– Por que a vovó tá demorando tanto? – pergunta a menina de quatro anos.
– Ela tá lá no céu, bem longe – responde o senhor de 64 anos.
– Vovô, vamos buscar a vovó.
– Mas como?
– A gente dá um salto bem grande e vai lá no céu.
Maria das Dores Priante, ou simplesmente Dôra, sabia que a qualquer momento poderia ser assassinada. Ela dizia aos familiares, às companheiras e aos companheiros de comunidade. Alertou a polícia e o governo. Várias vezes. Pediu proteção, inutilmente. Foi assassinada em 12 de agosto de 2015. Calada por lutar contra o comércio ilegal de lotes na Comunidade Portelinha, em Iranduba, município vizinho a Manaus. Ela apontava que o principal suspeito pelo crime negociava com empresários da capital amazonense, afoitos por pedaços de terra na região.
A menina de quatro anos, na verdade, não é sua neta, mas uma das filhas adotivas – a outra tem doze anos. Chamam-na de vovó por conta da idade, 54 anos. O “vovô” é o esposo de Dôra, Gerson Priante. Pele clara, cabelos brancos, barba por fazer, óculos de grau e sorriso afável, ele nos recebe com simpatia e bom humor, mas se nota em seu rosto um aspecto cansado, desanimado, de quem luta permanentemente para não desmoronar.
A história dos dois começou de forma inusitada na década de 1970, em Manaus. Gerson era padre, Dôra, catequista. Ele largou a batina, eles casaram-se e tiveram filhos. Muitos anos depois, ela conquistou um lote na comunidade Portelinha. Gerson conta que o local foi doado pela Prefeitura de Iranduba em 2008 a um grupo liderado por Adson Dias, conhecido como Pinguelão.
Por ser um loteamento de caráter social, os lotes deveriam ser distribuídos para quem precisasse. Era gente vindo de Manaus e de outras cidades do Amazonas ou de outros estados. Gente que queria um pequeno pedaço de terra. No início, a comunidade foi se desenvolvendo com base no trabalho coletivo e na solidariedade. “Cada um limpando sua área para poder construir sua casinha”, conta Gerson
Dôra e Gerson chegaram em 2011. Ela trabalhou alguns meses na Associação Comunitária Rural Portelinha, formada para receber formalmente as terras, mas se afastou após constatar práticas com as quais não concordava, como falta de democracia nas decisões e a venda de lotes, sem que o dinheiro resultante fosse revertido à comunidade. Decidiu organizar um grupo para contestar a liderança de Pinguelão, que, acuado e desgastado com as denúncias, aceitou submeter a direção da associação a eleições. O grupo de Dôra saiu vencedor e ela tomou posse como presidenta. E foi aí que os conflitos começaram a se agravar.
“Parece que ele se arrependeu. Sentiu-se de escanteio e começou a perseguição”, conta Gerson. “Ele usou todos os meios para desclassificar, caluniar, difamar. Os conflitos foram se intensificando nos últimos três anos.” Pinguelão continuava a comercializar os lotes. De acordo com as denúncias do novo grupo no comando, ele se passava por presidente da associação, vendia os terrenos para terceiros e embolsava o dinheiro. Segundo o viúvo de Dôra, Pinguelão fazia reuniões paralelas com moradores da comunidade, e ameaçava sua esposa abertamente. Cerca de um ano antes de seu assassinato, agrediu-a com um pedaço de madeira.
A senhora de rosto redondo, olhos e cabelos pretos e pele morena, não esmorecia. Continuava enfrentando o ex-líder da comunidade. Mesmo assim, por inúmeras vezes, Dôra, Gerson e demais integrantes da direção da associação foram à polícia e recorreram ao governo do estado. Denunciaram as ameaças e irregularidades também na Assembleia Legislativa do Amazonas, onde ela chegou a fazer uso da tribuna.
