A Organização Internacional do Trabalho (OIT) está promovendo um debate tripartite, que inclui representantes de governo, trabalhadores e empregadores de várias partes do mundo, no sentido de verificar eventuais lacunas nas normas que estabelecem padrões mínimos para a erradicação do trabalho forçado no mundo. As Convenções 29 e 105 são mundialmente reconhecidas e estão entre as mais ratificadas no âmbito da OIT. Não obstante, esses importantes instrumentos de proteção de direitos humanos foram elaborados em contexto diferente do atual, em que a globalização da economia promove um rápido avanço econômico ao mesmo tempo em que propicia o retorno a formas arcaicas de superexploração do trabalho e a concepção de novas.
As Convenções 29 e 105 (…) foram elaborados em contexto diferente do atual, em que a globalização da economia promove um rápido avanço econômico ao mesmo tempo em que propicia o retorno a formas arcaicas de superexploração |
Uma estimativa recente da OIT indica haver cerca de 21 milhões de pessoas sob o regime de trabalho forçado em todo o mundo. Esses trabalhadores podem ser encontrados sofrendo abusos em locais de trabalho tão díspares quanto no ambiente doméstico, na agricultura, nos sweatshops de produção de peças do vestuário, na construção civil, na hotelaria, ou em outros tantos setores da economia que insistem em manter condições precárias de trabalho e desrespeito aos mais básicos e fundamentais direitos do homem. O debate foi aprovado pela 101ª Conferência Internacional do Trabalho, ocorrida em 2012 de forma tripartite com a finalidade de melhor compreender as diversas realidades e necessidades dos Estados-Membros na tarefa de garantir o cumprimento dos direitos e princípios fundamentais no trabalho, conforme estabelecido na Declaração da OIT Sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho e Seu Seguimento, de 1998. Nesse debate (e, consequentemente, no possível/desejável futuro novo instrumento) estão incluídas discussões a respeito de mecanismos de prevenção, de proteção das vítimas e de compensação pelo dano sofrido, além do adequado estabelecimento da conexão entre trabalho forçado e tráfico de pessoas.
Contexto histórico
Importante ressaltar que as Convenções 29 e 105 são instrumentos antigos (1930 e 1957, respectivamente) e, de certa forma, desatualizados. A primeira foi elaborada especificamente dentro de um contexto histórico de descolonização dos países africanos e asiáticos com relação às nações europeias, e traz um conceito de trabalho forçado bastante relacionado com essa conjuntura. Nas antigas colônias era comum encontrar resquícios de várias tipologias de trabalho forçado, servidão e escravidão. A ideia era elaborar um marco de transição para uma economia baseada no trabalho livre assalariado, ao passo em que os países iam se libertando da matriz europeia. Dessa maneira, a Convenção 29 trouxe o conceito mundialmente adotado de trabalho forçado e diversos dispositivos de transição, os quais não estão mais em vigor, segundo conclusões do Comitê de Peritos da OIT. Apenas mantém-se vivo o conceito nuclear de trabalho forçado, que foi sendo ampliado pelo mesmo Comitê com a finalidade de alcançar as novas e modernas formas de submissão do trabalhador a esse tipo de exploração. Incluem-se, nesse conceito, todas as formas de escravidão, nos termos dos principais instrumentos internacionais sobre o tema, e o tráfico de pessoas conforme estabelece o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado, mais conhecido pelo nome da cidade italiana em que foi tratado, Palermo.
Igualmente não existe na Convenção 29 qualquer menção aos meios pelos quais o trabalho forçado deveria ser combatido, nem os caminhos para se chegar à total erradicação. Também não se contempla nela nenhuma medida de proteção das vítimas ou compensação pelos danos sofridos. Foram as práticas e a jurisprudência nacionais que acabaram enriquecendo o enfrentamento do trabalho forçado no decorrer desses anos todos. Da mesma forma, a Convenção 105 não contém recursos sobre como combater o trabalho forçado, completando apenas o conceito já existente para abarcar as práticas de submissão de trabalhadores perpetradas pelo próprio Estado como forma de punição política.
Enfrentamento e prevenção
Hoje em dia as situações de descolonização e trabalho forçado imposto pelo Estado são muito reduzidas ou quase inexistentes. A imensa maioria do trabalho forçado é encontrada no setor privado, advindo de complexos esquemas de terceirização e muitas vezes inserido em algum momento em grandes cadeias produtivas globais. As práticas no enfrentamento do trabalho forçado variam muito de país a país, e o Brasil é sempre citado como referência, por todo o histórico de luta demonstrado nos últimos 18 anos. Entretanto, apesar de muitos países já disporem de estruturas avançadas de enfrentamento, a imensa maioria ainda não apresenta nenhum tipo de medida de proteção das vítimas, de prevenção para que não ocorram situações de exploração ou qualquer mecanismo de compensação pelos danos sofridos, fazendo da ratificação da Convenção 29 um ato vazio.
