O último brasileiro

No sul do Estado, fazendeiros e madeireiras estão destruindo reservas demarcadas, espantando à bala ou matando os índios envenenados. Nesse contexto, a cobertura da história de um índio sobrevivente e solitário que há anos foge nas matas da região.
Por Leonardo Sakamoto
 01/01/2000
Imagem do índio reproduzida a partir de vídeo de Vincent Carelli

"Acompanhando o ruído de folhas pisadas, vimos seu vulto por entre os arbustos. Caminhava rapidamente, mas sem correr e sem olhar para o nosso lado, sumindo na sua experiência de fugitivo. Pouco adiante, cerca de 200 metros, o reencontramos sentado em frente a uma palhoça. Ao nos vir, pulou para dentro. Iniciamos, então, uma longa tentativa para convencê-lo de que não queríamos lhe fazer mal. Um índio canoê que nos acompanhava depositou seu arco e flecha ao lado da palhoça, tirou a camisa e começou um ritual de cura para ver se o atraía.

Ficamos na espera e nada, nem um ruído.

Sentindo-se ameaçado, resolveu nos mostrar os seus sentimentos. Enfiou uma flecha para fora e apontou para um membro da equipe. Não sabemos se foi de propósito ou não, mas o fato é que ele errou. E errou por pouco, pois a lança passou a centímetros do peito do Vincent. Usando uma vara, lhe oferecemos milho, que violentamente despedaçou com seus golpes. Tentamos conversar, rimos na sua frente, oferecemos mais milho, machado, ajuda. Mas sempre em vão, só a flecha. Sempre a flecha…"

Esse é o desabafo de Marcelo dos Santos, chefe da Frente de Contato Guaporé, em uma das inúmeras tentativas de estabelecer comunicação com o último índio remanescente de uma tribo desconhecida. Ele perambula sozinho nas selvas ao sul do Estado de Rondônia. Ninguém sabe qual seu nome, qual sua etnia, língua ou origem. Um vulto que assombra silenciosamente a Floresta Amazônica, atormentando com sua existência, os fazendeiros que destruíram sua roça e mataram a sua gente. Para entender a sua história, primeiro é preciso compreender a sua realidade.

A Frente de Contato Guaporé é um braço da Fundação Nacional do Índio (Funai) que tem por objetivo localizar e proteger os últimos grupos indígenas isolados no estado. A estimativa é de que estejam espalhados aos milhares pelas matas um dia profanadas pelo marechal Cândido Rondon no início do século. Fazem hoje o que os irmãos Villas Bôas fizeram na década de 40, quando estabeleceram contato com as comunidades do Xingu.

A Frente vive diariamente uma corrida contra o relógio. A região é uma das que mais crescem em todo o país com a expansão da fronteira agrícola na direção oeste. O governo, na ânsia de desenvolvimento, dividiu as terras em lotes, que foram arrematados em leilões na década de 80. O objetivo original era de que cada família ficasse com um pequeno lote, tocando, dessa maneira, a colonização definitiva do Estado. Ninguém poderia comprar mais de um. Porém, famílias influentes, utilizando-se de testas de ferro, adquiriram dezenas deles criando imensos latifúndios. Não é difícil comprovar isso. Muitas fazendas da região, enormes latifúndios, têm só uma sede e um gerente, que fala o nome de um único proprietário.

A presença desses gigantes acabou por expulsar muitos dos pequenos colonos. De acordo com Joaquim – o nome é fictício para evitar represálias – engenheiros a mando da família Moisés de Freitas (que junto com a família Duarte dita a lei no sul de Rondônia) desviaram o curso de um rio, impedindo que a água chegasse à sua terra. Dessa forma, foi obrigado a abandoná-la e ir para a cidade, aumentando o número de desempregados que dependem da boa vontade dos latifúndios e das madeireiras.

Toras de madeira nobre em fazenda da região (foto Marcelo dos Santos)

O comércio de madeiras nobres, como o mogno e a cabreúva, é proibido em toda a Amazônia. Contudo, a proibição fica só no papel em Brasília. Depende do preço que você estiver disposto a pagar por um jeitinho especial ou um privilégio. Funcionários públicos, fiscais, policiais, políticos, todos estão à venda. A diferença é que uns custam mais, outros menos.

