São Paulo – Utilizada para cortar custos e tentar fugir das responsabilidades trabalhistas, a terceirização é vista como uma das principais causas da deterioração das condições de trabalho em diversos setores. E está intimamente relacionada ao trabalho escravo contemporâneo, principalmente a sua ocorrência nas zonas urbanas, conforme denunciaram na quinta-feira, 12, diversos pesquisadores presentes ao segundo dia da 7ª Reunião Científica sobre Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, que aconteceu esta semana na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Um levantamento realizado pelo auditor fiscal do trabalho Vitor Araújo Figueiras, que é também pós-doutorando em Economia pela Universidade de Campinas (Unicamp), mostrou que cerca de 90% dos trabalhadores resgatados nos dez maiores flagrantes de trabalho escravo contemporâneo entre 2010 e 2014 eram terceirizados (veja tabelas abaixo).
“As estimativas apontam que cerca de um quarto da mão de obra assalariada no Brasil é subcontratada. Então, a gente esperaria que apenas um quarto dos trabalhadores resgatados da escravidão fossem terceirizados”, avaliou Figueiras, que é autor do artigo “Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência?”, publicado em junho de 2014 pela Repórter Brasil. “O assalariamento, em si, não traz limites ao processo de exploração dos trabalhadores. E a terceirização, enquanto estratégia de gestão da força de trabalho, potencializa essa falta de limites inerentes a essa relação social capitalista”, analisou Figueiras.
Ele desmontou, ainda, o argumento sustentado por alguns estudiosos de que a terceirização seja a transferência de serviços para uma empresa especializada. “Todo o discurso empresarial fala que a empresa precisa se focar na atividade principal e delegar a outra as etapas da produção na qual ela não se especializou. Mas, agora, os empresários vêm pedir que a terceirização possa inclusive ocorrer na atividade-fim”, lembrou Figueiras. “No fundo, não se trata de especialização, mas sim de fazer gestão da força de trabalho sem fazer contratação direta. Isso porque é mais difícil para os sindicatos e o governo responsabilizarem os tomadores de serviço pelas infrações”, completou o auditor.
Atualmente, a Justiça determina que uma empresa não pode terceirizar a chamada “atividade-fim”. Isso significa que uma construtora não poderia terceirizar a contratação de operários nem a indústria da moda subcontratar empresas para a confecção de suas roupas, situações irregulares que são recorrentes. Mas tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 4.330/2004, de autoria do deputado federal Sandro Mabel (PMDB-GO), que tenta acabar com essa proibição.
“Fomos chamados pelo deputado federal Arthur Maia [que foi relator do PL 4.330/2004 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados] para discutir essa proposta. A Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] disse que aceitaria conversar, desde que o projeto garantisse a responsabilidade solidária da empresa contratante pelos trabalhadores terceirizados. Aí, os empregadores não toparam”, contou Carlos Eduardo Chaves, assessor da Contag.
“A terceirização não exclui a responsabilidade do tomador final do serviço. Mas ela torna mais difícil – no mínimo, mais demorada – sua responsabilização judicial”, explicou a defensora pública Fabiana Galera Severo, mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
“A terceirização garante a pulverização da produção e a precarização das relações de trabalho. No setor têxtil, por exemplo, crescem as formas de contratos por peça produzida em domicílio”, destacou Marcela Soares, professora doutora em Serviço Social na Universidade Federal Fluminense (UFF). “As formas de exploração se reinventam até por meio da política de geração e renda do governo federal. Há um incentivo ao empreendedorismo, que traz a falsa ideia de autonomia dos trabalhadores”, criticou a pesquisadora.
Bolivianos em São Paulo
Em São Paulo, nos últimos anos cresceram os flagrantes de trabalho escravo em oficinas de costura que prestavam serviços para grandes marcas da indústria têxtil. Em muitas delas, os trabalhadores explorados eram migrantes bolivianos, objetos de estudo de dois outros pesquisadores presentes neste segundo dia da reunião científica: João Paulo Candia Veiga, professor doutor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e Natália Suzuki, coordenadora do programa “Escravo, Nem Pensar!”, da Repórter Brasil, e mestranda em Ciência Política pela USP.
