Raízen deve voltar a pagar horas de transporte de funcionários, decide Justiça

Desde novembro, quando a Reforma Trabalhista entrou em vigor, empresa deixou de pagar horas in itinere. Sindicatos estimam prejuízo de até 30% nos salários
Por Daniela Penha
 16/05/2018

A Justiça do Trabalho determinou que a Raízen Araraquara volte a pagar as horas in itinere, o tempo que é gasto pelos funcionários em deslocamentos relacionados ao trabalho. O pagamento estava suspenso desde a entrada em vigor da reforma trabalhista, em 11 de novembro.

As horas representam de 15% a 20% do salário dos funcionários, segundo a empresa afirmou ao Ministério Público do Trabalho (MPT). O Sindicato dos Empregados Rurais de Araraquara, além dos sindicatos de Guariba, Jaú e Ibaté, que também têm funcionários da empresa, estimam que a perda para os trabalhadores possa chegar a 30% do salário.

A Justiça estabeleceu multa diária de R$ 5 mil por trabalhador atingido caso a empresa não retome o pagamento. A determinação, tomada em caráter liminar no dia 9 de maio, se aplica apenas à unidade da empresa em Araraquara, São Paulo. A empresa conta com 1.167 funcionários, a grande maioria afetada pelo corte, nas estimativas do procurador Rafael de Araújo Gomes, autor da ação civil pública que motivou a decisão judicial. 

 

A Raízen, que afirma em seu site ser a principal fabricante de etanol do país e a maior exportadora individual de açúcar no mercado internacional, informou em nota enviada à Repórter Brasil que ” “cumpre integralmente a legislação trabalhista vigente no Brasil”. A empresa afirma que “está em fase adiantada da negociação com a grande maioria dos sindicatos” e que pretende recorrer da decisão (leia na íntegra).

As horas in itinere correspondem ao tempo que o funcionário leva para chegar até o local de trabalho de difícil acesso, em transporte fornecido pela empresa. Segundo um funcionário da Raízen que trabalha na região da Jaú, ele leva mais de duas horas para chegar às fazendas mais distantes em percurso no ônibus da empresa.

Em sua decisão, o juiz João Batista Cilli Filho, da 3º Vara do Trabalho de Araraquara, cita que o corte das horas prejudica a “segurança alimentar” e “estabilidade econômica dos empregados, com perigo de dano irreparável à subsistência”, além de ferir o princípio da proteção evolutiva, “que protege os trabalhadores de retrocessos sociais”, o princípio da irredutibilidade salarial, o princípio geral dos direitos adquiridos, respaldados na Constituição Federal, e a CLT (Consolidação das Leis de Trabalho).

O procurador Rafael Gomes ajuizou a ação após uma tentativa frustrada de mediação promovida pelo Sindicato dos Empregados Rurais de Araraquara, perante o Ministério do Trabalho, com a Raízen. Tanto em audiência com o sindicato quanto em petição, a empresa admitiu que iria realizar o corte das horas rodoviárias baseada na Reforma Trabalhista, segundo ação do MPT.

“Dessa forma, não houve mera intenção de suprimir o pagamento de horas in itinere, como consignado na notificação acima mencionada, mas sim adequação da prática da empresa à nova legislação, que deixou de considerar o tempo de trajeto como parte da jornada de trabalho”, comunicou a empresa, em petição de 2017.

O procurador Rafael entende que o tempo que o trabalhador leva do trabalho até a empresa fica “à disposição do empregador”.

 

“Resta evidente que o fornecimento de transporte não ocorre, por parte da reclamada, por liberalidade ou pela intenção de conceder alguma comodidade ao empregado, mas por estrita necessidade de serviço. Se ela não fornecesse transporte aos trabalhadores rurais, nenhuma colheita ou plantio seriam realizados”, conforme consta na ação.

Nela, o procurador argumenta ainda que a reforma trabalhista foi realizada sem a devida participação social. “Promover uma ampla reforma da legislação trabalhista, construída e continuamente alterada durante mais de 70 anos, sem permitir a completa compreensão e a participação popular, implica déficit democrático que compromete a legitimidade da nova legislação, em muitos pontos claramente prejudicial aos trabalhadores”.

Ele ressalta que mesmo antes da reforma, proém, a Raízen já fora condenada em “centenas de reclamatórias trabalhistas” pelo pagamento inadequado – ou não pagamento – das horas in itinere.

