Os sonhos de Frei Henri são tema de livro e homenagens no seu funeral

Apesar de ter nascido e morrido na França, o frei Henri Burin des Roziers quis ser enterrado em acampamento sem-terra no Pará. Um livro sobre ele será lançado hoje, no dia do seu enterro. Leia trechos da obra.
 14/04/2018

Pelo menos um dos seus sonhos será realizado. O frei e advogado francês Henri Burin des Roziers, que marcou o combate ao trabalho escravo e a luta pela terra no Brasil, morreu na França em novembro do ano passado. Antes de morrer, o frei Henri – como era conhecido – deixou registrado que gostaria de ser enterrado em um acampamento de trabalhadores sem-terra no Pará.

No acampamento, que leva seu nome, o funeral será uma das homenagens ao frei. Durante o evento será lançado o livro “Apaixonado por justiça: conversas com Sabine Rousseau e outros escritos”, que conta com alguns textos inéditos. Lançado pela Comissão Pastoral da Terra, organização em que Henri atuou por quase 40 anos, em parceria com a Comissão Dominicana de Justiça e Paz e a editora Elefante, o livro traz tradução inédita de uma entrevista concedida por Henri à historiadora francesa. Somam-se ainda textos do próprio frei, além de homenagens, após sua morte, de pessoas que se inspiraram na sua história.

Frei Henri morou quase 40 anos no Brasil e lutou pelos direitos dos sem-terra. Em 2004, esteve no acampamento da fazenda Inajaporã, em Santa Maria das Barreiras (Foto: João Laet)

O local onde o frei escolheu como sua última morada guarda episódios de pistolagem e violência contra as famílias de trabalhadores sem-terra. Localizado nas margens da estrada que liga Curionópolis a Parauapebas, os trabalhadores do acampamento Henri Burin des Roziers resistem aos riscos e ameaças há 8 anos. Com quase 2 mil hectares, a área foi destinada à reforma agrária e deve virar um assentamento. Quando isso acontecer, outro sonho de Henri será cumprido.

“Eu sonho, que quando eu morrer, eu seja enterrado no meio deles, no “meu acampamento”, e que, ao passarem, as crianças possam dizer: “Este é o túmulo daquele Frei Henri que lutava conosco pelo nosso direito à terra”.

Em “Apaixonado por justiça”, Henri fala de suas andanças, de suas impressões, da sua luta e, especialmente, dos seus sonhos. Leia, a seguir, trechos do livro.

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Meu sonho

Por Henri Burin des Roziers (09/10/2014)

Eu sonho que mude este modelo de desenvolvimento agrícola baseado no agronegócio e na produção industrial de monocultura para a exportação (soja, gado, cana de açúcar). Pois isso provoca a expulsão de pequenos agricultores, a violência contra os trabalhadores rurais, a concentração gigantesca de terras, a migração para a periferia das grandes cidades, a exploração da mão de obra até a forma de trabalho escravo contemporânea, a destruição da natureza e o desastre ecológico.

Quando eu passei nesta região amazonense de Xinguara, no Brasil, pela primeira vez, em 1979, tudo era floresta. Somente existia, por onde quer que fosse, cabanas de madeira e pequenas clareiras que aumentavam dia após dia. As imemoráveis famílias de migrantes vindas de diversas partes, jogadas neste Eldorado, começaram a enriquecer do comércio fácil destas madeiras preciosas, acácias, jatobás, aroeiras. Por toda parte ouvíamos o som das motosserras. A deflorestação tornou-se vertiginosa. Hoje, as florestas converteram-se em imensas terras ociosas e pastagens. Lá onde existiam 45.000 hectares de floresta há atualmente um criador de gado com 45.000 hectares de pastagens! O uso de agrotóxicos do agronegócio tornou-se intensivo e polui a vegetação e os rios da região. Na atualidade chegam grandes empresas mineradoras, nacionais e internacionais que exploram o ferro, o níquel, o ouro e poluem silenciosamente o solo e o subsolo.

[…]

Eu sonho que esta terra da Amazônia, assim diversificada e bela, dom precioso de Deus, essa terra que é a vida, nossa vida, nossa mãe, não se transforme num deserto humano nem ecológico.

Eu sonho que cesse esta violência contra os trabalhadores sem terra que lutam pelo seu direito à terra, e que continuem com sua coragem e com sua esperança.

Às vezes, à noite, uma estrela faz com que nos sintamos menos sozinhos, nos dá a coragem, nos dá novas esperanças, ilumina a chama da Esperança. Esperar o que? Esperar por quem? Há somente noites sem estrelas, onde o ser humano não sabe onde ir. Noite da solidão, da doença, do pranto. Noite das injustiças, da violência, do ódio, da fome, da indiferença, do medo. Tantas noites sem estrelas atravessam nossas vidas!

Mas, às vezes, à noite, uma estrela cintilante, fascina! Não é esta a noite escolhida por Deus para visitar a humanidade? Não é esta a noite que Jesus veio viver conosco? Não é esta a noite que a Estrela guiou aos reis magos até a manjedoura de Jesus?

“Eu sonho que a Amazônia, assim diversificada e bela, não se transforme num deserto humano nem ecológico.”

