São Francisco

Uma romaria contra a transposição

Cerca de mil pessoas fazem celebração religiosa em Propriá (SE), às margens do Velho Chico. Ato encerrou o 3º Congresso da Cáritas, que aprovou uma moção de repúdio ao projeto de transposição das águas do rio
Maurício Thuswohl
 14/11/2006

Uma romaria que percorreu a cidade sergipana de Propriá e terminou às margens do São Francisco, próximo à divisa com Alagoas e ao encontro do rio com o mar, marcou no domingo (12) o encerramento do 3º Congresso da Cáritas Brasileira. A caminhada religiosa foi também um ato de repúdio ao projeto de transposição das águas do rio São Francisco. Debaixo de um sol inclemente, sob o céu de um azul marcante e imaculado de nuvens de Propriá, cerca de mil romeiros vindos de várias cidades do Nordeste se juntaram aos participantes do congresso, que foi realizado em Aracaju, para um emocionante momento de demonstração de fé popular.

Ao final da romaria, que durou três horas, foram distribuídas pequenas moringas de barro para que cada um levasse consigo um pouco das águas do Velho Chico, num gesto simbólico que o presidente da Cáritas, Dom Demétrio Valentini, definiu como “transposição do bem”. Vários romeiros banharam-se de corpo inteiro no rio e muitos foram às lágrimas quando todos se deram as mãos para cantar a belíssima oração de São Francisco de Assis.

Partindo da entrada da cidade, a caminhada teve quatro paradas até a celebração final conduzida pelo bispo da Diocese de Propriá, Dom Mário Sivieri. Numa das paradas, em outro momento de forte emoção, foram lidos vários nomes de “mártires da missão cristã por transformação social no Brasil”. Entre os nomes lembrados, alguns conhecidos em todo o país, como Padre Josino, a missionária Dorothy Stang e o membro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Vicente Cañas.

Durante toda a romaria, os cânticos de cunho religioso e social que são marca registrada da Cáritas no Brasil se misturavam às palavras de ordem contra a transposição do São Francisco: “Revitalização, sim! Transposição, não!”, gritaram os romeiros. Na celebração final, às margens do rio, foi lida a moção de repúdio à transposição aprovada no 3º Congresso. O texto foi assinado por representantes de 160 Cáritas Diocesanas no Brasil, e recebeu também a adesão de 15 seções da Cáritas de outros países e da diretoria da Cáritas Internationalis.

Logo no início, a moção “reafirma solidariedade aos povos da bacia hidrográfica do rio São Francisco e a todas as pessoas que vivem no Semi-Árido brasileiro” e manifesta “indignação em relação ao projeto de transposição tecnicamente denominado Projeto de Integração de Bacias Hidrográficas”. O texto admite que “mesmo com a média anual de 750 mm/ano de chuva no Semi-Árido, os povos da região vivem numa situação catastrófica no que se refere à água para os diferentes usos necessários para uma vida de qualidade”. Considera, no entanto, que “a causa maior” dessa realidade não é uma questão natural, mas “está no histórico processo de privatização das fontes existentes e/ou construídas com os recursos e investimentos públicos”.

O documento aprovado no 3º Congresso da Cáritas Brasileira pede a revitalização ambiental do rio São Francisco e diz que “pesquisadores e estudiosos vêm confirmando a sabedoria popular que afirma não ser necessário fazer esta transposição para garantir acesso à água para consumo humano e dessedentação dos animais”. A moção lembra que o projeto original está “barrado pela via jurídica” e que “o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que a obra, orçada em R$ 4,5 bilhões, não vai alcançar os resultados socioeconômicos anunciados pelo governo federal, principalmente no que tange ao público beneficiado”.

Frutas e camarões
Sem citar diretamente Ciro Gomes, o documento afirma que “o próprio ex-ministro da Integração Nacional já reconheceu em debates que grande parte da água que se pretende transpor (em torno de 70%) seria utilizada para a ampliação do agronegócio de frutas irrigadas e da carcinicultura”. A moção ataca o governo federal que “teima em implementar o projeto e dá, com isso, demonstração clara de comprometimento com as elites empresariais e com interesses de aliados políticos”. Afirma também que o governo Lula demonstra “descaso com a natureza e com a situação de calamidade em que se encontra o rio São Francisco e prefere reeditar a indústria da seca, agora travestida de hidronegócio”.

Membro do programa de Convivência com o Semi-Árido desenvolvido pela Cáritas, Luís Carlos Mandela afirmou que a escolha de Sergipe como local do congresso da entidade serviu “para levar uma mensagem à sociedade brasileira sobre a situação de calamidade em que se encontram o rio São Francisco e várias comunidades do Semi-Árido e dizer que a transposição não vai trazer solução para essa realidade de pobreza, de miséria e de analfabetismo”.

Mandela afirma que o governo criou a ilusão de que “a transposição vai levar água para os pobres, que não têm água para beber ou produzir, e por isso o projeto conta com a solidariedade de parte da sociedade”. Ele, no entanto, acha que esse jogo ainda pode virar: “A partir do momento em que as pessoas começam a conhecer o real projeto, o real resultado que ele vai trazer apenas para a produção de camarões em cativeiro e para o agronegócio, esse argumento cai por terra e as pessoas começam também, até mesmo nas ditas bacias receptoras, a se posicionar contra a transposição”, disse.

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