INCRA

Quilombo aguarda dez anos por titulação em Goiás

Em meio a ameaças de despejo e ações de pistolagem, quilombo Família Magalhães aguarda ação do Incra e vê mineração irregular e degradação ambiental avançar
Por Daniela Carolina Perutti (texto e fotos)*
 14/07/2014

“Você veio de longe pra fazer pesquisa nesse fim de mundo? Aqui não tem nada não.” A fala de uma funcionária da prefeitura de Nova Roma, surpresa com meu interesse em pesquisar a região, é recorrente entre os moradores dessa cidade sertaneja, localizada no Nordeste de Goiás. Em função da falta de perspectiva de emprego ou melhora de vida, a sensação geral é de que em Nova Roma, que conta com cerca de 3.471 habitantes (IBGE, 2010), restaram apenas os velhos, as crianças e os que não têm estudo.

Placa colocada pelo Incra na entrada do território do Quilombo Família Magalhães (Fotos: Daniela Perutti)
Placa colocada pelo Incra na entrada do território do Quilombo Família Magalhães (Fotos: Daniela Perutti)

Se a sensação de que a vida local está acabando é presente entre os novarromanos de um modo geral, ela parece ser ainda maior entre os membros da comunidade quilombo Família Magalhães, que vive no extremo norte do município. O grupo é originário do território Kalunga, considerado hoje o maior quilombo do país, com cerca de 8.000 pessoas distribuídas em 42 localidades (Projeto Kalunga Sustentável). A área deste, nas proximidades do rio Paranã (quilômetros abaixo do território dos Magalhães), abrange os municípios de Monte Alegre de Goiás, Teresina de Goiás e Cavalcante (confira a localização exata clicando aqui). Os primeiros indícios de constituição do quilombo naquela região datam da segunda metade do século XVIII, em documentos oficiais.

Imagem aérea de onde está quilombo Família Magalhães
(use o cursor para navegar ou veja em um mapa maior)

Uma prática narrada com frequência e atribuída aos ditos kalungueiros, sobretudo antes de seu reconhecimento pelo governo federal como quilombola, diz respeito aos constantes deslocamentos entre as serras e vales da região com o intuito de “caçar melhora”. “É porque para lá [na área Kalunga] era tudo difícil. Lá é um buraco, o povo sofreu demais. Tinha que fazer a farinha e botar no cargueiro pra ir vender cá em Monte Alegre”, conta Alvina Pereira dos Santos, a matriarca de Família Magalhães.

Foi seguindo essa lógica local de deslocamentos que Pedro Magalhães da Cunha, o falecido patriarca da família, deixou o território Kalunga nos anos de 1940, indo trabalhar como vaqueiro na fazenda Santa Rita. Já Alvina é filha de mãe kalungueira e pai baiano, e cresceu nessa mesma fazenda próxima ao território Kalunga, onde o pai também trabalhava como vaqueiro. Lá, conheceu Pedro Magalhães e com ele se casou.

Após o matrimônio, em meados do século XX, Pedro e Alvina se instalaram no atual território do quilombo, em Nova Roma, a convite de um compadre que já vivia na região, para a realização de um criatório de porco. Desde então, nunca mais saíram daquela localidade, onde viveram da caça, pesca, roças e pequenas criações, além da venda de produtos locais para trabalhadores do garimpo de Pedra Branca, instaurado em área vizinha entre os anos 70 e o início dos anos 90. Atualmente, a família conta com cerca de 100 pessoas e já está na quarta geração.

Perda gradual de território
O grupo foi perdendo sucessivamente o território que ocupava para supostos proprietários, ficando confinado a uma pequena faixa de terra. Um dos momentos mais críticos foi no início dos anos de 1980, com o aparecimento de um fazendeiro paulista que alegava ser dono da área e requeria que os moradores deixassem o local. Ele realizou grande devastação ambiental, derrubando cerca de 6 km de mata nativa para plantar arroz. Não obtendo sucesso em seu negócio, abandonou aquelas terras devastadas e nunca mais retornou, conforme detalhado no “Relatório antropológico de reconhecimento e delimitação do território da Comunidade Quilombo Família Magalhães”, feito por Roberto Almeida em 2007 para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Casa de Domingas e Louriano, Família Magalhães
Casa de Domingas e Louriano, Família Magalhães

Já em 1992, os Magalhães receberam a visita intimidadora de um advogado, Osmani Barreto dos Santos, representante dos herdeiros do suposto último comprador daquela propriedade. O grupo ficou surpreso, já que nunca havia visto tal fazendeiro, tampouco seus herdeiros, naquelas terras. Para José Magalhães, filho mais velho de Alvina, é difícil entender o “mundo da lei”, no qual alguém pode ser dono de uma terra sem nunca nela ter plantado, tampouco pisado.

Para José Magalhães, o filho mais velho, é difícil entender o ‘mundo da lei’, no qual alguém pode ser dono de uma terra sem nunca nela ter plantado, tampouco pisado

Osmani passou a intimidar os Magalhães, que relatam ameaças com armas de fogo, roubo de alimentos das roças e derrubada de cercas, além de apeamento (amarrar as patas) do gado. Segundo os moradores, ele atuou como pistoleiro e chegou a expulsar outros posseiros não quilombolas que viviam pacificamente em áreas vizinhas. Além disso, os quilombolas sofreram duas ações de despejo movidas pelo advogado em questão e quase foram efetivamente expulsos das terras que habitavam, o que também é contado no “Relatório antropológico de reconhecimento e delimitação do território da Comunidade Quilombo Família Magalhães”, de Roberto Almeida.