Em vão. Em 12 de agosto deste ano, por volta das seis e meia da noite, Maria das Dores foi sequestrada em sua casa no Portelinha, cerca de dez minutos depois de Gerson sair rumo à escola onde lecionava, a poucos quilômetros dali. Seu corpo apareceu no dia seguinte à beira da rodovia AM-070, a menos de vinte quilômetros de distância. Os legistas identificaram doze perfurações de bala e marcas de violência por todo o corpo. Acusado de ser o mandante, Pinguelão hoje está preso, aguardando o prosseguimento do inquérito policial sobre o caso.
A expansão da pequena Iranduba se intensificou marcadamente depois do anúncio, em 2007, da construção da Ponte Rio Negro, que o liga à capital amazonense. É o que apontam moradores, lideranças comunitárias, e estudiosos das questões fundiária e ambiental locais ouvidos pela reportagem. Para eles, a obra não trouxe apenas uma maior facilidade de deslocamento e o escoamento da produção: veio junto uma corrida pela terra que pressiona pequenos agricultores e ribeirinhos a saírem de suas casas.
Vende-se Iranduba
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Outdoors e banners imobiliários bombardeiam a atenção de quem entra no município de Iranduba pela rodovia estadual AM-070. Por muitos quilômetros, em qualquer direção para a qual se olha, eles estão lá: pendurados em postes, fincados no chão, acenando na mão de homens e mulheres. A propaganda anuncia o lançamento de condomínios residenciais e não deixa dúvidas de que a região passa por grande transformação.
Enormes postos de gasolina, com a respectivas lojas de conveniência, beiram a rodovia, já prontos ou em fase de construção. Em estandes erguidos sobre descampados de terra, ou sob grandes tendas brancas, corretores imobiliários e possíveis compradores negociam as melhores condições de pagamento. Os banners e outdoors quase invariavelmente mostram casais e famílias brancas, sorrindo. A exceção é José Aldo, famoso lutador de vale-tudo nascido em Manaus que posa para a propaganda do Residencial Bela Vista, inserido no programa federal Minha Casa Minha Vida e destinado a um público de classe média e classe média baixa. É o único já construído entre os avistados pela reportagem. Os demais loteamentos são ainda enormes áreas desmatadas, algumas delas já cortadas por avenidas largas e asfaltadas.
O cenário de transformação frenética do município, incrustado entres os rios Negro e Solimões, é completado pelas obras de duplicação da AM-070. Caminhões, tratores e operários circulam por todos os lados, e a mata vai dando lugar à nova área para onde a rodovia se expande. A impressão de quem observa é que em Iranduba, onde quer que se esteja e por quem quer que seja, algo grande é esperado para um futuro próximo.
Todos, população, empresários e governos, parecem desconsiderar completamente que a região em transformação integra a Área de Proteção Ambiental (APA) Margem Direita do Rio Negro, criada em 1995 pelo governo do Amazonas. De acordo com a legislação brasileira, em uma APA pode haver ocupação humana desde que esta seja disciplinada pelo poder público e que sejam asseguradas a diversidade biológica e a sustentabilidade do uso dos recursos naturais da área. Segundo Marcelo Moreira, da Fundação Vitória Amazônica, organização socioambiental com foco na Amazônia, Iranduba é o município da Região Metropolitana de Manaus em que se pôde observar nos últimos anos o maior aumento do índice de desmatamento. Levantamento feito pela entidade constatou que 21% de sua área está desmatada. A devastação na APA corresponde a 82% do total do desmatamento ocorrido em áreas protegidas do município.
“Isso aconteceu principalmente depois da construção da ponte. Há muito desmatamento em áreas de vegetação secundária, degradadas, que já foram abandonadas. Mas uma imagem de setembro de 2015 mostrou que dois fragmentos de floresta foram afetados”, explica. De acordo com Moreira, a tendência é que o desmatamento “siga” a rodovia até o município de Manacapuru, a cerca de 70 quilômetros de Iranduba.
