Especial biodiesel

Prestes a completar dez anos, programa nacional de biodiesel falha em incluir semiárido

Repórter Brasil apresenta série especial sobre biodiesel. Após uma década, resultados são modestos em termos de inclusão produtiva, em especial no semiárido
Por Carlos Juliano Barros
 02/06/2014

Itaetê, Morro do Chapéu e Salvador, na Bahia – Quando o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) foi lançado, em dezembro de 2004, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva profetizou que a agricultura familiar do semiárido brasileiro iria fornecer a matéria-prima para as indústrias de biodiesel. Na época, a mamona – oleaginosa resistente à seca e tradicionalmente cultivada no sertão da Bahia, do Piauí e de outros estados marcados pela estiagem – foi escolhida como símbolo da política de inclusão social e produtiva proposta pelo programa, cujo marco regulatório foi construído de modo a conceder incentivos tributários às usinas que comprassem a produção de agricultores familiares.

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Mamona, oleaginosa resistente à seca e tradicionalmente cultivada no sertão da Bahia, do Piauí e de outros estados marcados pela estiagem, foi escolhida como símbolo da política de inclusão social. Fotos: Carlos Juliano Barros

No entanto, passados quase dez anos do lançamento do PNPB, a contribuição das oleaginosas do semiárido para a produção brasileira de biodiesel é nula, segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). No caso específico da mamona, o alto valor de mercado de seu óleo – cuja tonelada custa em torno de R$ 5 mil, enquanto a tonelada do óleo de soja é negociada a R$ 2,3 mil, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), – impede que ele seja usado diretamente na composição do combustível. Seu destino é a indústria ricinoquímica, que o utiliza na fabricação de cosméticos e outros produtos.

nulaDesde a concepção dos planos do PNPB para o semiárido, os movimentos sociais e sindicais que participaram do debate com o governo federal – como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf) e a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag)  – cogitaram investir em outras cadeias produtivas além da mamona, como o girassol e até mesmo o pinhão manso. As discussões sempre foram norteadas pelo princípio do consorciamento das oleaginosas com gêneros como milho e feijão, numa lógica de garantia da segurança alimentar dos produtores rurais.

Porém, a produção de girassol e, mais recentemente, de dendê tampouco conseguiram fazer decolar a participação da agricultura familiar do semiárido na produção brasileira de biodiesel. Em nível nacional, a maior parte do combustível é feita a partir da soja (cerca de 70%) e do sebo bovino (cerca de 20%), que possuem cadeias produtivas já consolidadas entre pequenos, médios e grandes produtores rurais.

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“A conta não fecha”
“Agricultores familiares do semiárido não têm condições de suprir matérias-primas para a produção de biodiesel. A conta não fecha. Eles não têm capacidade e nem produção suficientes, mesmo que seja uma fração dos 2,8 bilhões de litros de biodiesel que se demanda por ano”, analisa Georges Flexor, professor de economia da UFRRJ. “O foco para se tentar avaliar os efeitos positivos do PNPB não é o da inclusão produtiva. Talvez seja mais interessante pensá-lo como mais uma política de inclusão social de populações historicamente marginalizadas das políticas públicas brasileiras”.

  O governo federal tem uma visão de que o semiárido não tem viabilidade produtiva e enxerga a população dessa região como público dos programas de transferência de renda

Seguindo linha de raciocínio similar à do professor da UFRRJ, a coordenadora da Fetraf-BA, Elisângela Araújo, tece críticas ao PNPB. “O governo federal tem uma visão de que o semiárido não tem viabilidade produtiva e enxerga a população dessa região como público dos programas de transferência de renda”, afirma. Os agricultores familiares do semiárido contam, por exemplo, com um programa específico, o Bolsa Estiagem, complemento de R$ 80 mensais ao Bolsa Família.

Nas últimas três safras, a já dura realidade do semiárido foi agravada pela pior seca das últimas cinco décadas. Somada à descapitalização dos produtores rurais (que têm dificuldade de acessar financiamentos bancários), à lacuna da irrigação e à deficiência da assistência técnica, a estiagem prolongada deu o golpe de misericórdia na já minguada capacidade produtiva dos agricultores da região.

Cooperativas em xeque
Como se não bastassem todos esses problemas, ocorreram ainda episódios que colocaram em xeque a capacidade de organização dos produtores familiares do semiárido. O caso mais emblemático é o da falência da Cooperativa de Produção e Comercialização da Agricultura Familiar do Estado da Bahia (Coopaf), sediada em Morro do Chapéu (BA), que chegou a contar com mais de 5 mil associados. Em 2011, a entidade fechou as portas em meio a denúncias de corrupção e enriquecimento ilícito de seus diretores, deixando dívidas milionárias com produtores rurais, técnicos agrícolas e com a própria PBio, principal cliente da cooperativa.

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Em 2011, Coopaf fechou as portas em meio a denúncias de corrupção e enriquecimento ilícito

A Coopaf era ligada à Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia (Fetag-BA), mas a própria dirigente da Fetraf admite que o problema da administração das cooperativas era generalizado. “Aqui na Bahia e em Sergipe teve um momento em que havia 13 cooperativas envolvidas no PNPB. Hoje, existem umas cinco ou seis, no máximo”, afirma Elisângela Araújo. “O programa requeria um padrão de gestão muito elevado e os agricultores e as cooperativas não estavam preparados para essa discussão com o mercado. As normas da Petrobras, que é uma multinacional, não mudaram para trabalhar com o agricultor”, completa. As limitações variavam desde a dificuldade de se conseguir assistência jurídica para fazer uma análise mais minuciosa dos contratos firmados com as usinas produtoras de biodiesel até a impossibilidade de se conseguir nos bancos financiamento para capital de giro das cooperativas.

  O programa requeria um padrão de gestão muito elevado e os agricultores e as cooperativas não estavam preparados para essa discussão com o mercado. As normas da Petrobras, que é uma multinacional, não mudaram para o agricultor

Na avaliação de Elisângela, o governo federal criou uma expectativa muito forte em torno do programa e os movimentos abraçaram a crença de que o PNPB era a grande oportunidade para a agricultura familiar enfim deslanchar no semiárido. Contudo, ela avalia que o governo federal abriu mão da responsabilidade que caberia sobretudo ao MDA e a transferiu para as mãos das empresas que estavam se inserindo no programa, com destaque para a PBio. Assim, coube à iniciativa privada arcar com custos de logística, de capacitação de produtores, de recuperação de solo, de fornecimento de assistência técnica, dentre outras medidas necessárias para desenvolver a produção.

 * Esta é a primeira reportagem da série especial sobre o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), que faz parte das iniciativas da Repórter Brasil para promover o debate sobre os resultados e perspectivas após uma década de investimentos públicos no projeto. Na segunda-feira, dia 2, o Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis realizou o seminário “PNPB, 10 anos: inclusão social ou inclusão produtiva?”.  

Clique aqui para assistir no canal da Repórter Brasil no youtube à gravação do encontro na íntegra, com mais de três horas de duração.

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