Direitos
Com o apoio de vizinhos e políticos locais, o grupo tomou conhecimento de que, por serem quilombolas, possuíam direito à terra conforme disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitória (ADCT). Em 2004, ao recorrer a um procurador da república e narrar a situação, foram orientados acerca de seus direitos. Assim, expediram a certidão de autorreconhecimento como quilombolas pela Fundação Cultural Palmares. Na mesma época, foram ao encontro do então presidente Lula, que esteve em evento no território Kalunga, e lhe entregaram um ofício assinado pelo então prefeito, vice-prefeito e vereadores novarromanos narrando a situação que o grupo quilombola sofria. Segundo o relato de José Magalhães, no mesmo dia o então presidente teria enviado uma resposta à prefeitura, dizendo que tomaria providências sobre o caso.

Casa de Virgínia e Salviano, Família Magalhães
Casa de Virgínia e Salviano, Família Magalhães

Ainda em 2004, Osmani foi assassinado, e até hoje não se sabe a identidade do mandante. Após a morte do advogado e ao final das ações de despejo, os supostos herdeiros ficaram com parte das terras que disputavam com Família Magalhães, aquelas nas quais o falecido advogado já havia conseguido expulsar algumas famílias não quilombolas.

Morosidade do Estado
Faz dez anos que a comunidade Família Magalhães foi reconhecida pelo governo federal como quilombola, tendo recebido a certidão de autorreconhecimento pela Fundação Cultural Palmares. Apenas em 2006 o Incra abriu o processo de titulação do território, tendo concluído, no ano seguinte, o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação da área, etapa inicial do processo (clique aqui para maiores informações sobre como se titula uma terra quilombola).

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Após anos de morosidade, em 2012, a presidenta Dilma publicou decreto para desapropriação dos três imóveis sobrepostos à área a ser titulada. Dois dos proprietários a serem desapropriados manifestaram o desejo de “vender” suas terras ao Incra, sendo que um deles, segundo os Magalhães, procurou o órgão oferecendo sua propriedade para desapropriação.

Ainda que conte atualmente com uma situação favorável e poucas propriedades a serem desapropriadas, até julho de 2014 a ação de desapropriação não havia sido ajuizada, e o processo encontrava-se paralisado. O Incra alega que ainda será necessária a realização de uma vistoria no território, para verificar os títulos incidentes e possíveis posseiros na área, antes de proceder o ajuizamento da ação, primeiro passo à desapropriação. No entanto, quase dois anos se passaram desde a assinatura do decreto sem que tal vistoria tenha sido realizada.

Domingas Pereira Fernandes em sua casa
Domingas da Cunha Santos em sua casa

Consequências irreparáveis
Enquanto isso, a comunidade sofre as consequências pela não titulação de suas terras. Orientada por agentes governamentais, ainda em 2004, a não mexer substancialmente no território, de modo a evitar novos conflitos, ela deixou de fazer roças maiores, restringindo-se a pequenas plantações no quintal de cada casa. Na falta de alternativas sustentáveis de geração de renda e acesso a crédito, que o título da terra poderia facilitar, jovens e adultos quilombolas têm abandonado o território, migrando para Brasília, Goiânia e cidades vizinhas em busca de emprego e alternativas de subsistência. “Daqui a pouco, só vai sobrar velho e criança”, sentencia Domingas da Cunha Santos, uma das filhas de Alvina.

Daqui a pouco, só vai sobrar velho e criança

Para piorar a situação, os quilombolas ainda presenciam, em seu território, atividades irregulares de extração de areia, degradando ainda mais a área, isso sem levar em conta a pesca predatória ali realizada há décadas por terceiros ‒ uma queixa constante é a de que os peixes do rio estão acabando. Diante de tudo que já passou, a família não se sente segura para se defender desse tipo de prática.

Os descendentes de Alvina já não sabem mais o que fazer. No início do ano, realizaram reunião com técnicos do Incra na qual, segundo a quilombola Isabel Pereira dos Santos, representantes do órgão teriam dito que a vistoria seria iniciada ainda no primeiro semestre de 2014. Até o momento (4 de julho de 2014), eles sequer estiveram no local para o andamento dos trabalhos. Em março, o grupo mandou um abaixo-assinado para o superintendente regional do Incra em Brasília, Marco Aurélio Bezerra da Rocha, narrando a morosidade sofrida e solicitando que a ação de desapropriação fosse ajuizada ainda no primeiro semestre. Não obtiveram qualquer resposta por parte do superintendente.

Veja fotos da folia de São Sebastião, praticada pelos quilombolas da região (clique nas imagens para ampliar):


Esse constitui exemplo de um território considerado simples de ser titulado ‒ conforme enunciaram técnicos do Incra aos membros da família ‒, mas que a morosidade produz consequências irreparáveis para o grupo. Vale dizer que o estado de Goiás não possui nenhuma terra titulada pelo governo federal, e 19 territórios aguardam pela titulação. Apenas 7% das cerca de 3.000 comunidades quilombolas estimadas no Brasil receberam o título (integral ou parcial) de seu território. No governo Dilma, o ritmo de titulações ficou ainda mais lento, com apenas quatro terras parcialmente tituladas pelo Incra (dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo). Enquanto isso, Alvina, hoje com mais de 90 anos, sonha em ainda estar viva para ver seu pedaço de chão, de seus filhos, netos, bisnetos e tataraneta, enfim titulado.

* Daniela Carolina Perutti é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).

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