1.200 escravos são libertados no MT; Severino fez lobby pela destilaria

Maior operação de libertação da história do país confirma situação da Destilaria Gameleira, que já havia perdido clientes devido à utilização de mão-de-obra escrava
Por Leonardo Sakamoto
 17/06/2005

Estão sendo resgatados, neste exato momento, mais de 1.200 pessoas da Destilaria Gameleira, no município de Confresa (MT). Esta é a maior operação de libertação de escravos já ocorrida no país. Até então, o título estava com a fazenda Roda Velha, de Ernesto Dias Filho, localizada no município de São Desidério (BA), quando 745 ganharam a liberdade em agosto de 2003. Nas últimas semanas, a usina Gameleira, produtora de álcool, esteve no centro de uma polêmica que envolveu até o presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (leia abaixo).

Grandes distribuidoras de combustível cortaram os contratos com a Gameleira após ficarem sabendo que comercializavam com uma empresa que estava na “lista suja” do trabalho escravo do governo federal. A relação, atualizada semestralmente, mostra pessoas físicas e jurídicas que, comprovadamente, cometeram esse crime e que tiveram seus processos transitados em julgado dentro do Ministério do Trabalho e Emprego.

Após empresas como Ipiranga e Petrobrás afirmarem que não comprariam mais combustível da destilaria, Cavalcanti, segundo ele a pedido de deputados federais, fez uma “consulta” com o objetivo de descobrir por que o álcool da Gameleira não estava mais sendo comprado. A repercussão na imprensa e junto à sociedade civil foi bastante negativa. Nesta sexta-feira (17), uma operação do grupo móvel de fiscalização do MTE iniciada nesta semana, que conta com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, encontrou 1.200 pessoas escravizadas na fazenda.

“A situação aqui é horrível. Há superlotação dos alojamentos, que exalam um mau cheiro insuportável. A única água que recebe tratamento é aquela que vai para as caldeiras e não para os trabalhadores. A alimentação estava estragada, deteriorada. O caminhão chega jogando a comida no chão. Pior do que a comida que se dá para bicho, porque esse pelo menos tem coxo”, afirma Humberto Célio Pereira, auditor fiscal do Trabalho e coordenador do grupo móvel de fiscalização.

Todas as características confirmam a existência de escravidão contemporânea, do aliciamento ao endividamento e à impossibilidade de deixar o local. Os trabalhadores foram levados de Pernambuco, Maranhão e Alagoas, iludidos pelas falsas promessas de salários e boas condições de serviço dadas pelos “gatos” (contratadores de mão-de-obra a serviço da usina). Ninguém recebia salário e era obrigado a comprar tudo da cantina da empresa, com preço acima do mercado. Os gastos eram anotados para serem descontados do pagamento final – sempre menor do que o combinado pelo “gato”. Devidos às péssimas condições de saneamento e higiene, não raro ficava-se doente. Contudo, até o soro recebido nas crises de diarréias era descontado dos peões. De acordo com Humberto Pereira, toda a operação está sendo filmada e fotografada.

A fazenda Gameleira, localizada no município de Confresa, Estado do Mato Grosso, já havia sido flagrada outras três vezes utilizando escravos. Apenas em uma das ações dos grupos móveis de fiscalização 318 pessoas foram libertadas. A propriedade produz 30 milhões de litros de álcool por ano. Agora, verificou-se que as condições de trabalho na Gameleira continuam as mesmas, tendo sido feita apenas uma “maquiagem” para encobrir a situação.

Vale ressaltar que o próprio Eduardo de Queiroz Monteiro, proprietário da Gameleira, pressionado pela perda de seus clientes, havia solicitado ao Ministério do Trabalho e Emprego uma nova fiscalização para mostrar que a situação havia se normalizado após a última operação. O ministro Ricardo Berzoini, entretanto, não cedeu às pressões. Contudo, enquanto os diretores da usina tentavam limpar o nome da empresa, surgiram novas denúncias de trabalho escravo, envolvendo violência física contra os peões. A partir daí, uma operação foi realizada.

Agora, os cerca de 1.200 trabalhadores estão reunidos na sede da empresa. Querem ir embora para as suas cidades, mas não têm dinheiro para pagar a passagem de volta – situação semelhante com as 400 pessoas que estão sendo resgatadas da usina de cana-de-açúcar Alcopan, também em Mato Grosso (leia matéria). 

A Gameleira tentou impedir que os trabalhadores fossem retirados da usina, o que interromperia a produção. Nesta sexta-feira, o grupo móvel de fiscalização vai se reunir com a diretoria da empresa para tentar um acordo que viabilize o pagamento dos direitos trabalhistas e a retiradas das pessoas. Está sendo solicitada uma Vara Itinerante da Justiça do Trabalho para resolver situação.

