Guariba, 1984: o ano que não quer acabar

Mudou pouco a vida dos cortadores de cana que trabalham no interior de São Paulo desde que estourou grande revolta de 1984. Enquanto se recupera de um acidente, o maranhense Francisco Silva da Conceição sonha em voltar ao trabalho, que lhe dá R$ 2,50 por tonelada cortada
Por Carlos Juliano Barros
 07/09/2005

“Vou anotar direitinho o seu nome: é Francisco Conceição da Silva?”, perguntei com um sorriso no rosto, percebendo que aquele senhor simpático não parava de falar por um segundo sequer. “Não. É Francisco Silva da Conceição”, ele se apressou em corrigir. Magro de chamar atenção, com os dentes em petição de miséria e a mão esquerda imobilizada por um curativo que é obrigado a trocar de três em três dias, Francisco queria realmente falar. O fato é que há muito tempo ninguém se predispunha a ouvi-lo.

Ele estava sentado com dois colegas na mureta de uma casa simples de esquina – onde sete pessoas grandes, além de um casal de crianças, amontoam-se em dois quartos e uma sala – na área central de Guariba, cidade a mais ou menos 60 quilômetros de Ribeirão Preto. Em março deste ano, todos deixaram um povoado no município de Codó, no Maranhão, para tentar a vida nas lavouras de cana-de-açúcar nesta porção do interior de São Paulo. É uma região bastante desenvolvida que já foi apelidada de “Califórnia brasileira”, e que hoje responde por mais da metade da produção nacional de açúcar e álcool.

Era a primeira vez que Francisco seguia os passos dos colegas de profissão e desembarcava no Estado mais rico do Brasil, à procura de emprego. Ele derramava sua história em tom de lamentação. “Quando tem que acontecer, os pés levam o corpo para a sepultura”, profetizou, culpando o destino pelo acidente que, desde julho passado, impossibilitou-o de retornar à lida. Ele voltava de mais um dia comum de trabalho, em Sertãozinho. Porém, ao descer do ônibus que transportava a turma de dezenas de cortadores de cana de que fazia parte, desequilibrou-se e caiu com todo o peso do corpo em cima da mão esquerda, bem em frente àquela mesma casa onde conversávamos. Ele apontava com a mão boa o local exato do acontecido. Os ossos da outra foram destroçados no impacto da queda.

Sem pedir licença, atravessou porta adentro e voltou logo em seguida com uma pasta escolar de criança, decorada com o desenho de um personagem da Disney que não consegui reconhecer. Tirou de lá o raio-x feito no hospital, o holerite que mostrava o pagamento que recebia da usina. Enfim, todas as provas que demonstrassem a veracidade da história que contava com uma estranha empolgação. No atestado feito pelo médico, o parecer era “fratura exposta grave”. Francisco tentava em vão mover os dedos da mão quebrada. Chegou a dizer que preferia que cortassem o indicador fora para se recuperar mais rápido e voltar logo ao trabalho.

Quando desembarcaram em Guariba, os maranhenses de Codó já tinham aquela humilde casa reservada, à espera deles. O corte da cana termina em novembro, e quem quiser garantir um teto para a safra do ano seguinte precisa deixar um adiantamento do aluguel. Sem essa garantia, é praticamente impossível arrumar um lugar barato para ficar por aquelas bandas. Foi assim de 2004 para 2005. Vai ser assim de 2005 para 2006. E não há gente só do Maranhão, como o falante Francisco Silva da Conceição. Mineiros, baianos, alagoanos, paraibanos. Há muitos homens e mulheres dispostos a se alistarem no exército de cortadores de cana que peleja no campo minado do interior paulista. Diariamente, eles se fantasiam de soldados, com botinas luvas e facões – as únicas proteções, além da coragem que já vem do berço, de que dispõem para vencer a guerra sem fim contra a pobreza.

Perguntei a Francisco se ele podia me mostrar o local onde dormia. Não me atrevi a pedir a mesma coisa aos outros dois colegas dele, que me olhavam desconfiados e respondiam laconicamente às minhas tentativas de puxar papo. “Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento”, diz um ditado popular muito falado no interior. Sofá rasgado, paredes rachadas, fogão de duas bocas equilibrado sobre algumas telhas. Francisco reclamava principalmente das goteiras. O banheiro, que fica do lado de fora, no quintal, não tinha chuveiro quente. Tudo isso por R$ 180, divididos entre as sete pessoas grandes que lá moravam.

Ele sentou nos dois colchões jogados diretamente no chão da sala, onde dormia. Pedi para tirar uma foto. Queria fazer seu retrato ali mesmo, o local onde ele descansava – mesmo rodeado pelos pacotes de arroz, açúcar e sabão em pedra, estocados ao lado da sua cama improvisada. Bati a foto com flash. Francisco piscava o olho incomodado com a força da luz que por um instante o cegou. Enquanto devolvíamos os papéis à pasta, perguntei se ele já havia ouvido falar de Guariba antes de pegar a estrada para São Paulo. “Já. Vem muita gente de lá para trabalhar aqui”, respondeu. “Mas o senhor sabia que em 1984 houve uma greve aqui bem famosa?”, insisti. “Não, não sabia não”.

Naquele ano, os cortadores de cana provocaram um rebuliço no coração da Califórnia brasileira. Os motivos eram os de sempre: salários baixos, associados a condições desumanas de um ofício que nenhum deles deseja para os próprios filhos. Como se isso não fosse suficiente, as contas de água cobradas pelo governo estadual e os preços abusivos de um supermercado da região, que devoravam sem dó a já minguada remuneração dos bóias-frias, foram o estopim de uma revolta que ecoou no país inteiro. O drama dessa gente virou até tema de novela da TV Globo, cinco anos depois, na pele de Lima Duarte. Achei que o assunto interessaria a Francisco, mas ele continuava falando das dores na mão que o atormentavam e que se intensificavam nos dias de frio.

Seu maior desejo era voltar para o Maranhão. Em Guariba, sem trabalhar, ele fica o dia inteiro em casa, gastando o pouco do dinheiro que ainda tem para ajudar nas despesas. Todos os dias, ele acorda antes do sol junto com os companheiros que se preparam às pressas, esperando pelo ônibus que os conduzirá até os canaviais das usinas, onde recebem no máximo R$ 2,50 por tonelada cortada e uma marmita, na hora do almoço, que hoje já não chega mais fria. “Eles me ajudam muito. Antes de irem embora, deixam o de comer para mim”, explica. Os colegas saem, e Francisco fica. Pensa nos quatro filhos que deixou em Codó, no dinheiro que deveria mandar para a esposa, nos R$ 50 que ele sozinho consome mensalmente, em comida. E se sente culpado. “Fica mais um bocadinho, a prosa está boa”, pediu. “Desculpe, seu Francisco. Preciso ir, de verdade. Boa sorte para o senhor”. Ele vai mesmo precisar.

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