Caminhões carregados levantam poeira pelas estradas de terra de Colorado d`Oeste, Pimenta Bueno, Vilhena e dezenas de outros municípios, transportando toneladas de madeira recém-abatidas. Quem faz o trajeto entre as cidades de Pimenteiras e Cerejeiras à noite, chega a ficar assustado com a movimentação das carretas.

Há de ressaltar que, fora as madeiras nobres, o corte outras ávores não é ilegal. A lei obriga que 80% da capa original de mata amazônica seja preservada, podendo o proprietário fazer o que bem entender com o resto. Pasto, plantação, o que for. Se ficou assustado saiba que, antes, a proibição era mais branda, e podia-se derrubar até 50% da área do lote.

Porém, as estradas da Região Norte são precárias e o perigo de se viajar à noite é muito grande. Nestas horas, os caminhoneiros se recolhem para o descanso merecido. Só se cruza os caminhos de terra desta rota de tráfico de drogas se for realmente necessário, ou se quiser esconder algo. Muitas madeireiras, que transportam madeiras nobres ou outras árvores derrubadas ilegalmente além do limite permitido, escondem-se na escuridão para fugir da ação dos fiscais.

Desmatamento fora de controle

Caminhões lotados de toras chegam diariamente às serrarias de várias cidades cortadas pela BR-364, rodovia que sai de Rondônia, rasga o Acre e termina no ponto mais ocidental do Brasil, a Serra do Divisor. Boa parte da população desse eixo depende delas para sobreviver. Em Vilhena, as atividades voltadas ao beneficiamento da madeira empregam metade de todas as vagas do setor secundário – dados da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia. De acordo com o Serviço Nacional do Emprego, os maiores contratadores são madeireiras e serrarias. Isso, sem considerar os trabalhadores não registrados que ganham por dia de serviço, principalmente na derrubada de novas áreas.

O que a natureza demorou séculos para fazer, o homem está destruindo em alguns anos. Por mais piegas que essa afirmação possa ser ela explica bem o que está acontecendo em Rondônia. A capa vegetal original do Estado está indo por ralo abaixo e, junto com isso suas terras, uma vez que o solo arenoso vem causando a desertificação em vários pontos da Amazônia. O município de Pimenta Bueno teve 27% de sua área desmatada, São Felipe d`Oeste, 52%. Primavera de Rondônia, 87%. As árvores, matéria-prima das serrarias, estão ficando cada vez mais difíceis de serem obtidas. Os olhos dos latifundiários voltam-se cada vez mais para as á
reas indígenas, seus mognos e cedros. Existem em Rondônia 16 parques indígenas, ocupando uma área de quase 4,5 milhões de hectares, ou seja, 18,5% da superfície do Estado. Somando-se às Reservas Biológicas, tem-se um total de 26,7% da área rondonense protegida do desmatamento. E, mesmo assim, motoserras não sabem o que são limites de parques ou reservas.

"Coroa" entalhada em tronco pelo índio solitário

Devido à sua colonização tardia – a grande onda aconteceu apenas durante os anos da ditadura militar – Rondônia ainda possui diversos grupos indígenas isolados, sem ou com pouquíssimo contato com o homem branco. Muitos dos quais nem se conhece a existência. A cada dia descobrem-se tribos. Como boa parte das terras do Estado já foi dividida e leiloada, o aparecimento de novas comunidades acontece em terras privadas. E o Estatuto do Índio, lei federal, garante que as áreas em que forem encontrados grupos indígenas serão interditadas para a criação de reservas. Estudam-se os locais onde os índios caçam, pescam, plantam suas roças, seus locais sagrados, místicos e de culto e com isso demarca-se uma área. Ao proprietário cabe uma indenização pelas terras e mais as benfeitorias que tenha realizado. É claro que isso nunca vai cobrir o valor da madeira que ele poderia abater ilegalmente e exportar para os europeus fazerem mesas, cadeiras e divãs.

