As demissões em massa nas últimas semanas, os cortes de custos e investimentos em reportagens e a perigosa aproximação entre redações e equipes de publicidade (ver “Jornalismo patrocinado” e “‘Washington Post’ passa a publicar comentários patrocinados“) são sintomas não só de uma crise editorial grave que tende a se intensificar, mas do momento de transformação que vivemos. Em uma sociedade em que a informação se espalha com mais e mais velocidade, é cada vez mais difícil pensar nela como mercadoria – ou tentar controlar (e taxar) seu fluxo. Acesso à informação e conhecimento são direitos – cada vez mais gente entende isso.
Como, então, garantir a produção de notícias e reportagens? Jornalismo de qualidade custa caro e depende de investimento. Manter um repórter em uma apuração pelo tempo necessário, podendo se aprofundar, se especializar, estudar, ler, fazer entrevistas e conversar com pessoas (não apenas para obter aspas, mas para tentar realmente entender um assunto), custa caro. Garantir a um fotógrafo a possibilidade de estudar luz, enquadramento, conhecer um tema, pensar sobre ele, também. Organizar informações apuradas, selecionar o que é mais importante, editar imagens e vídeos, criar infográficos e páginas especiais, igualmente.
Não dá para simplesmente “precarizar” a profissão, encolher equipes e basear a produção em frilas ou terceirizados – que, na cobertura de temas sensíveis, sem estabilidade profissional, nem sempre têm como aprofundar investigações, revelar problemas, incomodar, como é necessário ao bom jornalismo. É claro que a tecnologia ajuda a diminuir custos, mas, por mais que hoje seja muito mais fácil (e barato) ter equipes fotografando, filmando e até transmitindo, ou criar sites e especiais e outras plataformas de divulgação, não dá para pensar no corte de custos como a solução para o momento atual.
De que maneira manter a produção de reportagens aprofundadas e o jornalismo investigativo? Alguns jornais e TVs têm apostado em fórmulas mistas, abrindo parte do conteúdo e cobrando acesso para áreas especiais. Outros têm seguido a estratégia de adotar um tom cada vez mais opinativo e menos informativo, envolvendo emocionalmente o público, conseguindo assim mais audiência e lucrando com isso. Jornalismo feito (só) com o fígado, porém, têm limites. Que o digam jornalistas sensacionalistas e suas audiências limitadas. Quando a paixão pura e simples começa a afetar a credibilidade, a audiência não sobe.
Caminhos possíveis
O que fazer? Não há caminhos definidos nem fórmulas fáceis. O momento é de transformação e há espaço para a inovação e a ousadia. Para quem tem esperança em uma sociedade cada vez mais aberta, em sistemas de poder mais transparentes e efetivamente democráticos, faz sentido apostar em modelos afins com o bem público.
Adotar licenças abertas para reprodução de conteúdo em vez do tradicional “copyright”, facilitar a difusão de dados, construir projetos específicos apostando no bom jornalismo – que, sim, custa caro, mas dá audiência – são saídas possíveis. Entender a internet como um ambiente de rede, horizontal, dinâmico e ágil, também. O desafio para quem acredita na profissão é justamente conciliar as possibilidades que se abrem com o bom jornalismo. Aproveitar a velocidade sem abrir mão do cuidado com a checagem, com a qualidade da informação, com a apuração.
Muita gente pergunta como é mantida a Repórter Brasil, organização social que há onze anos trabalha com questões socioambientais e se tornou referência em informações sobre combate ao trabalho escravo contemporâneo. Tendo como premissa a independência editorial radical e a preocupação de agir em coerência com o caráter público que o jornalismo tem – ou deveria ter –, procuramos constantemente caminhos diversificados de obter financiamento. Seja por meio de convênios com organizações da sociedade civil, seja com publicidade, seja participando de editais públicos relacionados com a área de atuação da organização, seja apresentando projetos de especiais para instituição privadas (como o Meia Infância, uma parceria com a Fundação Telefônica que possibilitou a produção de uma série dereportagens quinzenais sobre trabalho infantil para o ano todo), estamos sempre procurando novos caminhos. É hora de aproveitar este momento de transformação. Esta pode ser vista como uma época de crise, mas também como uma fase rica em oportunidades.
É nesse contexto que decidimos construir e apresentar nosso primeiro projeto baseado em financiamento coletivo: o “Arquitetura da Gentrificação”. Trata-se de uma iniciativa encabeçada pela jornalista Sabrina Duran e organizada na plataforma Catarse. A ideia é possibilitar uma investigação aprofundada de três meses sobre o processo de gentrificação ocorrido na região central de São Paulo nos últimos anos, com a expulsão direta e indireta da população mais pobre e o encarecimento de serviços, aluguéis e imóveis. Pretendemos mapear atores, interesses e mecanismos e apresentar a apuração em uma série de reportagens com infográficos, vídeos e fotos em uma página web especialmente criada para isso.
Esta tentativa de construir um novo modelo para produzir jornalismo independente tem recebido apoios diversos. A proposta de uma ferramenta diferenciada foi apoiada no Festival de Ideias, com um investimento-semente de R$ 2.500. Interessados no tema têm manifestado apoio público ao projeto – como Raquel Rolnik, relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada, e Benedito Barbosa, da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo. Urbanistas e representantes de movimentos sociais aproveitaram a página aberta no Facebook para discutir diferentes aspectos da questão. O público participa da construção do projeto pelas redes sociais.
Para o especial sair do papel, precisamos arrecadar o valor total pretendido (R$ 18 mil), conforme as regras do Catarse (apoie! apoie! apoie! Catarse.me/ag). Mas já conseguimos chamar atenção para o tema, colocar o assunto em debate, o que por si só é uma vitória.
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Daniel Santini é coordenador da agência de notícias da ONG Repórter Brasil e colunista de jornalismo de dados na plataforma Data Cidades do site ((o)) eco
Texto originalmente publicado no Observatório da Imprensa