A esse fato agregue-se o papel de protagonista que o movimento antitráfico de pessoas representa ao redor do mundo no último decênio. Com a entrada em vigor no plano internacional do Protocolo de Palermo (2003), o tema ganhou uma repercussão enorme e os temas exclusivamente relacionados como a exploração da escravidão e do trabalho forçado acabaram por ser eclipsados. Ocorre que o Protocolo de Palermo, apesar de ser bastante moderno e, portanto, já conter mecanismos de proteção, prevenção e compensação das vítimas, é um instrumento prioritariamente voltado para o estabelecimento de políticas criminais, uma vez que é um adicional à Convenção das Nações Unidas sobre o crime organizado. Dessa forma, questões como políticas públicas de emprego e renda, formação e reinserção no mercado de trabalho de trabalhadores submetidos à escravidão, assim como medidas específicas de proteção ao trabalhador, não constam desse instrumento tampouco.
Medidas de repressão de cunho criminal são fundamentais na luta contra o tráfico de pessoas e o trabalho forçado, mas devem ser compreendidas como o último e derradeiro passo dentro de uma política maior de erradicação do trabalho forçado |
Medidas de repressão de cunho criminal são fundamentais na luta contra o tráfico de pessoas e o trabalho forçado, mas devem ser compreendidas como o último e derradeiro passo dentro de uma política maior de erradicação do trabalho forçado. Mais úteis são as medidas de prevenção, como, por exemplo, uma adequada política ativa de emprego e renda e de inserção no mercado de trabalho, voltadas para os grupos vulneráveis. Sendo assim, por meio da formação profissional adequada e da entrada correta no mercado formal de trabalho, garante-se que o trabalhador terá uma qualificação melhor e poderá, dessa forma, evitar as redes clandestinas de aliciamento e, consequentemente, o trabalho escravo. Da mesma maneira, é importante o estabelecimento de uma política nacional de proteção da relação de trabalho, conforme estabelecido pela Recomendação n. 198, da OIT, com a finalidade de se reforçar os mecanismos protetores no âmbito das chamadas relações triangulares de trabalho, das subcontratações desmesuradas e da pulverização da cadeia produtiva, como forma de prevenção do trabalho forçado.
Possibilidades
Um novo instrumento poderia tratar do tema de forma mais adequada e voltada diretamente para temas estritamente laborais e não criminais. Seria de extrema utilidade, notadamente para países que têm dificuldades em enfrentar de maneira correta o problema. O Comitê de Peritos exerce um papel fundamental na atualização do conteúdo desses instrumentos todos e os Estados-Membros deveriam fomentar a absorção dessa “quase jurisprudência” internacional do trabalho por novos e mais modernos instrumentos. Igualmente uma nova norma deveria estabelecer de forma clara e correta a nítida correlação entre tráfico de pessoas e trabalho forçado e, mais ainda, adotar inteiramente o exercício de interpretação do Comitê de Peritos, que aproximou ambos os conceitos. Ao integrar esses conceitos, o Comitê diz, efetivamente, que todas as medidas de prevenção, proteção e compensação já existentes para as vítimas de tráfico de pessoas devem igualmente ser garantidas para as vítimas de trabalho forçado, pois os dois fenômenos são intrinsecamente conectados e até mesmo se confundem.
Não haveria grandes dificuldades para o Brasil ratificar uma futura nova convenção (ou mesmo um protocolo adicional às convenções existentes) que preveja todos os itens discutidos, já que avançamos muito e dispomos de um acervo razoável de medidas para proteger e compensar as vítimas. Falta melhorarmos na prevenção, com o estabelecimento de melhores políticas públicas destinadas aos públicos mais vulneráveis. É importante, no entanto, que, qualquer que seja o instrumento a ser adotado, apresente medidas de cunho mandatório direcionadas aos Estados-Membros. Sabemos o real alcance das recomendações, que acabam funcionando mais como sugestões para os Estados-Membros que, assim, não se veem compelidos a atuar de maneira mais eficaz. Caso a Conferência entenda que uma recomendação já seria suficiente, perderemos uma grande oportunidade de redirecionar o debate sobre o trabalho forçado na agenda atual para um patamar prioritariamente de natureza trabalhista e focado mais na prevenção e na proteção das vítimas.
*Renato Bignami é auditor-fiscal do trabalho e participou da reunião tripartite de peritos em trabalho forçado organizada pela Organização Internacional do Trabalho entre 11 a 15 de fevereiro de 2013, como perito em trabalho forçado indicado pelo Governo brasileiro
Artigo disponível também em versões em inglês e em francês.