NO ACAMPAMENTO São Francisco, em Vitória de Santo Antão (PE), ninguém dorme a noite inteira. É assim também em outros acampamentos do MST na região, que viram uma escalada de violência nos últimos meses. Apenas em novembro, três agricultores do movimento foram assassinados.
A violência contra esses trabalhadores sempre existiu, mas o clima de insegurança se agravou no governo Lula (PT), em razão da expectativa pela retomada da reforma agrária. Assim avaliam trabalhadores sem-terra e missionários locais ouvidos pela Repórter Brasil.
“Ainda são promessas [do governo], mas isso provoca os proprietários de terra. Eles começam a ameaçar mais para ver se o povo recua”, diz a irmã Tânia Maria de Sousa, há 30 anos na Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A entidade registrou 973 casos de conflitos no campo no primeiro semestre de 2023 – aumento de 8% em comparação com o mesmo período de 2022. A maior parte dos casos (791) envolveu disputas pela propriedade da terra.
“Nós vivemos seis anos de governos em que não foi pautada a reforma agrária. Ao mesmo tempo, a violência continuou, como apontam os números”, afirma a missionária.
No caso do São Francisco, a situação se agravou com o assassinato de Josimar da Silva Pereira, em 5 de novembro. Ele se dirigia para o acampamento para regar uma plantação de arroz comunitária quando foi morto a tiros.
O São Francisco é um dos acampamentos do MST mais antigos de Pernambuco. Os agricultores aguardam há 29 anos pela desapropriação da área, já vistoriada e considerada improdutiva pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Apesar de as investigações ainda estarem em andamento, os agricultores acreditam que o assassinato tem relação com a luta pela terra. A morte ocorreu um dia depois de um incêndio criminoso em uma plantação de cana-de-açúcar vizinha, e na véspera de uma visita de representantes do Incra.
Ao menos três lideranças do São Francisco relatam ameaças e aguardam a entrada no programa estadual de proteção a defensores de direitos humanos.
“Acho que ninguém dorme aqui. Se aconteceu com o Josimar, que era uma pessoa que estava na luta com a gente, mas não era diretamente ligado à coordenação, pode acontecer com qualquer um de nós”, diz Denise Alves dos Santos, uma das coordenadoras do acampamento.
As vigílias na madrugada se intensificaram após a morte de Josimar. Os agricultores se dividem em turnos de duas horas que vão das 22h até o sol raiar. Além dos facões e enxadas utilizados na lavoura, os agricultores contam com câmeras instaladas pelo governo do estado, depois dos primeiros relatos de ameaças.
Denise Santos diz que é comum ver drones sobrevoando o local e que, em mais de uma oportunidade, apareceram desconhecidos perguntando sobre o paradeiro de lideranças e seus familiares. Não há crianças no acampamento. Por segurança, todos preferem manter os filhos vivendo com familiares na cidade.
A cana que cerca o São Francisco pertence à Usina JB, uma das poucas empresas sucroalcooleiras que ainda resistem na região da Mata Sul de Pernambuco. A empresa briga na Justiça pela retirada dos agricultores do local, parte de uma área comprada pela JB há alguns anos. Em nota enviada à Repórter Brasil, a JB nega que o local seja improdutivo, como afirmam os trabalhadores e a vistoria do Incra.
Em quase três décadas de acampamento, os agricultores já passaram por 16 despejos – situação em que a Justiça determina a reintegração de posse, a remoção dos moradores e a destruição de casas e plantações.
“[A usina] alega que a gente invadiu no ano passado, mas tem gente aqui há 29 anos. É só você olhar o tamanho dos pés de frutas, das mangueiras, das bananeiras, do que foi feito nessa terra”, diz Andreia da Silva Germano, membro da coordenação e moradora do acampamento desde 2017.
Questionada pela reportagem, a JB respondeu que tem “total interesse na solução dos conflitos” e que já colocou áreas da empresa em outros municípios à disposição do Incra. A empresa também diz ser vítima de intimidações, não o contrário. “Houve uma tentativa de incendiar um de nossos ônibus, o que colocou em risco a vida do motorista e dos quatro funcionários do grupo que estavam a bordo”, afirmou em nota.
Ainda segundo a usina, os agricultores do acampamento São Francisco “estão em área de proteção ambiental e num imóvel produtivo, não sendo lícita a sua desapropriação”. Leia a resposta na íntegra.
Disputa antiga
A tensão com usineiros não é exclusividade do São Francisco. Na região, há diversas usinas de cana falidas cujos terrenos foram ocupados tanto por ex-funcionários, que ganharam “de boca” o direito à terra, quanto por agricultores do movimento.
A disputa entre os proprietários das terras e os posseiros é antiga. Segundo Plácido Junior, agente da CPT e um dos responsáveis pelo levantamento de conflitos no campo, foi agravada com a paralisação do programa de reforma agrária e o crescimento da pecuária na região.
“A gente percebeu que nesses últimos quatro anos os conflitos têm aumentado em Pernambuco. O represamento da reforma agrária cria uma situação de conflito insustentável. As usinas se transformando em empresas de agropecuária, preferindo colocar bois a gente nas terras, é mais um elemento. Uma hora isso estoura”, explica.