A Repórter Brasil entrou em contato com a Secretaria de Meio Ambiente do Amazonas e com a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Iranduba para obter informações sobre as autorizações ambientais para os empreendimentos e as ações das pastas para evitar o desmatamento. No entanto, até a publicação desta reportagem não havia recebido uma resposta.
No meio do caminho fizeram uma ponte
Todos são unânimes em apontar um acontecimento como fundamental para todo esse frenesi: a construção da Ponte Rio Negro, de 3,5 quilômetros de extensão e inaugurada em outubro de 2011, com a presença da presidenta Dilma Rousseff. Ligando Manaus a Iranduba, ela facilitou o trajeto que antes só era possível de ser realizado de balsa, numa viagem que poderia durar horas dependendo do tamanho das filas.
Obra do governo estadual do Amazonas, a ponte, porém, não é um projeto isolado. Já estão a todo vapor a duplicação da rodovia AM-070, que corta Iranduba, e a construção da cidade universitária da Universidade do Estado do Amazonas, a UEA, complexo de 120 mil hectares às margens do rio que, além das dependências estudantis, contará com resort, hotéis e condomínios destinados a outros moradores. Segundo a Fundação Vitória Amazônica, o projeto deve comprometer matas primárias e secundárias, além de ampliar o risco de poluição dos corpos d’água da região.
De acordo com um estudo feito pela universidade, a inauguração da Porte Rio Negro e a construção da cidade universitária poderão fazer a população de Iranduba aumentar de cerca de 40 mil em 2010 para aproximadamente 50 mil em 2020 e quase 58 mil em 2030, isso sem contar o crescimento do fluxo de turistas a suas praias à beira do Rio Negro, como a do Açutuba. Considerando a ocupação total da capacidade dos novos empreendimentos, a estimativa salta para mais de 150 mil habitantes até 2020.
Segundo o documento, a proximidade de Iranduba com Manaus e as ofertas de trabalho e moradia decorrentes de seu crescimento favorecem a imigração de uma parcela da população periférica da capital que sofre com o déficit habitacional. “Essa facilidade de acesso está contribuindo com o aumento do número de invasões, inclusive sobre as áreas de Preservação Permanente”, diz a pesquisa
Para Antônio Fonseca, da Cáritas Arquidiocesana de Manaus, entidade ligada à Igreja Católica, a construção da ponte serviu para atender a interesses da especulação imobiliária na região. Embora o pretexto seja o de escoamento para Manaus da produção de Iranduba, município produtor, especialmente, de hortaliças e tijolos, ele enxerga a obra como parte de um projeto de interconexão muito maior, que seria completado com a construção de outra ponte. Dessa vez, sobre o rio Solimões, unindo Iranduba à rodovia BR-319. Cobrada por políticos e empresários da região, a iniciativa está nos planos do governo estadual, que em 2008 enviou uma proposta ao governo federal. Assim, com a duplicação da AM-070, seria estabelecida uma ligação por terra entre Manaus e Porto Velho, capital de Rondônia. “Quem está pensando todo esse projeto são os que estão por trás de segurar essas terras em Iranduba. Há informações privilegiadas aí”, alerta.
A cobiça de grandes empresários por terras no município, aponta Fonseca, tem feito aumentar o número e a intensidade de conflitos na região. Ele afirma que, assim como no resto do estado, Iranduba sofre com a falta de uma adequada regularização fundiária, realidade que prejudica pequenos agricultores, ribeirinhos e posseiros.
Para Gerson Priante, o assassinato de sua esposa está ligado a esse novo contexto. “Há uma mudança brusca de mentalidade. Agora, querem fazer dinheiro a qualquer custo. Há uns cinco anos era impensável um crime desses na Portelinha. Antes, todo mundo se ajudava, funcionava aquele sistema de vizinhança, de compadrio.” Segundo o viúvo de Dôra, Pinguelão, o suspeito de ser o mandante do crime, chegou a dizer abertamente que amigos empresários de Manaus pagariam um salário para ele, que poderia, assim, exercer a presidência da associação da comunidade sem a necessidade de contribuição financeira dos moradores.
