Análise

Os quilombos, o judiciário e a política

TRF julga constitucionalidade do decreto que regulamenta titulação de terras quilombolas. Conquistas obtidas por comunidades podem sofrer graves retrocessos
Por Fernando Prioste*
 18/12/2013

O debate jurídico sobre a titulação dos territórios quilombolas está polarizado entre os que defendem a aplicação imediata da Constituição e os que exigem a aprovação de mais uma lei para que o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal possa ser aplicado. Mas, sabe-se que o debate jurídico não se limita a questões técnicas de possibilidade de aplicação das leis, pois o princípio da legalidade, tão valorizado pelo positivismo como pressuposto lógico da dita “segurança jurídica”, não está alheio à realidade que o circunda. As decisões do Poder Judiciário, por mais que neguem os tribunais, não são frutos exclusivos da técnica profissional neutra dos magistrados. 

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Ao levar em conta os aspectos da judicialização da política e da politização da justiça, o debate sobre os direitos constitucionais das comunidades quilombolas desvela os valores políticos e ideológicos, entre outros, que influenciam os posicionamentos jurídicos no tema. O caso da titulação do território quilombola Paiol de Telha, que envolve o julgamento da constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), não foge à regra. Os oito votos proferidos na sessão de julgamento do órgão especial do TRF4, em 28 de novembro, escancaram as divergências e abrem caminhos para entender as tensões que determinarão o resultado final do julgamento. Seis foram favoráveis e dois contrários à constitucionalidade do Decreto.

 Aqueles que defendem reconhecem o Brasil como um país
com forte opressão racial sobre negros e negras, destacam a dívida histórica do Estado e da sociedade e valorizam o papel que o povo quilombola ”

Aqueles que defendem a aplicação imediata da Constituição e a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03, em regra, não escondem os fundamentos políticos e ideológicos que influenciam o manejar da técnica jurídica. De modo geral reconhecem o Brasil como um país com forte opressão racial sobre negros e negras, destacam a dívida histórica do Estado e da sociedade para com as comunidades quilombolas e, entre outros fundamentos, valorizam o papel que o povo quilombola tem, hoje, nos campos econômico, cultural e político de nossa sociedade. Essas premissas político-ideológicas orientam a aplicação técnica do direito que eleva o art. 68 do ADCT à categoria de norma de direitos humanos, reconhecendo ainda que a norma constitucional tem aplicação concatenada com a realidade a que veio regular. Nesse sentido, entendem que a Constituição Federal, em sua integralidade, assegurou, às comunidades quilombolas, e à sociedade brasileira, direitos que viabilizem a reprodução física, social, econômica e cultural dessas comunidades.

Por outro lado, aqueles que defendem a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 não expõem de forma explícita os fundamentos políticos e ideológicos que sustentam seus posicionamentos jurídicos. Alegam, em verdade, que não se alinham a uma ou outra posição política, pois a decisão é estritamente técnica. Nesse contexto, argumentam que o texto constitucional do art. 68 do ADCT não é suficientemente nítido para ser aplicado, e que o respeito ao estado democrático de direito impõe que a titulação dos territórios quilombolas esteja necessariamente amparada em lei. Ou seja, não basta o comando constitucional. Sustentam que as alterações havidas entre os Decretos Federais 3912/2001 e 4887/03 demonstram a situação de insegurança jurídica que só poderia ser superada com a aprovação de uma lei que regulasse o art. 68 do ADCT.

Nesse sentido, consignou o juiz federal Nicolau Konkel Jr, citado pela Desembargadora Marga Inge, relatora do caso do Paiol de Telha no TRF4:

Sem se alinhar a uma opção política ou outra, resta evidente que cada governo emprestou ao art. 68 do ADCT o significado que corresponde à linha ideológica de cada partido. Aliás, é natural que assim o seja, sendo inconcebível que as administrações sejam rebeldes com seus compromissos históricos. No entanto, se é verdade que os fatos sejam assim, não é menos verdade que o Direito tenha que ser refém dos fatos. Afinal, o Direito não é a ciência do ser, mas do dever ser, sendo seu papel conter, quando necessário, a rebelião dos fatos.

O quadro que se apresenta é claro: existe uma necessidade premente de discussão sobre os limites e o alcance do art. 68 do ADCT. No entanto, essa discussão deve ocorrer no foro adequado que é o Congresso Nacional. Se é inegável que cabe ao Poder Judiciário Sindicar eventual regulamentação do tema, também não se pode excluir a necessidade de prévio debate político, a partir de um texto legal que reflita a vontade do povo e não a da administração que expede o decreto.” (sem grifos no original)

Como se vê no trecho acima transcrito, as decisões judiciais estão impregnadas de valorações políticas que orientam o pensar e agir jurídico. Afirmar que a vontade popular não está nítida na Constituição Federal, que ainda é necessário fazer um debate político sobre o tema para se afirmar o direito já inscrito na Carta Magna e que o direito deve conter a rebelião dos fatos (no caso, a titulação dos territórios quilombolas), não é um raciocínio lógico matemático que se extrai de uma suposta interpretação neutra da lei.

A posição jurídica daqueles que insistem em negar a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 se escora em posição política que, via de regra, está associada à negação das políticas raciais afirmativas – por exemplo, o sistema de cotas – e a um suposto agravamento do conflito agrário decorrente da aplicação da política pública de titulação e reconhecimento de direitos às comunidades quilombolas. Também está associada a uma supervalorização do direito de propriedade em detrimento dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais daqueles que não são proprietários.

O nazismo e os quilombolas
O processo de titulação do território quilombola Paiol de Telha é questionado pela Cooperativa Agrária Agroindustrial Entre Rios, produtora de commodities. Durante o julgamento do caso do Paiol de Telha, em novembro, o advogado Eduardo Bastos de Barros, que representante de alguns integrantes da Cooperativa Agrária, comparou a origem dos alemães que hoje ocupam o território com a origem dos quilombolas que foram expulsos de suas terras. Disse o advogado que os alemães vieram para o Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma vez que o governo da Suíça comprou terras na região de Guarapuava e doou aos alemães derrotados no conflito. Ainda segundo o representante da cooperativa, os alemães teriam perdido todos seus bens na terra de origem por terem integrado o exército do 3º Reich durante a guerra e, assim, na visão do advogado, teriam uma origem humilde como a dos quilombolas do Paiol de Telha. A terra recebida pelos alemães do governo suíço não é o território quilombola do Paiol de Telha.

Contudo, a afirmação do advogado apenas corrobora o abismo de desigualdade entre os alemães acolhidos pelo Estado brasileiro e a situação de total invisibilidade da comunidade quilombola frente ao Estado. No embate entre a versão dos quilombolas – que afirmam terem sido expulsos à bala de suas terras – e dos alemães – que dizem ter comprado a terra dos quilombolas – fica o desafio de tentar compreender como se deu, e como se dá, a relação de disputas por terras entre descendentes de negros que foram escravizados e ex-militares alemães do regime nazista de Hitler.

* Fernando Prioste é coordenador da Terra de Direitos e advogado popular no caso Paiol de Telha.

Veja também:
Saiba mais sobre o caso no site da Terra de Direitos
Assine a campanha em apoio ao Paiol de Telha e pela titulação das comunidades quilombolas 

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