Tráfico de pessoas

Prostíbulo estava em área declarada de interesse público para Belo Monte

Boate em que 14 mulheres foram submetidas a escravidão sexual fica em um dos poucos terrenos ainda não desapropriados pela Norte Energia na Vila São Francisco
Verena Glass
 21/02/2013

A Boate Xingu, onde 14 mulheres foram resgatadas na semana passada, está localizada em área declarada de interesse público para a construção da usina de Belo Monte, em Vitória do Xingu (PA). Segundo a polícia civil, as vítimas, entre as quais estão uma adolescente de 16 anos e uma travesti, estavam submetidas a condições análogas à escravidão e foram aliciadas em estados do Sul do país, o que pode configurar tráfico de pessoas.

Em 5 de março de 2011, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) publicou a resolução autorizativa número 2.853, “que declara de utilidade pública, para fins de desapropriação, em favor da Norte Energia S.A., as áreas de terra necessárias à implantação da UHE Belo Monte, localizadas no Município de Vitória do Xingu” (clique aqui para ler o documento em PDF). De acordo com a ANEEL, a área perfaz 3.536,2587 hectares de “propriedades particulares localizadas no Município de Vitória do Xingu, Estado do Pará, necessárias à implantação da UHE Belo Monte, representadas nos desenhos intitulados: ‘UHE Belo Monte – Canteiro de Obras – Sítio Pimental’ e ‘UHE Belo Monte – Canteiro de Obras – Sítio Belo Monte’”, e engloba a Vila São Francisco, onde o dono da Boate Xingu, Adão Rodrigues, teria arrendado 2 hectares de um morador local.

mapa
Mapeamento com base em imagem do ISA. Clique para ampliar

No último dia 18, o Consórcio Norte Energia, responsável pela construção de Belo Monte, informou, através de nota à imprensa, que “o referido imóvel [Boate Xingu] funcionava em uma chácara na zona rural daquele município [Vitória do Xingu], em terreno particular de propriedade desconhecida e distante cerca de 20 quilômetros do canteiro de obras mais próximo”.

De fato, segundo moradores locais, o sitio arrendado a Rodrigues ainda não foi desapropriado pela Norte Energia, ao contrário de outros terrenos da comunidade. De acordo com Pedro dos Santos, coordenador regional da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará (Fetagri), “quase todos os lotes da Vila São Francisco já foram desapropriados. Em um deles, ao lado da boate, há uma área onde a Norte Energia leva animais resgatados na região. Do outro lado da boate fica a casa do pobre de um pastor evangélico, que também não foi desapropriado ainda; o resto foi quase tudo. É bem na beira do Travessão do 27 (estrada vicinal que dá acesso ao canteiro Canais e Diques da usina)”.

Bruno Carachesti/Diário do Pará
Boate Xingu. Bruno Carachesti/Diário do Pará

A Boate Xingu começou a funcionar no local no final de 2012, explica o delegado Cristiano Marcelo do Nascimento, superintendente regional da polícia civil. “Antes, o Adão tinha uma outra boate, que ele montou ainda em 2011 na rodovia PA 415, que liga Altamira à Vitória do Xingu. Ficou lá uns seis meses, mas era fora de mão, não tinha movimento. Aí ele fechou. Foi entre outubro e novembro que ele abriu a nova boate no Travessão do 27”.

De acordo com um funcionário de uma empresa terceirizada que trabalha no transporte de trabalhadores de Belo Monte, de fato a nova localização do prostíbulo foi estrategicamente calculada para atender os operários da usina. “A Norte Energia melhorou a estrada para permitir o acesso aos canteiros, e a boate ficou bem no ponto de fácil acesso. Sempre está cheia de trabalhadores”, conta o motorista, que pediu para não ser identificado.

Prostituição e exploração de crianças
Depois do resgate das vitimas da Boate Xingu, ainda na semana passada a polícia civil realizou outra operação na cidade de Altamira, que resultou no fechamento de mais três boates por crime de rufianismo (definido pelo artigo 230 do Código Penal Brasileiro como “Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça”). De acordo com o delegado Cristiano do Nascimento, a maioria das mulheres resgatadas nesta operação também não era do Pará. “Havia moças do Acre, do Amazonas, Amapá e Maranhão”. No conjunto das operações, foram resgatadas 34 mulheres.

Já na manhã desta quarta-feira, 20, a polícia de Vitória do Xingu prendeu Marlene Lopes Carlos, dona de um bar na vila de Belo Monte (localizada entre Altamira e Anapu, próximo ao sitio Belo Monte, um dos quatro canteiros da usina), e resgatou outras três mulheres e uma travesti. “Desde o ano passado recebemos denúncias de prostituição ilegal na Vila Belo Monte. Mas hoje constatamos de fato a prática e efetuamos a prisão da cafetina”, relata Cristiano Nascimento. De acordo com o delegado, problemas com prostituição na região da usina estão aumentando em razão do grande número de operários. “Não tem jeito, outros locais surgirão na região”, avalia.

A opinião é compartilhada pelo professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará, Assis Oliveira, que estuda a violência sexual contra crianças e adolescentes na região com apoio do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, do governo federal (PAIR).

Segundo o pesquisador, o número de denúncias cresceu muito nos últimos três anos, e há mais de 170 casos de violência sexual (principalmente estupro) contra crianças e adolescentes registrados na 5ª Vara da Justiça Estadual em Altamira, sendo 5% de exploração sexual. “Um dos vetores destes problemas sem dúvida é a chegada de Belo Monte. Mas também temos que reconhecer que o poder público tem sido mais atuante, o atendimento às vítimas melhorou e aumentou a conscientização. Assim também aumentou o número de denúncias”.

De acordo com um relatório publicado no site do Ibama, entre 2009 e 2012 foram registrados 50 casos de prostituição, estupro e abuso contra crianças e adolescentes nos municípios de Altamira, Anapu, Senador José Porfírio, Vitória do Xingu e Brasil Novo, mas estes números estão largamente subestimados, afirmam pesquisadores da área. “Não há uma metodologia de gerenciamento das denúncias, o que torna mais difícil quantificar os casos de violência sexual”, avalia Assis Oliveira.

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Artigo: Conatrae, trabalho escravo e exploração sexual

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