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Lá alto, no céu, uma estrela ainda brilha.

Eu sonho igualmente que as duzentas e quarenta famílias corajosas do acampamento sem-terra, que eles chamaram Frei Henri para me homenagear, possam viver em paz.

Elas sabem que, por razões de saúde, eu tive que retornar para receber tratamento médico na minha terra natal, na França, e pensam que eu não voltarei mais, pode ser mesmo que eu esteja morto. Esses sem-terra, jogados na lama pela mídia, considerados como a ralé pela opinião pública e as vezes pelas pessoas das igrejas, pobres de tudo, colocaram o meu nome ao seu acampamento, eu, rodeado de privilégios, de conforto e consideração, eu, tão em contradição com o Evangelho de Jesus, eu, seu irmão nas Bem-Aventuranças, como se eu fosse um destes pequenos, um destes preferidos de Deus! Há homenagem mais bela que esse em minha memória?

Eu sonho, que quando eu morrer, eu seja enterrado no meio deles, no “meu acampamento”, e que, ao passarem, as crianças possam dizer: “Este é o túmulo daquele Frei Henri que lutava conosco pelo nosso direito à terra”.

Ao retornar ao Brasil, eles insistiram para que eu viesse conhecer esse acampamento, situado a trezentos quilômetros de minha cidade de Xinguara. Viagem difícil, mas quanta acolhida! Que jornada inesquecível, quanta delicadeza, quanta atenção! Eles me contaram sua longa marcha para esta terra abandonada que eles sabiam pertencia ao Estado. Após ter andado mais de dez quilômetros eles se defrontaram com uma barreira de fazendeiros e seus capangas, armados, que atiraram contra eles. Eles que tiveram que acampar lá e só no dia seguinte, quando a polícia chegou, eles puderam ocupar esta terra de 400 hectares. Três anos depois, já é uma pequena cidade onde eles construíram uma escola de barro, uma grande sala de reuniões, uma bonita igreja.

“Sonho que os trabalhadores rurais sejam tratados como seres humanos e não como escravos”, escreveu frei Henri (acampamento Itamarati, em 2007) . Foto: João Laet

Mas o 5 de outubro de 2012, os fazendeiros voltaram, tendo cercado o acampamento com seus veículos e trincheiras, e, à noite, eles atiraram balas reais, semeando um clima de terror. Logo a polícia permaneceu durante o dia, mas retirou-se à noite e, à noite, os fazendeiros voltavam e atiravam, pensando que as famílias, aterrorizadas, partiriam. Eles permaneceram e, alguns dias depois, a decisão do juiz chegou, dando razão aos sem-terra. No entanto, os fazendeiros e seus homens armados ainda estão lá, intimidantes.

Eu sonho que os trabalhadores rurais que sofrem nas grandes explorações madeireiras, desmatando e clareando, perdidos no meio da floresta amazônica, sejam tratados como seres humanos e não como escravos […].

 

***

Eu sonho que cesse o culto ao bezerro de ouro.

Assistindo ao espetáculo da Cavalgada de abertura da Feira Agropecuária de Xinguara, o 18 de setembro, eu fiquei maravilhado pelo aspecto grandioso desse desfile: os inumeráveis cavalos todos ornamentados, com seus cavaleiros e amazonas, as carruagens, as velhas charretes puxadas por bois possantes… e mesmo uma imagem de nossa Senhora Aparecida, desfilando com um homem que a carregava. Eu olhei a apresentação de diferentes fazendas e particularmente aquelas do grupo Quagliato.

Em primeiro lugar, passou a fazenda Rio Vermelho, muito impressionante com um número importante de animais, e, liderando, uma grande faixa parabenizando a população de Xinguara. Nesse momento, eu me lembrei que 2080 hectares dessa propriedade não lhe pertencem, mas são terras públicas, propriedade do Estado federal, que Quagliato indevidamente se apropriou. Eu me lembrei também que Rio Vermelho foi classificada pelos serviços oficiais competentes como não cumprindo a sua função social, como o exige a Constituição, pois ela possui 11000 hectares em áreas limpas e de desmatamento ilegal. De resto, como esquecer as inumeráveis denúncias de prática de trabalho escravo nessa fazenda, feitas a partir de 1980!

A seguir, um desfile da fazenda Brasil Verde, igualmente muito bonita, com seus animais ornamentados, avançando após um grande estandarte onde estava escrito: “Parabéns, do Sindicato dos Grandes Fazendeiros”. Neste momento, me veio a memória que esta fazenda também foi objeto de denúncias por prática de trabalho escravo, que são a origem do processo em curso na Comissão Interamericana dos Direitos do Homem, no seio da Organização dos Estados Americanos.

Logo a seguir, havia as fazendas Colorado e São Sebastião. Como não recordar que Colorado foi denunciada por prática de trabalho escravo? Do mesmo modo que as fazendas Rio Vermelho e Brasil Verde, seu nome já foi mencionado na “lista suja” do Ministério do Trabalho.

