Quilombolas

Servidores do Incra criticam lentidão e retrocesso no processo de reconhecimento de áreas quilombolas

Para funcionários da autarquia, demora no reconhecimento de áreas quilombolas é reflexo de pressão do agronegócio e modelo desenvolvimentista “sem limites”
Renato Godoy
 02/09/2013

Servidores do Instituto Nacional de Colonização de Reforma Agrária (Incra) divulgaram nota (baixe o documento em PDF) em que atribuem a morosidade excessiva e o retrocesso no processo de reconhecimento de áreas quilombolas no Brasil à influência política conservadora sobre as ações da autarquia e a um modelo “desenvolvimentista sem limites” levado a cabo pelo governo federal e referendada pelo agronegócio.

Menina em comunidade quilombola na Ilha do Marajó (PA). Foto: Daniel Santini

Lançado em 14 de agosto, o documento elaborado pela Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi) alerta que o bem-estar das comunidades quilombolas está sendo preterido pelas opções do instituto e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Os servidores do Incra também apontam que a situação se assemelha à dos trabalhadores da Fundação Nacional do Índio (Funai), que “têm enfrentado o desrespeito às suas atribuições legais para a promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas e, sobretudo, no tocante aos processos de demarcação de Terras Indígenas”.

A nota denuncia que alguns processos ficam esquecidos na sede do Incra, em Brasília, e em suas 30 superintendências regionais, dependendo apenas de uma assinatura para ser publicada uma portaria de reconhecimento. Os servidores citam como exemplo os casos das comunidades quilombolas do Grotão, no Tocantins, e Tomaz Cardoso, em Goiás, que desde maio deste ano estão nessa situação – os processos estão na sede do Incra desde novembro de 2012. Ao todo, 36 dos 164 processos que tramitam no Incra estão paralisados ou com o andamento atrasado na sede da autarquia.

Novas normas
O Incra passou a ter a incumbência de regularizar as comunidades quilombolas em 2003, após decreto presidencial. A política de reconhecimento de áreas quilombolas, na prática, teve seu início em 2005. A meta de regularização instituída pela autarquia é de 15 mil hectares por ano. No ano passado, no entanto, apenas 3 mil hectares foram reconhecidos. Neste ano o ritmo continua lento: 1,3 mil hectares até agosto.

Comunidade quilombola de Nova Esperança de Concórdia, no Pará. Foto: Verena Glass
Comunidade quilombola de Nova Esperança de Concórdia, no Pará. Foto: Verena Glass

A Cnasi pontua que, de fato, a regularização é um processo lento por definição. Necessariamente, o território tem de passar por uma série de etapas legalmente estabelecidas até receber o título: o estudo técnico que identifica a área do território (RTID); sua publicação (edital de RTID) no Diário Oficial; a contestação da sociedade a esse estudo (contestação e recurso); o reconhecimento do território, com a publicação de portaria no Diário Oficial; a desintrusão (decreto desapropriatório, avaliação de imóveis e ajuizamento da ação na Justiça, emissão na posse e homologação da sentença, além de reassentamento de famílias com perfil para a reforma agrária); a demarcação; e, por fim, a titulação e o registro no cartório. Conforme levantamentos da Comissão Pró-Índio de São Paulo, somente duas comunidades receberam titulação do Governo Federal nos últimos dois anos, uma em 2011 e e uma em 2012.

O que nos preocupa, enquanto servidores públicos responsáveis diretos pela execução da política de regularização dessas áreas, é a protelação ainda maior desse processo, que ocorre por uma opção política do governo federal

“O que nos preocupa, enquanto servidores públicos responsáveis diretos pela execução da política de regularização dessas áreas, é a protelação ainda maior desse processo, que ocorre, aí sim, por uma opção política do governo federal, que cria uma série de rotinas administrativas injustificadas – algumas inclusive desrespeitam as próprias normas vigentes”, aponta Ramon Chaves, diretor da Cnasi.

Os servidores apontam que a política de reconhecimento de quilombolas apresentava um ritmo adequado, de crescimento lento, mas contínuo (veja tabela). Porém, uma mudança iniciada em 2008 começou a afetar o ritmo do reconhecimento de áreas quilombolas. Nesse ano, as atividades do Incra passaram a ser regidas pela Instrução Normativa (IN) 49, formulada pela Advocacia Geral da União (AGU), que criou etapas consideradas “desnecessárias e repetitivas”, segundo os servidores, para a regularização de territórios. Isso ampliou ainda mais o prazo para a conclusão do trabalho de reconhecimento. Mesmo com a IN 49, as metas foram superadas em 2009, 2010 e 2011. Os servidores afirmam que isso só foi possível porque nesses anos muitos processos ainda estavam sendo regidos pelas IN anteriores. “De 2012 para cá, essa situação se agravou, com a paralisação injustificada de processos que estão com os trabalhos em estágios iniciais ou já avançados”, diz Chaves.

O servidor do Incra Roberto Almeida, que trabalha com a questão quilombola desde 2006, afirma que há um clima de indignação entre os que lidam com o tema no instituto. “Desde o ano passado as coisas praticamente não andam. Realizamos denúncia para o Ministério Público, para o próprio Incra e para a sociedade. Nosso compromisso com a sociedade não está sendo cumprido por uma decisão política”, critica. Almeida também aponta que as condições salariais estão em um patamar abaixo de outras autarquias. Com isso, muitos servidores optam por outros concursos e deixam o Incra, causando seu esvaziamento.

Mesa de diálogo
Procurados pela reportagem, o Incra e o Ministério do Desenvolvimento Agrário não atenderam aos pedidos de entrevista para comentar a nota da Cnasi. O Incra, no entanto, encaminhou por meio de sua assessoria uma nota acerca do lançamento de uma mesa permanente de diálogo sobre a política de regularização quilombola. O instituto afirma que pretende ouvir a sociedade civil sobre o tema e que a iniciativa deve ser expandida às superintendências nos estados. Participarão da mesa entidades da sociedade civil, como a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq) e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), além de representantes do poder público, como o MDA, a Secretaria-Geral da Presidência da República (SGPR), a Secretaria de Promoção de Políticas da Igualdade Racial (Seppir), a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e a Fundação Cultural Palmares. “Com a mesa teremos um espaço de diálogo permanente entre os entes responsáveis pelo processo com a sociedade civil. Dessa forma, poderemos acompanhar, identificar os problemas e encaminhar soluções, dando mais celeridade ao processo”, afirmou o presidente do Incra Carlos Guedes.

Mulheres de comunidade quilombola na Ilha do Marajó, no Pará. Foto: Daniel Santini

A diretoria da Cnasi considera positiva a instauração da mesa e afirma que a iniciativa já pode ter sido fruto da repercussão causada pela nota da entidade. “Essa mesa tem a possibilidade de contribuir para avanços. Quanto mais canais de diálogos com o público diretamente beneficiário das políticas, melhor. Porém, sempre existe o receio de esse espaço se tornar mais uma ‘mesa de enrolação’, como tantas outras coordenadas pelo governo federal, onde se salienta seu verniz democrático. Por vezes, o governo ainda se utiliza da participação do movimento social para legitimar políticas que lhe são estranhas”, aponta Ramon Chaves.

Outro aspecto que Chaves considera preocupante é a possibilidade de participação nas mesas estaduais de representantes de segmentos contrários ao direito dos quilombolas. “Nossa preocupação é que o governo acabe por atender a esses interesses, perpetuando a paralisação dos processos ou, pior ainda, reduzindo a área dos territórios já identificados como condição para o prosseguimento dos processos.”

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