A proposta orçamentária do governo federal para 2005 chegou ao Congresso Nacional no final de agosto passado, assegurando recursos para a revitalização do rio São Francisco. Para a mencionada obra, considerada a mais importante do orçamento em questão e que precederá a transposição das águas do Velho Chico, foi reservado cerca de R$ 1 bilhão visando a preparação de condições ambientais adequadas para o desvio do fluxo de suas águas para áreas do semi-árido nordestino: a mais importante obra e, seguramente, a mais polêmica, pois o que se vem divulgando na mídia na atualidade é uma nítida confusão de conceitos existente entre as ações de revitalização da bacia e da transposição de suas águas para o benefício de 8,5 milhões de pessoas no Nordeste.
O ato da transposição de águas em si é muito simples de se entender: trata-se do transporte de um determinado volume de água entre bacias distintas, a exemplo da transposição de águas da bacia do São Francisco para a bacia do rio Piranhas/Açu, no Rio Grande do Norte, a qual, geograficamente, não pertence aquela primeira (não confundir com adução de água, que é o transporte volumétrico de um local para outro dentro da própria bacia hidrográfica, a exemplo da retirada de água do rio São Francisco para o abastecimento de localidades pertencentes a sub-bacia do rio Brígida, em Pernambuco, contida na bacia do São Francisco).
Já o conceito de revitalização diz respeito à recuperação de alguns componentes ambientais da bacia, os quais, na maioria das vezes, foram degradados pela ação humana. Nesse caso, tratam-se de ações necessárias que dizem respeito à recuperação da vegetação ciliar e dos solos; do desassoreamento da calha do rio; da melhoria da qualidade das águas através do tratamento adequado dos esgotos sanitários e dos dejetos industriais lançados no rio, dentre tantas outras. Portanto, em tais condições, tornam-se inadequadas as ações da transposição, sem antes terem sido reparados os danos causados ao ambiente. É exatamente nesse cenário em que existe uma enorme confusão. O governo se dispôs a iniciar o processo de revitalização como ação precedente da transposição, mas, para a surpresa da todos deflagrou o processo de transposição de suas águas a todo custo, descumprindo inexplicavelmente o que havia sido acordado com as instituições responsáveis pela condução das questões sanfranciscanas.
Nesse sentido, foram inúmeras as manifestações de repúdio para com essa decisão, a exemplo daquela manifestada pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que não concordou em absoluto com essa decisão unilateral. Pela lei, cabe ao comitê indicar como serão usadas as águas da bacia do São Francisco. Segundo o secretário-executivo Luiz Carlos Fontes, “o governo descumpriu o acordo com o Comitê. A transposição é uma obra cara e desnecessária. O conflito está instalado. É inimaginável que um governo democrático aja assim, desrespeitando as posições dos representantes da sociedade”.
Além das críticas contundentes do Comitê, alguns membros da sociedade científica se manifestaram com relação ao assunto, a exemplo do pesquisador João Abner Guimarães Júnior, doutor em recursos hídricos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e um dos maiores especialistas no assunto. Ele publicou recente artigo intitulado “O Lobby da Transposição”, no qual vincula o projeto de transposição à existência de um lobby poderoso que se encontra infiltrado na máquina do Estado defendendo a manutenção da velha política de grandes obras hidráulicas para o Nordeste, a verdadeira "indústria da seca" na região. Segundo o pesquisador, sob o ponto de vista legal, deve-se destacar que a Lei Federal nº 9.433, de 1997, recomenda o uso prioritário dos recursos hídricos para o consumo humano e dessedentação dos animais apenas em situação de escassez. Nesse sentido, não tem o menor propósito se levar água do São Francisco para o Rio Grande do Norte, pois esse fato não corresponde à realidade das principais bacias receptoras daquele Estado, como é o caso da bacia do Piranhas-Açu, com um consumo humano de apenas 1,3 m³/s, que representa um pequeno percentual se considerada a disponibilidade efetiva de cerca de 17 m³/s, a jusante da barragem Armando Ribeiro Gonçalves.
Envolvidos também com essas questões há cerca de uma década, participamos de um encontro internacional sobre transposição de bacias hidrográficas promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no Recife, em agosto passado e divulgamos seus resultados. Nele, foram reunidos os principais expoentes da hidrologia nacional, que analisaram as questões da transposição do rio São Francisco nos seus múltiplos aspectos, tendo-se chegado à conclusões extremamente interessantes:
– é público e notório que no momento o Nordeste possui potencial hídrico suficiente para o atendimento das necessidades básicas de sua população;
– a magnitude dos investimentos e a natureza complexa dos projetos da transposição sinalizaram para a necessidade de estudos integrados e abrangentes que visem ao desenvolvimento regional. Nesse sentido, houve consenso entre os técnicos sobre a idéia de se começar a executar os projetos estruturais, partindo-se das bacias receptoras de jusante (Estados receptores) para a bacia exportadora de montante (bacia do São Francisco), através do uso integrado do potencial hídrico existente em cada um dos estados envolvidos no projeto, da otimização das disponibilidades de água e da confirmação de demandas, de modo a assegurar que a transposição constitua uma alternativa complementar e não implique no abandono ou mesmo na subutilização de fontes locais de água, garantindo intervenções capilares de ponta que propiciem a obtenção de efeitos benéficos nas bacias. Ficou claro, portanto, que é preciso, em primeiro lugar, se formar a infra-estrutura hidrológica necessária nas regiões receptoras, para, no futuro e dependendo das necessidades, se estabelecer um processo coerente de recebimento das águas do São Francisco para a continuidade do desenvolvimento regional.
Isso posto, entendemos que se deva tratar essas questões com mais prudência sem abrir mão do rigor que a ciência exige para tais casos. Portanto, cabe aos nossos dirigentes encontrar caminhos que levem ao convívio harmonioso entre as instituições envolvidas com as questões sanfranciscanas, as quais têm-se dedicado à promoção do bem estar de toda coletividade.
João Suassuna é engenheiro agrônom, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.