Em fevereiro de 2018, em audiência administrativa, o MPT propôs a celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Raízen, recurso novamente negado pela empresa. A ação foi ajuizada no dia 8 de maio e a decisão liminar publicada no dia seguinte.

Em entrevista à Repórter Brasil, o procurador Rafael afirmou que a liminar, embora seja o começo do caminho, é um passo na luta para manutenção dos direitos trabalhistas. “A esperança é de que prevaleça esse entendimento. Mas é preciso juntar a iniciativa de propor as ações com a sorte de que elas caiam com juízes que pensam da mesma maneira. Infelizmente, nós temos juízes que estiveram, inclusive, envolvidos com a reforma trabalhista. A liminar é só um primeiro passo. Tem muitos outros pela frente”.

Infrações recorrentes

Em novembro do ano passado, o MPT conseguiu que a Raízen recontratasse 250 funcionários demitidos da usina Tamoios, de Araraquara. A demissão em massa ocorreu no dia 13 de novembro, dois dias após a aprovação da Reforma Trabalhista, que abre precedentes para esse tipo de conduta.

Após a ação, a Raízen negociou com o sindicato uma demissão acordada. Mas a obrigatoriedade da negociação prévia, que também é questionada pela ação, seguirá para julgamento. As ações não se limitam à área de Araraquara. A empresa recebeu 317 autos de infração trabalhista entre 2012 e 2016, conforme pesquisa da Repórter Brasil.

O trabalhador

Na região de Jaú, Antônio (nome fictício), de 41 anos, não recebeu a notícia da liminar com entusiasmo. Há sete meses ganhando R$ 570 menos do que ganhava, a preocupação é maior que o otimismo. “Eu tenho dois filhos. O medo maior é do desemprego. A gente prefere se sujeitar a certas coisas do que ficar sem trabalhar”.

Ele atua na Raízen há mais de 20 anos. Conta que, desde novembro, não passa mais o cartão de ponto ao entrar no ônibus que leva as fazendas, como fazia. “Hoje, precisa chegar ao local de trabalho para passar o cartão. E, para chegar, varia bastante: tem fazendas que leva 10 minutos, mas tem outras, lá pela região de Iacanga e Arealva, que vai duas horas e meia”.

O valor cortado pela empresa é equivalente ao que Antônio paga pela prestação da casa própria. “Comida a gente não deixa faltar. Jamais! Mas as outras coisas, cortamos tudo: roupa, sapato. Para não ter que cortar o que é essencial”.

A esposa é diarista e o salário que ele ganha como trabalhador rural é a renda principal da casa, com os filhos de nove e cinco anos. Antônio conta que trabalha no setor agrícola desde os 16 anos. “No campo, a gente tem liberdade. Na indústria, fica preso o dia todo”.

Em tantos anos, presenciou transformações – ainda que lentas. “Antes, a situação do trabalhador era bem pior. Foi melhorando aos poucos”. Agora, teme o retrocesso, que se faz presente a passos largos. “Já tem companheiro meu que não dá conta mais de pagar o aluguel. É triste…”. Mas, segue: “É como dizem: melhor pingar, do que secar”.

“Redução de danos”

A decisão judicial, embora em caráter provisório, chegou como esperança aos sindicatos que também buscam negociação com a Raízen para o restabelecimento das horas in itinere. Os presidentes dos sindicatos de Jaú, Guariba e Ibaté confirmam que os trabalhadores de suas regiões também estão sem receber pelas horas de transporte desde 11 de novembro.

“A Raízen foi a primeira a tirar a hora in itinere. Há um enfrentamento muito grande com os trabalhadores”, diz José Luiz Stefanin Junior, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaú. “Ainda que fique restrita à Araraquara, é uma decisão. A gente tem muita confiança no Judiciário”, complementa.

“A empresa simplesmente parou de pagar. Queriam um acordo que não ajudava o trabalhador, nós recusamos, e eles estão sem receber”, reclama Wilson Rodrigues da Silva, do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba.

Aluísio José dos Santos Filho, do Sindicato dos Empregados Rurais de Ibaté, relata que, em negociação com os trabalhadores, a empresa se comprometeu a pagar as horas retroativas de novembro a maio e, a partir deste mês, quando entra um novo acordo, o valor médio das horas deverá ser repassado através de ticket alimentação.

De toda forma, há perda, ele diz. Já que os valores em ticket não são levados para cálculos de pagamento férias, décimo terceiro, FGTS, entre outros direitos trabalhistas. “Não deu para conquistar, apenas para amenizar as perdas. É uma política de redução de danos”.

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