Por último passou a fazenda Santa Rosa, com um impressionante e belo cortejo, que me fez lembrar que, como Rio Vermelho, este ano, a fazenda Santa Rosa foi classificada como improdutiva por não cumprir a sua função social.

Antes de morrer, em novembro passado, ele pediu que fosse enterrado em acampamento dos sem-terra no Pará (Fazenda Inajaporã, 2004). Foto: João Laet

Diante de todas essas constatações, eu me perguntei que devoção poderia ser feita a Nossa Senhora Aparecida? O grupo Quagliato é riquíssimo, proprietário de fazendas nos estados de Pará, de Goiás, de São Paulo, mas de onde vem essa riqueza? A história dessa riqueza não seria ela mesma edificada com o suor e as lágrimas do povo? Esse enriquecimento é realmente justo? Todos esses homens, membros do Sindicato dos grandes fazendeiros, acreditam eles que este enriquecimento injusto, segundo o Evangelho, pode continuar? O gado nestas regiões não se tornou ele um ídolo como o bezerro de ouro [conforme narrado] no Livro do Êxodo (Ex 32, 1-8)?

O dia dessa grande festa, onde o centro era o gado assim como a riqueza que ele produzia para aqueles [fazendeiros], o evangelho do domingo nos conta a parábola de Jesus relativa à “riqueza injusta”, que, por medida de prudência, seria preferível repartir (Lc 16,9).

Na comunidade de Santana do Araguaia, há uma grande escultura da Bíblia e, frente a ela, a alguns metros, há uma imensa estátua de um bezerro. O que escolher: o bezerro de ouro ou a Palavra de Deus? O Livro do Êxodo conta que o povo de Deus em sua peregrinação, para a terra prometida, se revolta contra esse Deus que o havia tirado da escravidão do Egito, porque sua lei, diferente daquela dos homens, era muito dura e, à causa dela, eles vieram adorar o bezerro de ouro.

“Eu sonho que a reforma agrária se faça mediante uma justa distribuição das terras e que se desenvolva a agricultura familiar, ecológica e sustentável.”

Eu sonho que o bezerro de ouro não se torne mais, nesta região, o deus de muitos.

Eu sonho Igrejas inspiradas pelo Espírito, fieis ao evangelho de Jesus de Nazaré, livres face as forças do poder do dinheiro, a serviço dos pobres, corajosos, não tendo medo de denunciar as injustiças, que vem das autoridades civis ou religiosas; Igrejas que não procurem honrarias e glória, que não sejam triunfalistas, que procurem a verdade e não a imponham.

Eu sonho com uma Igreja católica democrática, colegiada, comunitária, participativa, fiel ao espírito do Concílio Vaticano II. Eu sonho com Igrejas abertas a todo aquilo que é bom na humanidade, no mundo, nas pessoas. Eu sonho com Igrejas percebidas e reconhecidas graças a seu testemunho de humanidade na fidelidade ao Deus da vida e da libertação.

Eu sonho um país de um povo sem discriminação, onde todos os indígenas, negros, mulheres, homossexuais sejam reconhecidos como seres humanos, cidadãos iguais aos outros, dignos do mesmo respeito.

Eu sonho que a reforma agrária se faça mediante uma justa distribuição das terras e que se desenvolva a agricultura familiar, ecológica e sustentável.

Eu sonho de não ver mais, na beira da estrada, entre a estrada e a cerca de arame farpado do suposto proprietário, parados sobre um espaço de trinta metros de largura, numa distância de centenas de metros, por vezes quilômetros, centenas de famílias sobre barracas de palha, esperando um lote de terra; enquanto que do outro lado da cerca que eles não podem ultrapassar, sob a pena serem recebidos a bala, se estender milhares de hectares mato.

Eu sonho que a terra seja considerada somente em sua dimensão econômica de produção alimentar, mas também em sua dimensão antropológica, cultural, social, levando em consideração as tradições ancestrais de inúmeras populações da África e da América Latina, para os quais a terra faz parte de seu ser, de sua existência, de sua história, de sua religião de sua vida.

Eu sonho que o êxodo rural provocado pelo agronegócio não transforme definitivamente nossas cidades em imensas favelas, cortiços de desumanização, e droga, de prostituição, de violência.

Eu sonho que a força econômica e financeira do agronegócio não substitua ao poder do Estado, ao poder dos Estados, como já acontece em algumas partes do Brasil.

Eu sonho que os bens da natureza, terra, florestas, biodiversidade, córregos, rios, água, cessem de se transformar em mercadorias e sejam consideradas como bens da comunidade universal, como patrimônio da humanidade.

Eu sonho que a força cega do agronegócio e de seus agrotóxicos, em nome do lucro a todo custo, seja realmente percebido, reconhecido e neutralizado antes que ele provoque uma tragédia humana.

Eu sonho com a beleza da natureza, com a beleza da diversidade, com o ar puro, com a água cristalina, com o alimento saudável, com crianças cheias de alegria, de saúde física e mental, cidades boas de se viver.

Mas eu sonho com os dois milhões de seres humanos que morrem de fome, com os milhões de crianças de rua que são assassinados a cada dia, com os milhares de famílias que são cotidianamente expulsos de suas casas e de suas terras.

 

 

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