Nem sempre, porém, os pequenos ocupantes têm de enfrentar grandes empresários. Em alguns casos, a ameaça e a truculência partem diretamente do poder público. Foi o que aconteceu com a construção da cidade universitária da Universidade do Estado do Amazonas, que resultou no deslocamento de comunidades ribeirinhas do Rio Negro.
Entre estas, a Nossa Senhora do Nazaré, localizada à beira do Lago do Teste. Liderados pela incansável Lucila, seus moradores conseguiram receber um valor mais alto do que o previsto de indenização. Mesmo assim, só foi possível comprar uma terra muito menor, mais para dentro do território e sem rios ou lagos próximos, alterando o modo de vida tradicional da comunidade.
Quem também luta para preservar suas tradições é Ofélia, da comunidade Igarapé do Bode, às margens do rio Solimões. Ameaçada de morte e processada injustamente por estelionato, a líder dos ribeirinhos enfrenta, juntamente com os companheiros, o assédio de uma empresa de cerâmica, por um lado, e de uma mulher cuja origem é desconhecida, por outro, pelas terras públicas que ocuparam há alguns anos.
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Cajus ao chão
Quando o carro passa pelo portão de entrada da comunidade Portelinha, Gerson Briante, no banco de trás, esconde o rosto com um casaco. Ele não quer chamar a atenção dos amigos de Adson Dias, o Pinguelão, acusado de ser o mandante do sequestro e assassinato de sua esposa. É uma terça-feira, e o cenário é de um povoado abandonado. Nas quadras delimitadas por ruas de terra batida, a maioria das casas é simples e tem as portas e janelas fechadas. Quase não se vê carros ou pessoas caminhando pela área. O viúvo de Dôra explica que em dia de semana é assim, pois a maior parte dos que estão se tornando donos dos lotes vive em Manaus e só vem nos fins de semana. Segundo ele, muita gente nova está chegando, mas hoje são poucos os terrenos onde se cultiva algo. “Há assembleias de moradores em que participam mais de 200 pessoas. É uma área de interesse, além de ser passagem dos turistas que vão para as praias do Rio Negro”, diz.
No muro do terreno de Dôra e Gerson, o aviso de que se trata da residência da presidenta da associação. Acima, sustentada por dois pedaços de pau, uma faixa, confeccionada e pendurada antes do crime, previne as pessoas em relação à atuação de Pinguelão : “Esclarecimento: o senhor Adson Dias da Silva não é presidente, não tem terras pra vender, doar ou trocar dentro da Portelinha”. No interior do lote, pode-se ver a casa simples de onde Maria das Dores foi levada à força. Um banner pendurado no pátio lateral, com uma foto sua discursando na Assembleia Legislativa do Amazonas, pede punição aos assassinos.
Gerson conta que estuda abrir um processo contra o estado amazonense por omissão, por causa das incontáveis denúncias das ameaças e pedidos de proteção feitas pela esposa. Agora, quem pede proteção é ele. “Diversos vizinhos disseram que a emboscada era para nós dois. Eu me salvei por questão de dez minutos.”
O viúvo de Dôra aponta orgulhoso para os graúdos cajus espalhados pelo solo do terreno, cujas árvores foram plantadas há anos. Mas não pode colhê-los com a frequência de antes. De licença da escola, ele dorme na casa que mantinham em Manaus. Não sabe o que fará quando acabar o prazo. Nem como organizará sua vida e das duas filhas agora sob sua exclusiva responsabilidade. “Não pretendo mais ficar na Portelinha para dormir, estou traumatizado. Não dá para ficar sozinho no local onde minha esposa foi sequestrada”. Talvez Iranduba não seja mesmo mais lugar para quem deseja apenas plantar algumas árvores em um pequeno lote de terra.