Artigo – Transposição: Pernambuco se define ao apagar das luzes

Estados doadores e receptores da água do São Francisco firmaram posição desde o início da divulgação das ações do projeto pelo governo federal e continuam debatendo essas questões interna e externamente. Pernambuco ficou numa posição de passividade, apenas aguardando as notícias sobre o andamento do projeto para se posicionar e nada mais
Por João Suassuna
 23/05/2005

Foi editada no Diário de Pernambuco do dia 12 de maio corrente, um dia após a publicação, no Diário Oficial da União, da licitação dos lotes previstos no projeto de Transposição do rio São Francisco, matéria intitulada “Transposição pode ficar 15% mais cara”, na qual o Secretário de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco, Cláudio Marinho, reivindica maiores volumes do rio São Francisco em benefício do seu estado. Segundo a matéria, a idéia é dobrar a vazão original de 10 m³/s, aduzida do Eixo Norte do projeto para o açude Entremontes, pertencente ao estado, o que permitiria, naquela represa, uma tomada d`água em volumes suficientes para o abastecimento da região de Ouricurí, alterando o traçado original do Canal do Sertão. Este previa o transporte de água da barragem de Sobradinho até aquela localidade sertaneja. Já no Eixo Leste do projeto de transposição, em cujo traçado original está prevista uma tomada d`água de 8 m³/s, beneficiando a bacia do rio Ipojuca na altura do município de Arcoverde, o governo pretende a extensão do Ramal do Agreste até o município de Gravatá, onerando em cerca de 15% o custo total do empreendimento.

Diante desses novos fatos – não bastasse o encarecimento da obra -, dois pontos precisam ser esclarecidos pelas autoridades pernambucanas, para uma melhor compreensão da população acerca da participação de Pernambuco no projeto. O primeiro diz respeito aos novos volumes que seriam aduzidos do Eixo Norte, para o abastecimento da região de Ouricurí, os quais iriam superpor-se ao abastecimento que já vem sendo realizado pela Adutora do Oeste naquela região, cujas águas são bombeadas do Velho Chico na altura do município de Orocó. Aliás, essas novas ações pretendidas pelo estado vêm confirmar as críticas que têm sido feitas por técnicos ambientalistas (aí nos incluímos), segundo os quais a maior parte dos volumes retirados pela transposição do rio São Francisco, seria utilizada no agronegócio, principalmente na irrigação de frutas, e não no abastecimento das populações necessitadas conforme apregoado pelas autoridades governamentais. O segundo diz respeito à qualidade das águas do Eixo Leste que iriam chegar até a cidade de Gravatá, município pertencente à bacia do rio Ipojuca, cujo caudal encontra-se atualmente em situação deplorável de abandono, com suas águas extremamente poluídas pelos lançamentos de esgotos in natura (domésticos e industriais), advindos das cidades ribeirinhas, dentre elas Caruaru, a segunda maior cidade pernambucana, com cerca de 400 mil habitantes. Sem haver, primeiramente, a revitalização da bacia do Ipojuca, o ato de transpor as águas do São Francisco para o seu leito significará, na nossa ótica, desperdício de tempo e de dinheiro público, pois o que se irá conseguir com isso é apenas a diluição da água contaminada pelos dejetos humanos que atualmente corre a céu aberto em toda a bacia hidrográfica daquele rio.

Essa atitude do governo do estado, de certa forma, não nos surpreendeu. Muito pelo contrário. Cremos que acertamos mais uma vez nas nossas previsões, pois ao longo de uma década de trabalho, em sua grande parte no tratamento das questões sanfranciscanas, temo-nos deparado com fatos no mínimo curiosos. Os estados exportadores das águas do rio São Francisco localizados abaixo de Pernambuco (Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais) sempre se manifestaram contrários ao projeto de transposição, pelo fato de não terem nenhuma participação efetiva no mesmo, sendo apenas meros exportadores de suas águas. Já aqueles localizados acima de Pernambuco (Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará) sempre se manifestaram favoráveis, por serem estados receptores, portanto os reais beneficiários de suas águas. Por incrível que isso possa parecer, Pernambuco, que é um estado ao mesmo tempo exportador e receptor das águas do rio São Francisco, possuidor dos dois pontos de captação das águas do projeto e, ainda, por se encontrar no divisor dessa disputa, sempre se mostrou passivo ao processo transpositório. Um estado que sempre permaneceu “em cima do muro”. Só agora com a oficialização do projeto, pretende entrar no processo reivindicatório para ter acesso ao seu quinhão.

Na nossa ótica, a edição da matéria do Diário do dia 12 de maio oficializou a participação de Pernambuco no projeto. O estado, agora, mostra-se favorável às suas ações e quer nele tomar partido. Isso é obvio. Apenas gostaríamos de lembrar que o rio São Francisco já não dispõe dos volumes alocáveis, necessários à satisfação das demandas exigidas pelo projeto. Atualmente, o rio possui um volume alocável de apenas 25 m³/s, os quais serão fornecidos a um projeto que irá demandar uma média de 65 m³/s. Além do mais, a transposição irá operar, em sua plenitude, em apenas 40% dos anos e, portanto, estará sempre à mercê das águas da represa de Sobradinho, quando esta estiver com 94% de sua capacidade preenchida, o que, segundo a opinião de hidrólogos filiados à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), é um fato de difícil ocorrência. Portanto, não seria possível o fornecimento dos volumes excedentes reivindicados por Pernambuco, sem se por em risco todos os investimentos já realizados ao longo da bacia hidrográfica do rio São Francisco. Para se ter idéia dessa problemática, só no setor elétrico foram aplicados, na região, cerca de US$ 13 bilhões e o pólo de irrigação, com cerca de 340 mil ha irrigados, vem crescendo a uma taxa de 4% ao ano, exigindo volumes hídricos proporcionais à sua ampliação. Essas características têm resultado em situações conflituosas em ambos os setores (elétrico e irrigacionista), cujo principal agente causador é o uso das águas de um rio que já vem dando sinais de exaustão, tendo como prova principal o racionamento de energia ocorrido em 2001.

O que na realidade faltou ao governo de Pernambuco foi o indispensável aprofundamento das discussões técnicas sobre o projeto. Estados doadores e receptores firmaram posição desde o início da divulgação das ações do projeto pelo governo federal e continuam debatendo essas questões interna e externamente. Pernambuco ficou numa posição de passividade, apenas aguardando as notícias sobre o andamento do projeto para se posicionar e nada mais. Na nossa ótica, a atitude tomada pelo governo de Pernambuco, um dia após a oficialização das licitações dos lotes do projeto, deixou o estado em situação desconfortável perante a sociedade científica nordestina. Esse novo momento nos fez relembra
r uma nota que editamos na página da Fundação Joaquim Nabuco, em abril de 2000, intitulada “Transposição: a gerência da torneira”, na qual apontávamos as ingerências políticas como principais responsáveis, em uma situação de seca no Nordeste, pela ineficiência no abastecimento das populações, cujos resultados seriam traduzidos em enérgicas ações reivindicatórias, comparadas a verdadeiras reações em cadeia de uma explosão atômica, na busca da água para o atendimento das suas necessidades.

Pelo visto, as previsões contidas na nota do ano 2000, infelizmente estão-se concretizando em nosso estado natal. Através de seu gesto, Pernambuco deu início a uma reação em cadeia particular no tratamento dos seus recursos hídricos. De toda sorte, esperamos que essa reação em cadeia seja tratada com os cuidados devidos pelas autoridades pernambucanas e que ela seja realizada, prioritariamente, no abastecimento de sua população carente.

João Suassuna é engenheiro agrônomo, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina

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