A nova geração de migrantes brasileiros

Da cana à construção civil, refizemos a trajetória de duas gerações de migrantes brasileiros. Ao visitar uma das cidades de onde eles mais saem, encontramos um polo de vítimas de trabalho escravo
Por Stefano Wrobleski
 04/03/2016

“Nós temos duas funções aqui: levar os iludidos e trazer os arrependidos”. É assim que um funcionário da agência de viagem de Codó, cidade de 118 mil habitantes no interior do Maranhão, descreve o transporte de trabalhadores migrantes pelo Brasil. Os “iludidos” são homens de 20 a 30 anos que, na busca por emprego, deixam filhos e esposas para cruzar o país em ônibus clandestinos. Percorrendo até três mil quilômetros, estes veículos saem semanalmente da cidade para levar dezenas de serventes de pedreiro, cortadores de cana-de-açúcar e colhedores de soja até o Centro-Sul do Brasil.

A migração para o trabalho é tão importante para Codó que, em 2007, um quarto das famílias locais tinha ao menos uma pessoa trabalhando fora do município. Mas, além de ser um polo de origem dos migrantes, Codó também chama atenção por outro número: é o segundo município do Brasil de onde mais saem as vítimas do trabalho escravo contemporâneo. Entre 2003 e 2014, 413 pessoas libertadas de trabalho em condições análogas às de escravo em todo o país haviam saído de Codó.

Codó é o segundo município do Brasil de onde mais saem as vítimas do trabalho escravo contemporâneo

Não é coincidência o fato da cidade se destacar como polo de migrantes e vítimas da escravidão contemporânea. A realidade de Codó, que se repete em centenas de outras cidades no Norte e Nordeste do Brasil, representa um dos maiores desafios para o combate ao trabalho escravo e à precarização do trabalho relacionado a migrantes no país. Um problema que mudou de cara nas últimas décadas, mas que o Brasil ainda não conseguir superar.

Na origem do problema está a vulnerabilidade econômica. Segundo o Censo de 2010, 92% dos 118 mil codoenses viviam com até dois salários mínimos mensais. A carência é o primeiro fator que faz, da cidade, um dos principais polos de saída de migrantes que se sujeitam a viagens incertas e perigosas, muitas vezes sem saber o que lhes espera no destino.

Um exemplo é a história da família do migrante Antônio Cordeiro da Silva Filho, parte das primeiras levas de trabalhadores a sair em massa de Codó. “Os primeiros que foram, foram meio jogados. Daí foram chamando os outros”, ele lembra. Antônio migrou pela primeira vez em 2003 para o corte de cana em Guariba, município no interior de São Paulo. Cinco anos depois, quando fazia sua quinta e última viagem, um de seus quatro filhos migrava para o mesmo estado, mas para trabalhar na construção civil.

As histórias de pai e filho refletem um momento de mudança no fluxo migratório do país: com a mecanização da colheita em São Paulo e com as ações do Ministério Público do Trabalho (MPT) para combater o trabalho escravo no campo, os destinos e funções se diversificaram e muitos migrantes viraram pedreiros ou ajudantes de obra.

Antônio, ao centro, hoje vive e trabalha em Codó com sua mãe, esposa, filha e netas. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil
Antônio, ao centro, hoje vive e trabalha em Codó com sua mãe, esposa, filha e netas. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Segundo José Fernando Maturana, procurador do MPT em Bauru, no interior de São Paulo, o fluxo migratório para o corte de cana no estado teve início no final da década de 1990, quando as usinas passaram a terceirizar a produção e contratar cortadores de fora, que aceitavam trabalhar “o máximo possível, não ter horário de descanso e trabalhar aos domingos”. A atuação do órgão, ao fiscalizar as empresas e firmar um protocolo com o governo do estado para proibir a queimada de cana até 2018, fez com que muitas empresas se antecipassem: “No final de 2014, mais de 90% já tinham concluído o plano de mecanizar a colheita ou melhorar as máquinas”. O procurador afirma que, assim, a terceirização foi reduzida em mais de 95%, o que “muda um pouco de figura o nível de tratamento e o que era tolerável para um prestador de serviço, deixa de ser para a empresa”.

Com a substituição do trabalho manual pelo das máquinas, uma usina que antes tivesse, por exemplo, cinco mil cortadores de cana, passou a ter 300 trabalhadores fixos.

Apesar das mudanças, os desafios permaneceram para os migrantes.

Cenas de Codó

Filho de Antônio, Francisco Ferreira da Silva está em São Paulo desde 2008, seguindo uma tendência dos migrantes codoenses. A partir daquele ano, os moradores do município passaram a buscar trabalho fora do corte de cana-de-açúcar. Em São Paulo, Francisco conseguiu um emprego na construção civil como auxiliar na tarefa de injeção de cimento em grandes estruturas. Foi logo promovido, operando ele mesmo as máquinas que antes ajudava a abastecer com pesados sacos de cimento. Francisco ajudou a erguer, por exemplo, a Estação Tamanduateí do Metrô de São Paulo, inaugurada em 2010.

Embora tenha recebido a oferta de emprego em Codó, a carteira de trabalho de Francisco só foi assinada em São Paulo, o que é contra a legislação. Precisando do emprego, ele pegou o primeiro ônibus disponível, uma viagem que ele só pôde fazer graças ao dinheiro da aposentadoria da sua avó. Como os ônibus clandestinos que sairiam aquela semana de Codó já estavam lotados, Francisco pegou um ônibus de linha, que é bem mais caro.

