Em 2014, a Declaração de Cartagena sobre Refugiados, assinada na cidade de Cartagena das Índias, na Colômbia, completa 30 anos. O documento de solidariedade e de cooperação internacional em situações de deslocamentos forçados de populações na América Latina ampliou a definição do conceito de refugiado, que havia sido estabelecido pela Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Refugiados em 1951. A data deve ser lembrada como uma oportunidade para a reflexão dos desafios do tema e para a implantação de novas políticas de atendimento a essa população.
Para renovar o espírito de proteção aos refugiados estabelecido no documento que está em vigência em 14 países da região, nações da América Latina e do Caribe decidiram lançar este ano a série de seminários e eventos “Cartagena+30”. No Brasil, os encontros vêm ocorrendo ao longo do ano e culminarão numa conferência em Brasília (DF) em dezembro.
Um dos desafios para a política de proteção e atendimento ao refugiado é a lacuna relacionada às tragédias ambientais, que dão origem à figura do refugiado ambiental, situação enfrentada recentemente pelos haitianos. Em 2010, um grande terremoto abalou o país. O evento continua motivando até os dias atuais a busca por refúgio no Brasil, por conta da falta de oportunidades de sobrevivência no Haiti apesar do esforço conjunto dos países na ajuda humanitária internacional aos sobreviventes.
O recente envio de grupos de refugiados haitianos pelo governo do Acre para o estado de São Paulo sem qualquer aviso prévio ao governo paulista gerou mal-estar e críticas do governo local e em Brasília (DF), caracterizando uma atitude de desrespeito da administração estadual acreana a esses seres humanos, sem qualquer intervenção direta do governo federal que pudesse amenizar a situação.
Oriente Médio
Os recentes conflitos no Oriente Médio entre o grupo Estado Islâmico (EI), que almeja tomar o poder para a criação de um estado único muçulmano, e os governos locais apoiados pelos EUA e países da Europa, além das ofensivas de Israel sobre as terras da Palestina, parecem muito distantes do cotidiano no Brasil. No entanto, essas disputas geram mudanças diretas no fluxo migratório mundial. Os que conseguem escapar dessas áreas de guerra civil, os chamados refugiados, traçam cada vez mais rotas cujo destino é o Brasil.
Isso ocorre porque desde os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos os países desenvolvidos passaram a adotar regras mais rígidas para a aceitação de imigrantes e refugiados e reforçam cada vez mais as normas de segurança para a entrada de pessoas nas fronteiras costeiras, terrestres e em aeroportos. Segundo informações da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2001 a 2005 o total de pedidos de refugiados para a permanência na Europa, Austrália, Estados Unidos e Canadá despencou 40%, o que não significou, de forma nenhuma, uma diminuição no total de vítimas de conflitos ao redor do mundo.
Essa retração no número de refugiados que conseguiram a oportunidade de iniciarem uma nova vida nos países ricos sob a proteção da ONU é um efeito direto da forte política de restrições na imigração. Então, com as “portas fechadas” nas fronteiras da Europa, Austrália e América do Norte, os refugiados passaram a buscar rotas alternativas em países vizinhos ou emergentes, entre eles o Brasil. Segundo a ONU, o Paquistão, no Oriente Médio, é a nação com o maior número de refugiados do mundo, como resultado dos deslocamentos populacionais regionais e da pressão das potências ocidentais para que os países vizinhos das áreas de conflitos assumam o posto de receptores de pessoas em busca de refúgio.
O Brasil despontou como um dos novos destinos dessa população, abrigando atualmente mais de 5.200 refugiados, segundo a ONU. Em 2005, o crescimento do número de pedidos de refúgio no país foi de 5% e, de acordo com o Alto Comissariado para Refugiados da ONU (Acnur), desde então o aumento tem sido exponencial. Hoje, o maior grupo é de sírios. O mais recente conflito na Síria começou em 2011, quando surgiram os protestos contra o regime de Bashar al-Assad, no contexto dos movimentos que ficaram conhecidos em todo o mundo como “Primavera Árabe”, ocorridos também em países como Tunísia, Líbia e Egito.
A política para refugiados no Brasil
No passado, o escritório do Acnur no Brasil chegou a ser fechado por falta de verbas mas foi reaberto em 2003, durante o primeiro governo do presidente Lula, com promessas de reforços nos recursos financeiros partilhados com a ONU para a assistência jurídica e social dos refugiados no país. No entanto, ao analisar esse período de 11 anos, é possível concluir que ainda falta infraestrutura. Em países ricos da Europa, há apartamentos alugados para refugiados e também acesso aos sistemas de saúde de boa qualidade, além de alimentação e da ajuda financeira oferecida durante todo o tempo em que a pessoa permanece no país, em ações diretas dos governos. No Brasil, a ajuda financeira não ultrapassa um ano na maioria dos casos, ficando evidente que não há política específica para o refugiado no país.
Em grandes cidades como São Paulo, essa população é acolhida em albergues**, muitas vezes apenas por um tempo limitado. Após esse período, o refugiado que ainda não está adaptado à língua, cultura e vida no Brasil tem de sobreviver por si mesmo, o que gera um novo movimento de migração, normalmente para outro país da América Latina ou Europa, em busca de uma vida melhor, tornando evidente a presença do Brasil apenas como um país de passagem para os refugiados do final do século 20 e início do século 21, apesar dos esforços do governo federal e da ONU.
A tentativa do Brasil de estabelecer palestinos que vieram de um campo para refugiados no Iraque em 2009 fracassou e culminou em protestos de alguns integrantes do grupo, que ficaram acampados em Brasília (DF), porque o simples aluguel das casas fora do eixo Rio-São Paulo foi insuficiente para assegurar a adaptação do grupo ao novo país.
É urgente o fornecimento de moradias específicas e alimentação gratuita permanente para os refugiados. Na cidade de São Paulo, que acaba de receber o segundo escritório do Acnur do país (o primeiro funciona em Brasília), os prédios degradados do Centro poderiam ser reformados e revitalizados para esse fim.
A situação econômica do Brasil não pode servir como justificativa para um política fraca de proteção aos refugiados. O Brasil pode atuar como força de pressão para que os mesmos países que fecharam as portas aos refugiados possam contribuir, por meio de parcerias, para a expansão de um programa de assistência localizado em outras nações que, como o Brasil, não estejam envolvidas diretamente no conflito e estejam situadas geograficamente distante das zonas de disputa pelo poder.
*Sandra Silva é jornalista, estudante da Pós-Graduação em TV Digital (Unesp-Bauru) e autora de reportagens sobre o tema e do livro “A Caminho do Brasil – Retratos de Refugiados”
** Texto atualizado nesta quinta-feira, dia 13, para correção de informações.
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