“Um retrocesso de 20 anos”, “pá de cal” e “maracutaia”. Essas são algumas das formas que entidades ligadas à erradicação da escravidão contemporânea no país descrevem a nova portaria do Ministério do Trabalho sobre o combate a esse crime. Publicada no Diário Oficial da União, nesta segunda (16), o documento assinado pelo ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira reduz as situações que caracterizam o crime e dificulta a sua fiscalização.
A portaria sujeita a concessão de seguro-desemprego aos trabalhadores resgatados, que vem sendo pago desde 2003, e mesmo a validade da fiscalização a um novo conceito de trabalho escravo. Entre as novidades, está a necessidade de impedimento do direito de ir e vir para a caracterização do crime, tornando irrelevante as condições de trabalho às quais uma pessoa está submetida.
A Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), que coordena a atividade dos auditores fiscais, circulou um memorando interno afirmando que não foi consultada na elaboração da portaria. “A SIT orienta seus auditores a manter, por ora, as práticas conduzidas pelos normativos que até então regularam a fiscalização para a erradicação do trabalho em condições análogas à de escravo”, diz o texto assinado pelo secretário de inspeção do trabalho substituto, João Paulo Ferreira Machado.
Outras entidades também afirmaram terem sido surpreendidas. “A portaria acaba com o conceito de trabalho escravo contemporâneo, reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho como um avanço por reconhecer a moderna escravidão,” diz Antônio Carlos de Mello, coordenador do programa de combate ao trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho no Brasil.
As fontes ouvidas pela reportagem atribuem a publicação da portaria à pressão histórica de entidades ligadas ao agronegócio, ao setor têxtil e à construção civil. O fato de a medida ter sido tomada sem uma discussão prévia também tem sido duramente criticado.
“Eles tentaram fazer isso através de lei no Congresso Nacional e não conseguiram, porque a sociedade não permitiu. Agora, estão tentando isso por outras formas,” diz a procuradora da República Ana Carolina Roman.
Segundo ela, o Ministério Público estuda a possibilidade de entrar na Justiça contra a portaria, mesma possibilidade levantada pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). “A portaria invade áreas que não são de competência do ministério. As ‘inovações’ são altamente questionáveis”, diz Guilherme Feliciano, presidente da associação.
Caio Magri, diretor executivo do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, também critica a falta de discussão. “Não se altera um artigo do Código Penal através de uma maracutaia”, diz Magri, referindo-se ao conceito de trabalho escravo previsto no artigo 149 do código.
Já o deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSDB-SP), autor da lei paulista de combate à escravidão, aponta que a portaria “é uma gravíssima violação democrática e a expressão clara do espírito autoritário e descompromissado com o direitos humanos desse governo”.
Publicada nesta segunda, a medida foi decidida na última sexta (13), ou seja, na mesma semana em que o coordenador nacional de fiscalização do trabalho escravo, André Roston, foi exonerado pelo ministro. Em reunião com críticos da sua medida na última quarta-feira (11), Nogueira disse que “teria planos mais ousados” e que queria discutir o próprio conceito de trabalho escravo.
Em nota enviada por email à Repórter Brasil, o Ministério do Trabalho afirma que “o combate ao trabalho escravo é uma política pública permanente de Estado e que vem recebendo todo o apoio administrativo desta pasta, com resultados positivos concretos relativamente ao número de resgatados, e na inibição de práticas delituosas dessa natureza, que ofendem os mais básicos princípios da dignidade da pessoa humana”.
No final da tarde de segunda, após receber duras críticas pelas mudanças, o Ministério do Trabalho atualizou sua nota oficial, acrescentando que, em decorrência da portaria, processos criminais seriam abertos simultaneamente à emissão do auto de infração. Além disso, policiais federais estarão em todas as operações e as multas terão um aumento de até 500%. (Leia a íntegra)
Em nota, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), também conhecida como bancada ruralista, nega que tenha interferido junto ao Ministério do Trabalho para a publicação da portaria, já que sua atuação se concentra no Congresso. “A portaria vem ao encontro de algumas pautas da FPA e diminui a subjetividade da análise. No entanto, não participamos de nenhuma tratativa com o Poder Executivo sobre o assunto”.
