Como órgãos públicos dificultam o acesso a informações sobre o caminho do gado

Parceria entre Global Witness e DataFixers.org realizou uma série de solicitações via LAI para demonstrar, na prática, as dificuldades de acesso a esses dados
Por Luiz Fernando Toledo*
 05/07/2023

Em novembro de 2022, a Repórter Brasil e o Greenpeace Brasil revelaram que a JBS, um dos maiores frigoríficos do planeta, comprou 8.785 cabeças de gado em fazendas que desmataram a Amazônia, em Rondônia. 

Na mesma linha, investigação da Revista Piauí, da agência Fiquem Sabendo e do Center for Climate Crime Analysis (CCCA), em julho de 2022, apontou que, entre 2018 e 2021, pelo menos 91,2 mil animais saíram de terras públicas invadidas no Pará. Ainda em 2020, a Agência Pública revelou a existência de lavagem de gado em terra indígena no Mato Grosso.

O que essas investigações têm em comum? O fato de que, conduzidas por jornalistas e pesquisadores, tiveram como uma das principais fontes a Guia do Trânsito Animal, mais conhecido como GTA, um documento gerido pelos estados para fazer o controle sanitário do gado.

A GTA é usada para o transporte animal no Brasil e contém informações essenciais para a rastreabilidade dos rebanhos, como origem, destino, finalidade, espécies, vacinações e outros.

Muitos são os motivos alegados por especialistas de diversas áreas para defender a publicidade da GTA, como a defesa da saúde pública, o acompanhamento ambiental da atividade pecuária, o estado das instalações em que os animais são tratados.

Apesar da evidente e reiteradamente demonstrada importância desses dados para o controle social, acessar esses documentos pelas vias oficiais é praticamente impossível, já que os governos estaduais e federal a consideram sigilosa. Os motivos alegados para justificar a confidencialidade das informações são os mais diversos e passam da alegação que essas informações afetariam a competitividade das empresas (sigilo empresarial) e até que são pessoais (o que daria sigilo de até 100 anos ao dado, seguindo o artigo 31 da Lei de Acesso à Informação, a LAI).

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A Global Witness, em parceria com o DataFixers.org, projeto hospedado na Universidade de Columbia e especializado em acesso a dados sobre crimes ambientais, realizou uma série de solicitações de informação nos últimos meses e conversou com especialistas para demonstrar, na prática, as dificuldades de acesso a esses dados. Para a nossa pesquisa foram enviadas solicitações ao Mato Grosso, Pará e Acre entre os meses de novembro de 2022 e janeiro de 2023. São três estados inseridos na Amazônia Legal, território onde a pecuária é o maior vetor de desmatamento, segundo estudo recente do Imazon.

Os pedidos de informação requereram acesso aos dados integrais das GTAs, compreendendo nome, endereço, número e quantitativo de rebanho e outras informações. O requerente da informação registrou que é pesquisador formalmente vinculado a um instituto de pesquisa de uma universidade e apresentou comprovante do vínculo no anexo do pedido. 

Logo no texto inicial dos pedidos foi apresentada longa explanação sobre o fato de que deve-se dar o acesso em caso de solicitações que tenham amplo interesse público para pesquisa, seguindo o artigo 57 do decreto que regulamentou a Lei de Acesso à Informação (LAI) no Brasil, que diz não haver necessidade de consentimento do titular da informação nestes casos. 

Violações à LAI começam antes mesmo da GTA

Uma das conclusões deste levantamento foi que, mesmo antes dos problemas específicos com a GTA, os órgãos estaduais possuem graves falhas de cumprimento à Lei de Acesso à Informação.

O Estado do Acre sequer respondeu aos pedidos de informação. Foram registradas solicitações nos dias 6 de dezembro de 2022 e novos pedidos cobrando resposta foram reenviados no dia 10 de janeiro de 2023 – todos ignorados. Uma reclamação feita à Controladoria Geral do Estado foi recebida e o órgão diz ter enviado ofícios cobrando respostas dos órgãos competentes. Ignorar pedidos de LAI deveria gerar punições ao órgão –, mas até o momento não houve qualquer esclarecimento.

