Fuga de cérebros: estado mais indígena do Brasil perde alunos por falta de apoio

Sem vestibulares específicos para indígenas nas universidades públicas do Amazonas, muitos estudantes optam por se afastar de seus territórios para prosseguirem os estudos
Por Ariene Susui | Edição Paula Bianchi
 23/04/2024

“SE NO AMAZONAS tivesse vestibular específico e política de permanência, eu estudaria lá. Mas hoje estou cursando história na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Aqui faz frio, a comida é diferente, sinto falta da família, e isso abala nosso psicológico. Mas a gente segue resistindo, porque temos nossa comunidade, que nos espera de volta”, relata Vera Lúcia Aguiar Moura, do povo Tukano.

Moradora da comunidade de Maracajá, na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), na fronteira do Brasil com a Colômbia, Vera conta que sonhava em entrar em uma universidade, mas ao procurar opções no próprio Estado descobriu que o Amazonas, estado mais indígena do país, não tem um vestibular específico para indígenas. 

Em 2021, ela soube que a Unicamp possuía um vestibular desse tipo e um dos locais de prova era justamente a cidade de São Gabriel da Cachoeira. Vera e mais 87 alunos indígenas de diferentes localidades do país foram aprovados no exame.

“As pessoas podem pensar assim: ‘Nossa, mas indígena também é capaz de entrar na universidade como qualquer um de nós’. Claro que podemos. Mas nós temos um ensino desde criança diferente, temos nossas conexões com os mais velhos, que nos contam nossa história. Conhecemos nossa cultura dentro da escola e, sendo assim, por que não ter um processo específico para indígenas no nosso estado?”, critica Vera, sobre a falta de um vestibular direcionado no Amazonas. 

Ela se refere a um processo de entrada na universidade com provas com conteúdo e temática indígenas, que levem em conta as especificidades dessas populações, para ingresso exclusivamente de povos originários. 

Apesar de o Amazonas ter a maior população indígena do Brasil – 490.854 pessoas, ou cerca de 12,4% dos quase 4 milhões de habitantes do Estado, segundo o Censo de 2022 –, não há nenhum vestibular específico para indígenas. 

Dados do Inep (Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais) mostram que, entre 2018 e 2022, as instituições públicas de ensino superior do estado mantiveram uma média de 3.000 estudantes indígenas por ano. Isso representa cerca de 6% do total de alunos dessas universidades – considerando que havia 48 mil alunos na rede pública no ano passado. 

Vera, que sempre estudou em escolas indígenas em seu território, ressalta que não se trata de estabelecer uma política de cotas, como já existe na  UEA (Universidade Estadual do Amazonas). Mas criar um processo específico que leve em consideração as realidades do ensino indígena. Ela lembra, por exemplo, que, diferente de outros estudantes, aprendeu a falar a língua portuguesa aos oito anos de idade, um fator que diferencia os estudantes indígenas dos demais.

O jornalista Robson Chaves Delgado, do povo Baré, que também migrou para cursar a universidade, cita a falta de incentivo à pesquisa e produção científica que valorize as culturas e produções indígenas. Ele diz que esse foi um dos motivos que o levou a Curitiba (PR) para estudar na UFPR (Universidade Federal do Paraná). 

“Se aqui no Amazonas não tem uma política afirmativa e o governo não se preocupa, eu vou procurar onde eu consiga acessar de uma forma menos violenta. Eu poderia ficar aqui lutando, mas acredito que isso nem deveria ser discutido, já deveria ser uma política pública do próprio Estado”, afirma Robson, que voltou ao estado após se formar, no ano passado.

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Descolonizar a universidade

Vera passou para história na Unicamp, junto com mais 87 alunos indígenas de diferentes localidades do país (Foto: João Baniwa/Arquivo pessoal)
Vera passou para história na Unicamp, junto com mais 87 alunos indígenas de diferentes localidades do país (Foto: João Baniwa/Arquivo pessoal)

Vera é a única indígena na sua turma.  Na capital e dentro do campus, ela se deparou com muitos desafios, desde o clima, a alimentação até o formato de ensino, e percebeu que, apesar de ter um vestibular específico, a universidade precisa percorrer um longo caminho para se descolonizar.

“Na Unicamp tem psicólogo, mas eles nunca vão entender qual é a real situação porque eles têm outro olhar. A gente fica nessa: ‘Será que eu vou no psicólogo ou sofro aqui?’. Para nós é mais do que a questão da saúde mental, é a alimentação, é nossa comunidade, o benzimento, é a saudade de se cuidar com ervas medicinais, com curandeiro e tudo mais”, lembra.

Outra questão é o formato do ensino que, segundo Vera, desconsidera as especificidades indígenas. “Você tem que saber escrever muito bem [em português], produzir artigo, fazer um bom seminário, só que eles não vão entender que a nossa realidade é outra, que a nossa educação básica foi bem diferente daqui de São Paulo”, diz ela.

Arlindo Baré ao lado do cacique Raoni. Para o estudante, a Lei de Cotas não contempla a complexidade dos contextos indígenas (Foto: Arquivo pessoal)
Arlindo Baré ao lado do cacique Raoni. Para o estudante, a Lei de Cotas não contempla a complexidade dos contextos indígenas (Foto: Arquivo pessoal)

Presidente da União Plurinacional dos Estudantes Indígenas (UPEI) e estudante de engenharia elétrica na Unicamp, Arlindo Baré complementa que é  preciso também discutir políticas afirmativas para além da Lei de Cotas.

“A lei foi um grande avanço e serve de base para cobrar nossos direitos. Mas levando em consideração a questão étnica, ela não contempla alguns contextos. Precisamos que a bolsa permanência e os vestibulares específicos se transformem em lei”, afirma.  

Arlindo também cita a dificuldade de alunos indígenas com o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que supostamente deveria facilitar o ingresso de estudantes ao ensino superior. 

“Por exemplo, se eu for sair lá do Rio Negro para fazer a prova em São Gabriel, terei que desembolsar no mínimo R$ 1.500 só de gasolina, mais R$ 300 para ficar dois ou três dias me alimentando. Assim, eu teria que ter R$ 2.000 só para ir ou deixar meu filho fazer o Enem, e  mais R$ 1.500 para voltar. Quando o Enem foi feito, ele não pensou nessa logística”, ressalta.

A Repórter Brasil procurou o MEC (Ministério da Educação), a UFAM (Universidade Federal do Amazonas) e a Unicamp, mas não recebeu retorno. O espaço segue aberto para manifestação.

Para a antropóloga e professora Alva Rosa, do povo Tukano, primeira indígena a receber o título de doutora pela UFAM, é fundamental estabelecer um diálogo sobre a permanência dos estudantes indígenas no Estado, em especial pela preocupação com a saúde mental dos alunos. “Os estudantes estão saindo e a gente tem várias informações de estudantes que estão tendo depressão, e isso nos preocupa”, afirma. 

Segundo ela, em 2023 foi organizada uma comissão para que se construa junto às universidades uma forma de ingresso e permanência dos alunos indígenas. “Sem uma política que atenda as especificidade desses alunos nas universidades, eles acabam saindo do estado para Unicamp, UNB, Ufscar e outras, onde tem a política de acesso específico”, afirma.

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