Artigo – Na iminência do primeiro equívoco

O presidente Lula disse que quer fazer a transposição as águas do rio São Francisco. Antes, porém, é preciso que se discutam primeiro os processos que venham a promover a revitalização de sua bacia hidrográfica
Por João Suassuna
 11/07/2003

Recife – Na campanha presidencial de 2002, entre os candidatos com maiores chances de dirigir o País, Lula foi o mais sensato com relação à condução das questões do rio São Francisco. Sobre a transposição de suas águas, dizia na ocasião que, por se tratar de um projeto polêmico e para se chegar a um denominador comum, as discussões deveriam ser a tônica maior de todo esse processo.

Na realidade, após seis meses de governo, o assunto da transposição voltou à baila, desta feita com o presidente já falando na mídia em realizar o projeto a todo o custo, visando a solução dos problemas de abastecimento do Nordeste, em especial os problemas de sua região semi-árida. Disse o presidente em seu pronunciamento à nação (Jornal da Globo do dia 8 de julho):

“Não importa se vai vir do Nilo, mas vai chegar. O importante é que devemos a água para uma região empobrecida. Eu agora acabei de fazer um decreto nomeando o meu vice José Alencar para coordenar um grupo de trabalho para fazer definitivamente a transposição das águas para o nordeste brasileiro”.

Para nós, que estamos envolvidos com esse tema há bastante tempo, o seu tratamento já começa a tornar-se um tanto enfadonho. O filme está sendo igualzinho ao de governos anteriores, ou seja, estão faltando discussões e, conseqüentemente, informações mais precisas para embasar a tomada de decisões pelo chefe da nação. É o vício do “vamos fazer”, com os riscos de não existirem soluções para os problemas que certamente irão surgir.

Apenas lembraria à sociedade que esse foi o principal erro cometido pelo antecessor do presidente Lula, quando apostou no potencial do Velho Chico para satisfazer a todos os usos presumíveis, inclusive o de abastecer seis milhões de pessoas no Nordeste.

Sobre essas questões, lembraria que o São Francisco, além de ser um rio hidrologicamente pobre, com vazão média de apenas 2.800 m³/s (o rio Tocantis, com a mesma área de bacia, possui uma vazão média de 11.800 m³/s), é um caudal de múltiplos usos, pois, além de garantir a geração de mais de 95% de toda a energia demandada no Nordeste, tem um polo irrigável importante para o desenvolvimento da região, o qual vem dando sinais de esgotamento, dado o descaso com o ambiente natural por parte do homem que reside na sua bacia. Além do mais, o nordestino não pode apresentar-se desmemoriado com relação às conseqüências da mais séria crise energética da sua história, em 2001.

Cremos que é importante, em um primeiro momento, iniciar-se um exaustivo processo de discussão sobre as questões do dia-a-dia do São Francisco, principalmente no tocante à geração de energia versus a irrigação praticada em sua bacia; às questões dos assoreamentos existentes e motivados pelos desmatamentos indiscriminados ao longo de suas margens; aos problemas da poluição de suas águas pelos excessivos lançamentos de esgotos; ao abastecimento das populações; à diminuição do pescado e à navegação, entre outros. Em suma, é preciso que se discutam primeiro os processos que venham a promover a revitalização de sua bacia hidrográfica e, a partir daí, dar seqüência ao processo transpositório de suas águas.

Sobre essas questões, em recente pronunciamento no Senado Federal, em Brasília no último dia 07 de julho, o ex-ministro de Minas e Energia e atual senador José Jorge destacou que “a gestão dos recursos hídricos, tendo a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e com vista aos usos racional e múltiplo de água, constitui-se na alternativa de se administrar, da melhor forma possível, os inevitáveis conflitos entre os diferentes atores envolvidos”.

Para o senador, o rio São Francisco apresenta um indesejável risco hidrológico, o que exige atenção redobrada quanto ao uso de suas águas, fator esse ignorado, como se não houvesse irrigação e o estoque de água de Sobradinho – atualmente com 40% de sua capacidade útil – estivesse em níveis satisfatórios, sem haver, portanto, a probabilidade de novos racionamentos de energia, como ocorreu em 2001.

Corroborando o posicionamento do senador José Jorge, a atual ministra de Minas e Energia do governo petista, Dilma Rousseff, em pronunciamento a políticos e empresários do setor elétrico em São Paulo (na mídia do último dia 08 de julho), mostrou-se preocupada com a falta de investimentos nesse setor, fazendo, inclusive, menção à possibilidade de voltarmos a ter racionamentos de energia no ano de 2007, caso esses investimentos não sejam realizados. Na nossa previsão, a contar com a permanência desse quadro, os racionamentos podem ocorrer ainda no governo Lula.

Isto posto, entendemos que o atual governo não pode simplesmente deliberar sobre o uso das águas do São Francisco, sem antes ouvir a sociedade – principalmente os técnicos – sobre o assunto.

Acerca dessas questões e para atingir tais objetivos, é preciso apoiar a Agência Nacional de Águas (ANA) e o recém-instalado Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, proporcionando-lhes os meios necessários para que possam realmente atuar de forma independente e autônoma, nas decisões necessárias à solução dessas velhas questões, principalmente quanto ao plano de investimentos para revitalização de sua bacia. Caso o governo federal venha a iniciar o processo transpositório do São Francisco sem a anuência das instituições acima mencionadas, certamente estará cometendo o seu primeiro e grande equívoco, o que na realidade será uma lástima.

João Suassuna , engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, é considerado um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.

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