“Durmo em casa, amanheço, e a casa não é mais minha”

Lucila Viana luta para reconstruir o modo de vida ribeirinho de sua comunidade, deslocada para dar lugar à Universidade do Estado do Amazonas
Por Igor Ojeda
 09/10/2015

Sentada à mesa localizada no pátio da frente de sua nova casa, ela chora ao se lembrar do momento em que recebeu a notícia de que sua gente seria desapropriada pelo governo amazonense para dar lugar à Cidade Universitária da Universidade do Estado do Amazonas, a UEA. “Às vezes quero dar uma de durona, mas não tem por onde”, diz, enxugando as lágrimas com as costas das mãos.

A professora Lucila Arrojave Viana tem 43 anos, 30 deles vividos na comunidade Nossa Senhora do Nazaré, às margens do Lago do Teste, próximo ao Rio Negro. Lá, cerca de cem famílias viviam há décadas de agricultura, criação de animais e pesca. Plantavam macaxeira, batata, cará, maracujá. Criavam pato, frango e porco. Alguns produziam farinha. O cotidiano era simples, tranquilo, e o povoado já estava bem estruturado: tinha água, luz, escola e um posto de saúde. Apesar das altas temperaturas amazônicas, “ninguém sabia o que era calor”, conta. “Era dia e noite no lago.”

Hoje, os banhos constantes não são mais possíveis. As casas, a escola, o posto de saúde, tudo foi ao chão, e o local já passa por terraplanagem. O complexo de 120 mil hectares que está começando a ser erguido no município de Iranduba, vizinho à capital Manaus, abrigará, além das dependências estudantis, resort, hotéis e condomínios privados de alto luxo. Segundo a Fundação Vitória Amazônica, organização socioambiental com foco na Amazônia, a iniciativa deve comprometer matas primárias e secundárias, além de ampliar o risco de poluição dos corpos d’água da região.
O projeto se insere no contexto da grande expansão pela qual passa Iranduba especialmente após o anúncio de construção da Ponte Rio Negro, que a conectou a Manaus. A corrida imobiliária que se intensificou nos últimos anos pressiona comunidades tradicionais a saírem de suas terras.

Luciana Viana e seus vizinhos foram expulsos da comunidade onde viviam há décadas para a construção da Cidade Universitária. Foto: Lilo Clareto
Luciana Viana e seus vizinhos foram expulsos da comunidade onde viviam há décadas para a construção da Cidade Universitária. Foto: Lilo Clareto

Um peso sobre as costas

Para ir à comunidade Novo Teste Bela Vista, a nova casa dos ribeirinhos, é preciso pegar justamente a saída para a cidade universitária a partir da rodovia AM-070. As obras estão no começo, mas placas de trânsito já indicam o local. O acesso é feito por uma avenida larga, com duas pistas de cada lado separadas por um canteiro central. Alguns minutos depois, pode-se ver um morro descampado em meio à mata, onde circulam caminhões e operários. No topo, o “esqueleto” de um prédio em construção.

Obra da Universidade do Estado do Amazonas deslocou comunidades tradicionais e gerou desmatamento. Foto
Obra da Universidade do Estado do Amazonas deslocou comunidades tradicionais e gerou desmatamento. Foto: Lilo Clareto

É necessário sair da avenida por uma estrada de terra, pedir informações e rodar poucos quilômetros no meio da floresta até avistar a área com algumas dezenas de casas simples entrecortadas por pequenas ruas sem asfalto. O carro branco alugado e os homens que dele saem são observados com certo estranhamento. Feitas as primeiras apresentações, a receptividade é plena e sincera.

Lucila exerce seu papel de liderança naturalmente. Cuida dos interesses da comunidade com firmeza e agilidade. Não se aquieta até alcançar o objetivo. E o objetivo é, invariavelmente, coletivo. Depois de se recompor, ainda com a voz embargada ela conta que, sem aviso prévio, a comunidade recebeu a visita de técnicos da Secretaria de Política Fundiária (SPF), do governo estadual. Fazendo medições e tirando fotos, eles se limitaram a informar que a área havia sido vendida para o governo estadual. Lucila estava no centro de Iranduba quando foi avisada pelo cunhado. “Cheguei e conheci o técnico, que foi muito bruto. Ele disse que estava fazendo um trabalho que a secretaria havia mandado, que não tinha que dar explicações”, relata.

Um grande peso caiu sobre suas costas. Todos a procuravam para perguntar o que deveriam fazer. Lucila teria de resolver a própria vida e a de mais de 300 pessoas. A comunidade detinha a posse sobre a área, e aguardava o título definitivo. “Quando construí nossa casa lá, pensei que seria para o resto da vida. De uma hora para outra, eu durmo na casa, amanheço e a casa não é mais minha.”

O trauma não permite que se esqueça das datas. Segundo ela, a visita do técnico da SPF ocorreu em 29 de outubro de 2011. A desapropriação havia sido decretada três dias antes. Dois dias antes da desapropriação, havia sido inaugurada a Ponte Rio Negro. “Foi algo já planejado”, conclui. A reportagem tentou contato com a Secretaria de Política Fundiária do Amazonas, mas não havia obtido um retorno até a publicação desta matéria.

A partir daí, vendo que não havia outro jeito a não ser saírem do lugar onde viviam, Lucila deu início à luta para que as melhores condições possíveis fossem garantidas no novo lar, até então de local indefinido. “Fui em busca de informações em toda parte. Onde tinha uma porta que deixavam eu abrir, eu entrava.” Foi então que a assistente social da SPF a convidou a integrar a equipe que comandaria o processo de desapropriação. Oito meses depois de contratada, um documento caiu em suas mãos. Era uma lista com a avaliação dos valores de indenização de cada casa da comunidade. Lucila ficou chocada. “Tinha família que receberia R$ 200 por sua casa. Outras, R$ 1.500. Minha mãe, dona de um terreno de 25 hectares, que havia dado um pedaço para cada filho, ia receber R$ 3.500. Meus irmãos, R$ 8 mil, R$ 4 mil… Eu, que tinha uma casa de alvenaria, R$ 23 mil”, conta.

A líder da comunidade pediu demissão e começou a brigar por valores mais altos. Auxiliada por um procurador do Ministério Público Federal, negociou com a Secretaria de Política Fundiária. Após muita insistência, conseguiu que o governo estadual pagasse R$ 50 mil por família. Com o acordo fechado, deu início à busca de uma novo local. Encontraram um terreno de cinco hectares a cerca de quatro quilômetros de distância, para onde mudaram em fevereiro de 2013. Bem menor, mais para dentro do território, longe do rio. Em vez de extensas áreas propícias para a agricultura e a criação de animais, lotes de 10 metros de frente por 25 de fundo. Em vez de rio onde pescar e nadar, poeira e barro.

Moradores foram obrigados a reconstruir suas casas em local longe do rio e do acesso aos serviços públicos. Foto: Lilo Clareto
Moradores foram obrigados a reconstruir suas casas em local longe do rio e do acesso aos serviços públicos. Foto: Lilo Clareto

Vida que se reconstrói

“Perdemos uma parte de nossa cultura nativa. Antes, a maioria dos homens só trabalhava com agricultura. Hoje as mulheres estão aqui, ó, esperando os maridos que foram trabalhar em estaleiros em Manaus”, lamenta Lucila. Na nova comunidade, batizada de Novo Teste Bela Vista, não há posto de saúde nem poço artesiano. A água tem de ser trazida de um pequeno igarapé próximo. Os ônibus só passam na AM-070, a muitos minutos de caminhada dali. E a eletricidade só chegou porque os moradores se mobilizaram para transportar postes, fios e transformadores da antiga para a nova casa. Em setembro de 2014, receberam a notícia de que o título definitivo dos lotes desapropriados havia sido expedido. Como tinham saído do local, foi cancelado.

Mas Lucila não desanima. Enquanto aguarda do poder público a construção de uma escola, ergueu três salas de aula anexas à sua casa, onde ela e mais duas mulheres ensinam as crianças da comunidade – a Prefeitura de Iranduba envia merenda e paga uma ajuda de custo para as professoras. Ao mesmo tempo, negocia com o prefeito a doação de uma área para um projeto de horta comunitária e organiza cursos de profissionalização para as mulheres. Para o de corte e costura, conta, já são 36 inscritas. “Há mulheres aqui que já estão fazendo capas de fogão, pintando, e já estão vendendo. Já têm sua renda. Quem sabe as fardas da nossa escola serão feitas pelas próprias famílias da comunidade?”, diz, esperançosa e confiante. “Estamos lutando para melhorar a situação de cada um.”

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