Nos últimos dez anos, a obtenção de terras para a reforma agrária caiu vertiginosamente até chegar a zero em 2021. Em 2023, com o novo governo Lula, a situação não foi diferente, como mostra matéria recente da Repórter Brasil.
Estima-se que 65 mil famílias vivam em acampamentos. Outras 30 mil estão em pré-assentamentos. Nesses locais, os agricultores não têm acesso a créditos nem a outras políticas do programa de reforma agrária.
Em Goiana (PE), cidade na divisa com a Paraíba que concentra 12 acampamentos do MST, o carro de uma liderança sem-terra foi alvejado por diversos tiros, poucos dias antes da visita da reportagem. Agricultores relatam terem sido espancados a mando de proprietários de terras.
“Os nossos amigos foram tratados como bichos. Mandaram bater nos companheiros. O carro [de um dos coordenadores] foi crivado de bala, o vidro quebrado com porrada. Foi um desespero”, conta Josefa Rosa, coordenadora de um dos acampamentos.
No acampamento de Rosa, os agricultores estão reconstruindo as casas no entorno da sede como forma de se proteger. A própria agricultora anda o tempo todo acompanhada por seguranças voluntários.
“Nós resolvemos fazer os barraquinhos mais perto da sede porque a noite é mais traiçoeira. A gente tem que estar alerta todo o tempo, toda hora”, diz.
Lá também foi instituída a vigília durante a madrugada. Qualquer carro desconhecido que passa pelas estradas que cortam o acampamento é considerado suspeito e há até um gongo improvisado com uma placa de metal, acionado em caso de perigo.
Para Bruno Ribeiro, advogado da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco, a atual situação não é novidade. “É difícil dizer ‘a violência aumentou’. A violência sempre foi uma marca.”
A insegurança permanente levou a área a ser a única na região a ser incluída no Plano Emergencial de Pacificação do Campo, lançado no fim do ano pelo governo federal. Ribeiro considera a medida um passo importante, mas insuficiente.
Para ele, as ações de desapropriação de terras deveriam ser a prioridade da reforma agrária. Mas, com o baixo orçamento do Incra, a expectativa é de que o ciclo de violência continue. “Sem dinheiro para desapropriar, a comissão e o Incra não vão fazer nada. Esse conflito só vai piorar.”
Superintendente do Incra no estado, Givaldo Cavalcante Ferreira concorda que a paralisação das compras de terras trouxe “danos irreparáveis”, mas argumenta que o órgão tem poucos recursos financeiros e sofre com a falta de funcionários e de novos concursos para repor os aposentados.
Em resposta à Repórter Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) afirmou que “a reforma agrária e a promoção da paz no campo são prioridades para o governo federal”. Segundo o ministério, em 2023, o MDA e o Incra atuaram na resolução de mais de 200 conflitos agrários, em parceria com o sistema de justiça.
Acampamento esvaziado
Sete horas na estrada sertão adentro, a paisagem muda. O que restou da Mata Atlântica dá lugar à Caatinga. Mas a disputa pela terra continua.
Em Princesa Isabel, já na Paraíba, dois agricultores do acampamento Quilombo do Livramento foram assassinados no dia 11 de novembro.
Aldecy Viturino Barros e Ana Paula Costa Silva faziam reparos no telhado da casa da família de Ana quando foram mortos por dois homens que chegaram em uma moto. Barros era o líder do acampamento, que ocupa há 14 anos uma área da União utilizada no passado pelo Instituto Federal da Paraíba. A investigação do caso, a cargo da Polícia Civil, segue em aberto.
O agricultor Joaquim Tavares Pereira, que tem ajudado na organização do acampamento, diz que os assassinatos esvaziaram o local em que viviam 22 famílias. “Depois da morte desses dois companheiros, hoje se tiver 8 famílias é muito. O restante, com medo, começou a ir para a cidade.”
No local, as terras já foram divididas pelos próprios agricultores e cada família construiu uma pequena casa em seu hectare. Eles usam coletivamente a água retirada de um açude para manter a lavoura e aguardam pelo inverno do semiárido, quando aumentam as chuvas, para retomar a plantação.
Para Dilei Schiochet, uma das coordenadoras do MST no estado, matar lideranças é uma forma de desmobilizar o movimento e impedir novas ocupações. “Você mata a liderança para ver se o povo vai embora. É uma tática. Você mata o líder para as pessoas se sentirem ameaçadas, amedrontadas e saírem”, diz.
Ela também menciona a paralisia da reforma agrária como catalisador da violência, e cobra um posicionamento do Incra. “O mais grave é não ter em todo ano de 2023 um planejamento de vistorias de terra”, diz. A vistoria é uma das etapas mais importantes para constituição de um assentamento rural.
“Como há um processo de estagnação da reforma agrária no Brasil, há uma reação. E quando você acumula esses problemas, a tendência de ocorrer tantos assassinatos no campo, quanto aumentar a violência, é mais visível. Falta fazer a reforma agrária no país porque ela ainda é muito tímida”, afirma.
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Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil