que vê", lamenta.

Os analfabetos, como Marcos, e semianalfabetos – pessoas que só sabem riscar o nome – são maioria na Casa do Migrante.

Dias de sossego

Há 15 dias Marcos chegou em Cuiabá. Estava se sentindo mal de saúde. Foi à Policlínica e lá teve vontade de conversar com o único parente que diz ter: "Deus". Na Policlínica, informaram a ele sobre a Casa do Migrante. "Aqui, nesses dias, estou vivendo uma maravilha, uma benção, um sossego".

Há, porém, abrigos que são violentos, onde as pessoas têm que dormir com um olho aberto e outro fechado. "Aqui isso não acontece, o ambiente é tranquilo", afirma Fernando Luiz Quirino, 51 anos, divorciado, sete filhos, de Natal (RN). Ele é daquele tipo que, como dizem, "pegou espírito de trecheiro". Motorista de carreta há muitos anos, não sabe ficar parado. Cuiabá é só uma pausa momentânea. Ele vai seguir para Porto Velho (RO), tentar serviço na construção de uma barragem. Mas já foi alertado sobre os riscos do trabalho escravo. "Eu já sei que eles pegam a gente, tudo em bando, e depois não tem garantia se as promessas serão cumpridas. Mas estou desde novembro desempregado. Vou ficar de olho aberto e tentar". Na quinta-feira, Fernando segue viagem. "Agradeço por tudo recebi aqui, estava sem dinheiro e com a roupa suja. Nessa hora, esse apoio é muito importante".

Trabalho escravo

Parte dos que chegam à Casa do Migrante é vítima do trabalho escravo, que ainda ocorre em Mato Grosso.

É para esse grupo que a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) em parceria com a Casa do Migrante ofereceu um curso profissionalizante de eletricista para 15 homens e uma mulher. Primeira turma de um projeto refletido pela Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae), criada pelo Governo do Estado em 2007. Foi um ano de formação. Para estudar, cada um dos contemplados ganhou bolsa. A SRTE está agora montando outro curso, para 25 homens. O objetivo é coibir a reincidência e de fato mudar a vida dessas vítimas.

A Coetrae é mais recente que o Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (Foete), criado dia 6 de abril de 2004. É o Fórum que vem fazendo pressão contra esta prática perversa, que desfaz famílias e fere os direitos humanos. Muito dessa luta foi gestada dentro da Casa do Migrante, motivada pelas histórias dos escravizados e pela necessidade de mudar essa realidade.

Década de 80

Padre Antenor, que já foi diretor da Casa de 1996 a 2004, veio de São Paulo, onde mora atualmente, para lembrar a data, junto com muitos daqueles que trabalharam nesses anos todos por este abrigo. Ele conta que a Casa surgiu em 1980, durante a Campanha da Fraternidade daquele ano, que tratou justamente sobre o tema migração. "Para onde vais?" – indagava a Igreja.

"Cuiabá era o corredor de passagem, por causa da abertura da fronteira agrícola", lembra padre Antenor. "O pessoal passava por aqui rumo ao Nortão. Muitos iam até Rondônia e Acre e, quando chegavam aqui, geralmente já estavam sem dinheiro. Outros já vinham de mão abanando mesmo. A gente atendia até de 100 a 150 pessoas por dia".

O prédio que passou a funcionar como abrigo era originalmente uma escola municipal que nunca funcionou. A Igreja Católica e a Prefeitura Municipal de Cuiabá sensibilizadas pelo problema social da migração trocou a função do prédio de escola para abrigo.

O padre Antenor é da congregação dos scalabrinianos, cuja missão original era atender imigrantes italianos que vieram para o Brasil no final do século 19. Por isso, fazia muito sentido ele ir trabalhar na Casa do Migrante logo de início. Missões afins. E ele foi. "Nesse período era de interesse do Governo Federal ocupar a Amazônia e as fronteiras Norte. Essa era inclusive uma proposta dos governos militares, que facilitavam o atendimento ao migrante. Havia dinheiro para passagens. E muitos dos que chegam à Casa do Migrante não precisavam mais que dois dias de
teto".

Década de 90

Houve, porém, momentos difíceis para a Casa, com a chegada da década de 90. A Igreja assumia a maior parte das responsabilidades em muitos períodos. A conjuntura era de retorno, ou seja, os que foram rumo ao Norte por algum motivo não se acertaram lá e voltavam também em levas. Famílias passavam por aqui menores, arrebentadas, porque havia morrido muitos por lá, de malária, de enfraquecimento, de violência.

A Casa do Migrante, nesse período, não deixava de ser importante pelos mesmos motivos. Dar teto, comida, acolhida, esperança.

"Esse retorno quase sempre não era para a cidade natal, mas para outras alternativas e, por isso, esses já precisavam de mais tempo na Casa", destaca padre Antenor. "Muitos tentavam emprego na capital e ficavam em Cuiabá. Ou conseguiam em fazendas próximas. Assim, formou-se um exército de trabalhadores itinerantes e alvos fáceis para o trabalho escravo".

2000

O agronegócio entrou em seu auge e as políticas favorecendo a ampliação de lavouras e pecuária provocaram novos deslocamentos, desta vez mais para dentro dos rincões de MT. Isso exigia força braçal para abrir picada e assim que o mato era cortado a tendência era, e é, dispensar a força humana e comprar máquinas, sobrando gente a esmo.

Além disso, intensificaram as fiscalizações contra o trabalho escravo, ocasionando a soltura de levas de braçais encontrados em situação degradante.

Essa conjuntura atual tem levado à Casa do Migrante muitos fugitivos da servidão contemporânea, que chegam denunciando o trabalho escravo.

O olhar mais atento para esta prática move ações que garantam os direitos humanos das vítimas e, nesse sentido, o Centro Burnier Fé e Justiça tem orientado encaminhamentos importantes.

A barraca no meio do mato, água insalubre, a alimentação racionada, a dívida por servidão. Tudo isso ainda é uma realidade para os tantos homens e mulheres resgatados pela fiscalização.

Voluntários

Aos sábados, domingos e feriados, voluntários é que trabalham na Casa do Migrante.

Conforme Eliana Vitaliano, coordenadora do abrigo, na Casa estão faltando atividades culturais, de lazer, cursos profissionalizantes e palestras informativas, para que, quando deixarem esse espaço, os abrigados saiam diferentes, melhor preparados para a vida, resgatados de fato e de direito.

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