Após queixa, Controladoria-Geral do Acre pediu que o órgão de defesa agropecuária do estado responda o pedido de LAI, ignorado após vários meses (Reprodução)

Em Mato Grosso a violação à LAI já começa no próprio design do site para registro dos pedidos de informação. O governo do Estado “esconde” seu canal para registrar pedidos e, diferentemente de outros estados, sequer chama o serviço pelo nome padrão (Serviço de Informação ao Cidadão, ou e-SIC). Quando as respostas chegam por e-mail, o órgão indica que o cidadão abra um link que está constantemente fora do ar para acessar a resposta.

O link contido na mensagem da CGU parece conter um erro, já que há um fragmento (:80) no meio do endereço, que, se retirado, faz com que o direcionamento on-line funcione.

Página da CGE de Mato Grosso, indicada para busca das respostas obtidas via LAI, tem endereço  constantemente fora do ar (Reprodução: CGE/MT)

Passado o desafio inicial em Mato Grosso, conseguimos uma resposta: os dados foram enviados somente de forma resumida, com dois links (aqui e aqui) sem os nomes dos proprietários, negados com base na Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD.

Tentamos reclamar da negativa, mas surgiu outro problema grave na estrutura do formulário: há um campo apenas para registrar pedidos de informação, mas não existe nenhuma forma de abrir um recurso caso o solicitante não concorde com a resposta, a não ser registrando um novo pedido, com outro protocolo. A Lei de Acesso à Informação diz expressamente que permitir recursos é uma obrigação de todos os órgãos públicos.

O órgão se defendeu alegando que os recursos são vinculados “internamente” ao pedido mesmo quando aberto um novo protocolo. Mas mesmo ao tentarmos, o recurso foi ignorado – abrimos novo pedido em 13 de dezembro e nunca tivemos resposta, embora a lei diga que o prazo máximo para atender um recurso é de cinco dias.

Desde a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação, ao menos 17 pedidos de informação sobre a GTA foram feitos ao Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso (Indea), segundo dados fornecidos pelo órgão à Global Witness, em parceria com o projeto DataFixers.org, da Universidade de Columbia.

Desses, sete foram negados por alegação de que as informações pedidas eram pessoais ou protegidas por algum tipo de sigilo, três alegaram inexistência da informação e o restante encaminhou o solicitante para sites do próprio governo que mostram informações genéricas sobre o assunto, mas sem detalhar todos os dados pedidos (como no caso da resposta que recebemos). Os pedidos que foram concedidos – apenas três – eram mais genéricos: um deles, de 2016, pedia o número total de GTAs emitidas em 2015. Outros dois, feitos em 2020, pediam informações pontuais sobre como emitir a GTA e sobre normas e regulamentações que versem sobre a transparência da GTA.

Já no Pará, a opacidade sobre o tema é tão presente que nem mesmo estatísticas de solicitações de informação sobre a GTA, como as fornecidas por Mato Grosso, foram enviadas, com a alegação de que esses dados também poderiam violar leis ou esbarrar em sigilos dos requerentes de informação. Em conversas com especialistas, conseguimos identificar ao menos um caso em que as GTAs foram concedidas em um pedido de informação a um cidadão, após vários recursos, no ano de 2022, mas outros pedidos – inclusive o nosso – foram negados em todas as instâncias, também com base na LGPD.

O Pará vai na contramão de uma recomendação feita pelo Ministério Público Federal (MPF), ainda em 2015, para que a Agência Estadual de Defesa Agropecuária do Pará, a Adepará, dê plena transparência às informações da GTA, incluindo número, data de emissão, volume transportado, procedência (CPF, CNPJ, nome, estabelecimento, município), destino (CPF/CNPJ, nome, estabelecimento, município), idade, finalidade, unidade expedidora e observações.

O MPF apontou que “o amplo acesso aos dados de Guias de Transporte Animal é instrumento imprescindível para concretização do princípio da informação ambiental no que tange à cadeia da pecuária, já que permitirá aos cidadãos e à sociedade civil organizada, com muito mais acuidade, controlar as implicações ambientais que decorrem dessa atividade.”

* Luiz Fernando Toledo é fundador do datafixers.org, que tem financiamento do Brown Institute for Media Innovation (Columbia University). A pesquisa para este artigo foi feita em colaboração com Global Witness

Os artigos publicados são de responsabilidade de seus autores e não representam, necessariamente, a opinião da Repórter Brasil.


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