Os dados apresentados por Veiga se basearam em entrevistas semiestruturadas com 72 bolivianas que trabalhavam na cadeia de costura em São Paulo, realizadas entre setembro e dezembro de 2013. “Elas vêm ao Brasil muito determinadas, para fazer dinheiro e, depois, voltar à Bolívia. Sabem que trabalharão muito e não têm uma percepção clara sobre a exploração que sofrem. Várias relataram que nunca se sentiram violadas em seus direitos fundamentais”, explicou o pesquisador. “As oficinas de costura estão cada vez menores e se multiplicando, com o espaço público (laboral) se confundindo com o privado (doméstico). Isso torna mais difícil a fiscalização trabalhista”, alertou ele.
Natália Suzuki analisou 11 operações de fiscalização trabalhista realizadas em oficinas na capital paulista entre 2010 e 2013. Em todas, os trabalhadores bolivianos costuravam para grandes marcas. “O local de trabalho era sempre também a moradia, com características de cortiço. Mas, ao contrário dos cortiços clássicos, essas oficinas não ficavam na região central, mas principalmente na Zona Norte e, algumas, na Zona Leste da cidade”, revelou a pesquisadora.
Migração e trabalho escravo
Além dos bolivianos, as pesquisas apresentadas nessa quinta-feira destacaram dois outros grupos de migrantes vulneráveis ao trabalho escravo contemporâneo: os haitianos e os maranhenses. Letícia Helena Mamed, professora da Universidade Federal do Acre (UFAC) e doutoranda em Sociologia pela Unicamp, apresentou dados sobre a trajetória recente de migração de haitianos para o Brasil. “O Acre tem sido a principal porta de entrada deles para o país, por meio da rodovia Interoceânica. Atualmente chegam, em média, entre 30 a 50 migrantes haitianos por dia no estado, entre homens, mulheres e crianças”, revelou a pesquisadora. “As empresas de construção civil e do agronegócio, do sul do país, vão até o acampamento desses migrantes para recrutá-los. É uma mão de obra extremamente barata e vulnerável à exploração”, alertou ela.
“Enquanto cerca de 50 migrantes haitianos chegam ao Acre todos os dias, o governo brasileiro libera em Porto Príncipe aproximadamente 50 vistos por semana e há uma grande fila de interessados em vir para o Brasil. Isso é um incentivo para a migração ilegal, o que aumenta a vulnerabilidade desses trabalhadores”, denunciou Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Por que não liberar já lá no Haiti os vistos que depois serão concedidos aqui?”, provocou ele.
A pobreza e extrema vulnerabilidade social atingem também muitos agricultores maranhenses e estão na base das estatísticas que revelam que o Maranhão encabeça a lista dos estados de origem dos trabalhadores resgatados de situações análogas à escravidão no Brasil. “Não por acaso a maior parte dos resgatados da escravidão é do Maranhão. Em um dos municípios que pesquiso, Codó, o próprio prefeito [Zito Rolim (PV)] mantinha trabalhadores escravos”, lamentou Sávio José Dias Rodrigues, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e doutorando em Geografia Universidade Federal do Ceará (UFCE).
“No Brasil, há mais rigor para se fiscalizar transporte de gado do que transporte de trabalhadores rurais”, provocou Carlos Eduardo Chaves, da Contag. “Por isso, em algumas Convenções Coletivas, temos tentado negociar preferência por contratação de trabalhadores locais. Uma luta antiga nossa, ainda não atendida, é a oferta de seguro-desemprego para o trabalhador safrista, para que ele não tenha que migrar em busca de renda na entressafra”, completou ele.
É a primeira vez que São Paulo sedia a Reunião Científica sobre Trabalho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas, que tradicionalmente acontece no Rio de Janeiro e, apenas em 2012, ocorreu em Cuiabá. O evento é promovido pelo GPTEC/NEPP-DH/UFRJ e pela ONG Repórter Brasil e esta sétima edição conta com o apoio da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), da Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo de São Paulo (Coetrae-SP) e do Departamento de Jornalismo da PUC-SP.
As apresentações de trabalho e debates irão até sexta-feira (dia 14), no Campus Perdizes da PUC-SP. A programação completa está no site do evento, onde serão publicados também todos os artigos apresentados.