Condições degradantes
A portaria anula “condições degradantes” como um dos quatro elementos que configuram trabalho análogo ao de escravo ao afirmar que essa situação só existe com cerceamento da liberdade.
“Com a nova portaria, só podemos considerar trabalho em condições degradantes se houver restrição de liberdade, com pessoas armadas ou isolamento geográfico que impeçam o trabalhador de ir e vir,” diz Antonio Mello.
De acordo com o representante da OIT, empregadores que deixavam de fornecer água potável, alimentação e descanso adequado antes podiam ser acusados de submeter pessoas a condição degradante. Isso era suficiente para caracterizar trabalho escravo. Mas, com a nova regra, essa configuração fica mais difícil.
“A portaria traz a ideia reducionista que escravo é a pessoa amarrada sem possibilidade de fugir. Essa é a ideia falsa utilizada no imaginário para tentar convencer que a legislação atual é exagerada,” diz Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra.
Para Rafael Garcia Rodrigues, procurador do trabalho e ex-coordenador nacional de erradicação ao trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho, o objetivo dessa medida também é aniquilar o conceito de servidão por dívida, um dos que podem caracterizar o crime. “Só seria escravidão análoga se também tiver exceção no direito de ir e vir por pessoas armadas. É um retrocesso inacreditável.”
A portaria também estabelece que escravo só será aquele trabalho sem consentimento por parte do trabalhador.
“Vincular o trabalho escravo ao consentimento do trabalhador é um retrocesso de no mínimo 50 anos,” diz Magno Riga, auditor fiscal do trabalho e membro do grupo especial de fiscalização móvel, responsável por checar denúncias e resgatar trabalhadores.
Para o auditor, o fato de um trabalhador ter aceitado trabalhar em um determinado local não significa que ele acatou previamente as condições de trabalho em que ele se encontra. Dessa forma, a ação estatal para retirá-lo daquele trabalho é necessária porque é pouco provável que ela saia da situação por si mesmo.
Assim, a medida restringe o próprio conceito de trabalho forçado, outro elemento que caracteriza o crime.
“Lista suja”
Outro ponto criticado na portaria é a necessidade de que veiculação do cadastro de empregadores flagrados por esse crime, a chamada “lista suja” do trabalho escravo, seja autorizada pelo próprio ministro.
Hoje, a inclusão de empresas e pessoas na lista suja não depende de seu aval e é responsabilidade da área técnica do Ministério do Trabalho. “Transformar uma decisão técnica em política é escancarar que o governo vai retirar quem interessar da lista. É um absurdo. É inadmissível”, diz Caio Magri, do Instituto Ethos.
A “lista suja” tem sido usada pela iniciativa privada para gerenciamento de risco, tanto para balizar negócios, quando guiar investimentos e conceder empréstimos. Para Magri, a mudança inviabiliza a sua utilização: “Quem vai confiar nessa lista? Os investidores vão ficar seguros de que está na lista quem deveria estar? Isso vai acabar com a credibilidade do instrumento mais importante no combate ao trabalho escravo no Brasil”.
Para o deputado Bezerra, o novo critério é completamente político. “Aos amigos tudo e aos inimigos a lei. A depender dos amigos desse governo, o critério será de proteção e impunidade para quem pratica esse crime,” diz o parlamentar.
Em sua nota, o ministério não comentou a possibilidade de ingerência política. A pasta afirma que a lista “é um valioso instrumento de coerção estatal, e deve coexistir com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.”
A portaria também estabelece a obrigatoriedade de um boletim de ocorrência para validar a fiscalização que resultou no resgate de trabalhadores e, portanto, incluir, posteriormente, o nome de um empregador na “lista suja”. Com a medida, haverá a necessidade de que, além do auditor fiscal do trabalho, um policial valide a operação.
“Trazer essa responsabilidade para um policial militar é absurdo,” diz Magri. “Só se for para darem voz de prisão flagrante ao infrator, mas isso não vai acontecer. O policial estará lá para protelar o processo, para retirar a caracterização objetiva do crime.”
Para o representante da OIT no Brasil, essa mudança mina o trabalho de fiscalização e repressão porque presume que o fiscal não está falando a verdade. “O reconhecimento não é mais da fiscalização do trabalho, mas da polícia”, conclui.