Artigo

Que tal revogar a Lei Áurea?

Sob qualquer ponto de vista, trabalho escravo contemporâneo é algo tão absurdo que ninguém, em sã consciência, é capaz de defendê-lo publicamente.
 07/07/2013

Sob qualquer ponto de vista, trabalho escravo contemporâneo é algo tão absurdo que ninguém, em sã consciência, é capaz de defendê-lo publicamente. Não é apenas um crime contra os direitos humanos. Também configura concorrência desleal e contribui para manchar o nome dos produtos brasileiros no exterior, dando de mão beijada razão para o erguimento de barreiras comerciais não tarifárias sob justificativa social.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social), cerceamento de liberdade/trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).

Varas, tribunais e cortes superiores utilizam a definição desse artigo. Em decisões da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal fica clara a compreensão de que eles entendem o que é esse crime. A Organização Internacional do Trabalho apoia a aplicação do conceito brasileiro. Gulnara Shahinian, relatora para formas contemporâneas de escravidão das Nações Unidas, afirmou que o mundo precisa copiar o exemplo do Brasil.

Mesmo assim, vira e mexe há políticos que reclamam que fiscais do trabalho consideram como escravidão a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis. Isso não é verdade. Afinal de contas, qualquer fiscalização do governo é obrigada a aplicar multas por todos os problemas encontrados. Mas não são essas as autuações que configuram trabalho escravo. Quando ouço esse blablablá, faço uma rápida pesquisa no Ministério do Trabalho e Emprego e descubro dezenas de outras autuações que o empregador em questão recebeu. Sempre me surpreendo com as fotos da “espessura do colchão” e os depoimentos dos trabalhadores “sem copos plásticos”.

Ao afirmar que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo – simplesmente porque não concordam com ele –, essas pessoas querem desestabilizar um dos raros processos em que o governo federal aprendeu a caminhar. Cerca de 46 mil pessoas foram libertadas desde 1995, o que faz do combate à escravidão uma política de Estado e não de partido, muito menos de governo.

A “PEC do Trabalho Escravo”, proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de propriedades flagradas com esse crime e sua destinação à reforma agrária e ao uso social urbano, está para ser votada no plenário do Senado. Se aprovada em dois turnos, passa a vigorar em todo o país, pois já foi aprovada na Câmara. Ela é considerada uma espécie de “segunda Lei Áurea”, dado o impacto que sua aprovação causaria.

A bancada ruralista quer atrelar a sua aprovação ao afrouxamento do conceito. Praticamente condenar só quem usa pelourinho, chicote e grilhões, sendo que os tempos mudaram e os mecanismos modernos de escravização adotados são sutis. Promovem, dessa forma, a “insegurança jurídica” no campo e na cidade. O governo federal disse que isso não está em discussão. A ver.

Mas, se ficar decidido que o crescimento econômico é mais importante que a dignidade das pessoas, podemos – em um esforço da nação – revogar também a primeira Lei Áurea. Que tal?

Leonardo Sakamoto, jornalista e doutor em Ciência Política, é professor de Jornalismo da PUC-SP e coordenador da ONG Repórter Brasil.

Texto originalmente publicado no jornal Gazeta do Povo

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