A carteira de trabalho de Francisco só foi assinada em São Paulo, o que é contra a legislação

Das vezes que foi para São Paulo, o pai de Francisco também não tinha a carteira de trabalho assinada em Codó, antes de fazer a viagem. Só nos últimos anos, quando Antônio passou a cortar cana esporadicamente em uma usina no Mato Grosso, transporte e carteira assinada passaram a ser uma realidade. As coisas mudaram em 2015, depois que os cortadores de cana da empresa paralisaram a produção por melhores salários: “Até o ano passado, o pessoal da usina vinha fichar [assinar a carteira de trabalho] em Codó e o ônibus era por conta deles. Mas dizem que o pessoal do Maranhão fez muita greve e eles [os empregadores] não vêm mais fichar aqui. Quem quiser ir, pode ir, mas só vai ser contratado quem não participou da greve”, conta.

Sem a assinatura da carteira de trabalho na cidade de origem dos migrantes ou a notificação para o Ministério do Trabalho e Emprego do transporte de trabalhadores, como determina a legislação, ninguém garante as condições dos ônibus que vão fazer o translado. Se o ônibus quebra no caminho ou um acidente acontece na estrada, a fatalidade vira ônus só do trabalhador.

São muitos os relatos de riscos graves à vida dos trabalhadores. Em 2013, quando 111 trabalhadores nordestinos foram resgatados de trabalho escravo nas obras de ampliação do Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, as vítimas relataram que o ônibus que os transportou ao estado teve que parar no meio da estrada quando o motor do veículo pegou fogo no meio do trajeto.

A falta de notificação ao ministério também dificulta a fiscalização das condições de alojamento, que é garantido pela legislação a quem vai trabalhar longe do seu lugar de origem.

“Conheci um lá que tirava 22 toneladas por dia. Só que ele viveu pouco. Não aguentou e arrebentou. Ele sentiu uma dor no corpo e dizem que estourou uma veia na cabeça dele”

Quando viajou pela primeira vez para cortar cana em São Paulo, em 2003, o pai de Francisco passava o dia debaixo do sol para ganhar o dinheiro que enviaria para sustentar a casa. O salário variava pela produção e Antônio, de tronco largo e braços grossos, tirava entre cinco e sete toneladas de cana por dia. Alguns dos trabalhadores até conseguiam cortar mais cana: “Conheci um lá que tirava 22 toneladas por dia. Só que ele viveu pouco. Não aguentou e arrebentou. Ele sentiu uma dor no corpo e dizem que estourou uma veia na cabeça dele. No meio de cinco mil homens, ele era o melhor lá. Tirava o prêmio do ano”, lembra o cortador de cana.

Antônio lembra quando cortava cana em São Paulo, ganhando por produtividade: “Conheci um lá que tirava 22 toneladas por dia. Só que ele viveu pouco”. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil
Antônio lembra quando cortava cana em São Paulo, ganhando por produtividade: “Conheci um lá que tirava 22 toneladas por dia. Só que ele viveu pouco”. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

As condições de trabalho que Antônio enfrentava eram degradantes. O alojamento, por exemplo, sempre foi mantido pelo pai de Francisco e seus colegas, que alugavam um barraco para três ou quatro pessoas por R$300 por mês. Panelas, fogão e geladeira eram todos comprados por eles, que ainda tinham que cozinhar o próprio almoço: “A gente acordava às quatro da manhã naquela correria. Prepara uma comidinha ali e vai avexado às cinco para o trabalho. Às vezes a comida ficava azeda, aí é ruim demais”.

Como o trabalho do filho de Antônio, na construção civil, é em meio urbano, Francisco conseguiu uma casa na periferia, mas também em condições precárias. Ele vive com Marta, com quem teve uma filha e pretende se casar, em uma ocupação na periferia de Santo André, zona metropolitana de São Paulo. Para chegar em sua casa, a rua apertada vira uma viela com chão acidentado de pedras. O casal convive há anos com ameaças de desapropriação do governo estadual. Eles temem que seu futuro seja como o dos vizinhos da frente: suas casas foram demolidas e os recém-desalojados recebem auxílio moradia de 400 reais.

Em Santo André (SP), Francisco vive com sua esposa e filha em uma ocupação na periferia da cidade. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil
Em Santo André (SP), Francisco vive com sua esposa e filha em uma ocupação na periferia da cidade. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Mesmo morando em uma cidade vizinha à do seu trabalho, ele não pode dormir todo dia em casa, pois o deslocamento até o trabalho leva mais de duas horas com transporte público. Como a situação dos outros trabalhadores é parecida, a empresa  mantém um alojamento na obra. Francisco, então, só consegue ver a mulher e a filha aos finais de semana e nas noites de quarta-feira.

Apesar das dificuldades, Francisco não pretende voltar a Codó, onde, para ele, só há perspectiva de emprego na lavoura. “Aqui é diferente, melhor pra se viver. Lá é só na roça, não tem outro jeito de trabalhar”, conta. E era na roça mesmo que ele trabalhava desde os 13 anos, ajudando o pai e toda a família a plantar arroz, feijão e mandioca.

“Aqui é diferente, melhor pra se viver. Lá é só na roça, não tem outro jeito de trabalhar”

Apesar de querer ficar, Francisco sente falta da família. Seu nome foi herdado da mãe, Francisca, como que por um presente: ele nasceu no dia em que a mãe completara 32 anos. A distância, aplacada por ligações quase sempre diárias, ainda não permitiu que Francisca conhecesse sua mais nova neta. A menina Isabela, de dois anos e cinco meses, é de São Paulo e, desde que nasceu, não sobra dinheiro para a viagem.

Isabela – filha de Francisco e Marta – ainda não conheceu sua avó, que vive no Maranhão. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil
Isabela – filha de Francisco e Marta – ainda não conheceu sua avó, que vive no Maranhão. Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk DGB_BW_Logo_RGB

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