Cadeia produtiva
A suspensão nos acordos comerciais entre a Gameleira e as distribuidoras aconteceu após elas terem conhecimento do estudo da organização não governamental Repórter Brasil, que identificou a cadeia produtiva do trabalho escravo no país. Essa pesquisa, solicitada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, serviu de embasamento para que fosse firmado o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, iniciativa do Instituto Ethos de Responsabilidade Social e da Organização Internacional do Trabalho. O Pacto, assinado no dia 19 de maio em Brasília, já conta com cerca de 80 signatários, incluindo grandes empresas como Coteminas, Carrefour, Pão de Açúcar, Wal-Mart/Bompreço, Votorantin, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal (leia matéria “Pacto entre empresariado quer “quebrar” cadeia produtiva”).

A pesquisa aponta que a Galemeira comercializava com a Ipiranga, Petrobrás, Shell, Texaco, Total e PDV, fornecendo combustível principalmente paras as regiões Norte e Nordeste. Dessas, Ipiranga, Petrobrás, Shell e Texaco assinaram o pacto.

No dia 11 de maio, os advogados da família Queiroz Monteiro conseguiram uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo o nome de sua fazenda da "lista suja", base da cadeia produtiva. Contudo, em uma ação exemplar, alguns signatários mantiveram a interdição de compra, como a Ipiranga. Fontes da empresa revelaram que decisão da companhia segue determinações do pacto e é coerente com uma conduta de ética e de responsabilidade social. A empresa só retornará a comprar álcool combustível da Gameleira quando o governo federal emitir uma certidão negativa sobre trabalho escravo na propriedade.

Mas de acordo com Ruth Vilela, chefe da Secretaria Nacional de Inspeção do Trabalho, que coordena a ação dos grupos móveis, não será fornecida nenhuma certidão atestando que a empresa saiu da lista. "A decisão do juiz não inclui apagar todas as informações que estão no ministério. Uma certidão deve, portanto, ser um reflexo de nossos arquivos. A
única certidão possível, portanto, é uma que conste o histórico da empresa, quantas vezes foi fiscalizada, o que foi encontrado, as multas aplicadas."

Severino Cavalcanti
Uma ligação telefônica realizada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (PP-PE), na tarde do dia 01/06 trouxe apreensão a empresas afiliadas ao Sindicato Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, um dos signatários do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Durante a ligação, a terceira pessoa na linha sucessória do país questionou por que essas empresas cancelaram contratos de compra de álcool da Destilaria Gameleira. Esta empresa, de propriedade de Eduardo Queiroz Monteiro – irmão do presidente da Confederação Nacional da Indústria e deputado pernambucano Armando Queiroz Monteiro (PTB). Na época, Severino Cavalcanti se manifestou através de sua assessoria. Segundo ela, a ligação telefônica feita ao sindicato teve caráter de “consulta” e tinha como objetivo descobrir por que o álcool da Gameleira não estava mais sendo comprado.

Durante a conversa, foi explicado ao próprio deputado que ainda há restrições às empresas da "lista suja". De acordo com Cavalcanti, o telefonema atendeu a pedido de deputados federais que queriam saber qual era o problema que impedia a comercialização. A assessoria do presidente da Câmara reforçou que ele é contra o trabalho escravo, tendo se manifestado várias vezes favoravelmente ao combate a esse crime.

O deputado não admitiu, mas fontes contatadas pela Carta Maior revelaram que Cavalcanti, na mesma ocasião, também telefonou para a distribuidora de combustível Ipiranga. Quis saber as razões que levaram a empresa a não adquirir mais álcool da Gameleira, apesar de a empresa ter conseguido uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo-a da "lista suja" do trabalho escravo. O telefonema do presidente da Câmara aconteceu apenas meia hora após a Ipiranga confirmar aos advogados da destilaria a interdição de compra. Ele também teria ligado para a Petrobrás para fazer lobby pela destilaria.

Em discurso proferido no dia 02 de março de 2004, o presidente da Câmara atacou o combate ao trabalho escravo que vem sendo realizado no Brasil.

“Ora, Senhoras e Senhores Deputados. Vamos parar de hipocrisia, de fingir que somos a França, os Estados Unidos ou a Alemanha e que podemos copiar as suas avançadas legislações trabalhistas”, disse. “Não vamos resolver os problemas do campo e do desemprego ameaçando produtores e fazendeiros com o confisco de terras no caso das muitas e controversas versões de ‘trabalho escravo’”, completou o deputado.

Defendeu os proprietários rurais e uma suposta cultura do campo, que não exigiria a garantia dos direitos trabalhistas devido à realidade da região, diferente das cidades. “Em Minas, como na Amazônia, no Nordeste, outras regiões ou Estados brasileiros, milhares de bóias-frias são deslocados para as fazendas conforme o trabalho que surge. Fica difícil para o produtor ou fazendeiro, muitas vezes com estrutura precária, registrar esse trabalhador pelo espaço de um ou dois dias, ou curtos períodos de tempo.”

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