Ou seja, para eles, encontrar índios na fazenda é sinal de mal agouro. Próximo a Corumbiara, índios canoês e aikunsus foram contatados pela primeira vez há alguns anos. Como resultado desse encontro, a Frente Guaporé conseguiu que o governo interditasse uma área de 600 quilômetros quadrados, abrangendo diversas propriedades rurais para garantir a sobrevivência desse grupo.

Para quem não se lembra, Corumbiara foi palco de um massacre em agosto de 1995 no qual nove trabalhadores rurais sem-terra foram mortos pela Polícia Militar, durante uma reintegração de posse. Hoje, a Procuradoria Geral de Justiça de Rondônia está pensando em reabrir o inquérito criminal pois foram encontradas testemunhas que afirmam que pistoleiros contratados pela família Duarte participaram da ação.

A interdição de terras é de grande ajuda pois imputa como crime qualquer intervenção do proprietário. Mas, tendo em vista a corrupção que permeia todos os patamares da sociedade rondonense, fazendeiros continuam a fazer o que bem entendem. Muitos até com proteção vinda da capital federal.

Área desmatada próxima à Corumbiara

A fazenda do senador

O senador Amir Lando (PMDB-RO), sócio de uma das propriedades interditadas, está sendo acusado de promover a derrubada e o comércio ilegal, roubando madeira da reserva indígena do Omerê, próximo a Corumbiara. Há também a denúncia de que o senador esteja fazendo pressão contra a interdição e tentando a demissão de membros da Funai de Rondônia – o que, é claro, facilitaria a vida de latifundiários que querem despejar os "incômodos inquilinos" descobertos em suas terras.

"Sempre fui um defensor dos índios!", defende-se Amir Lando. O senador afirmou que tirou apenas algumas árvores para fazer porteiras para a sua fazenda e 25 pontes para a prefeitura de Corumbiara e que, legalmente, suas terras não fazem parte da interdição. "Vou fazer esses caras da Funai pagarem uma baita indenização por estarem me acusando dessas coisas. Mas não agora. Vou esperar a poeira baixar primeiro. Gosto do verde. Tem até uns mognos que estou cuidando como relíquia."

Ele não reconhece por ter não sido pessoalmente intimado pela Justiça sobre suas terras. Coisas do Brasil. Contudo, queira ou não, seu lote faz parte da reserva do Omerê e não se poderia retirar uma árvore sequer sem o consentimento dos órgãos competentes.

A Funai não tem poder de polícia, não pode prender ninguém ou autuar. Para essa função regularizada dependeria uma portaria que cisma em não ser aprovada em Brasília. Autua-se por tabela com a ajuda de outras instituições federais.

É o que aconteceu nesse caso. O Ibama, junto com a Polícia Federal, realizou uma vistoria na fazenda do senador a pedido da Frente Guaporé e constataram o delito. Porém, o crime não pode ser registrado como derrubada de árvores em área interditada para uso indígena. A autuação do Ibama foi pelo fato de os proprietários não possuírem uma autorização de corte. E para obter essa autorização, tem que se preencher vários quesitos, entre eles não haver nenhuma ordem de interdição indígena. A Funai fica a mercê da boa vontade dos outros para fazer valer o direito indígena.

O Ibama realizou autuação em que constatava a derrubada ilegal de, pelo menos 150 cabreúvas – a segunda madeira mais nobre da região, perdendo apenas para o mogno – na área interditada.

Um grande entrave jurídico para que a lei seja cumprida é que boa parte das fazendas está em nome de terceiros, testas de ferro ou familiares, sobrinhos, o que impede que ações sejam impetradas.

Primeiramente, o auto de infração saiu em nome de Amir Lando. Porém – como em um passe de mágica – acabou mudando de nome, e foi destinado para o verdadeiro proprietário Leandro Vicente Lopes – que, de acordo com jornalistas de Rondônia, seria parente do senador. Estranho, pois quando questionado pela reportagem, Amir Lando afirmou que o lote é seu há 15 anos, "licitado pela União".

Enquanto o processo estivesse correndo, a madeira não poderia ser doada, vendida ou utilizada para qualquer finalidade. Como a situação era de "fiel depositário", as madeiras deveriam continuar lá. Pelo menos é o que aponta o processo.

Contudo, não estão mais. De acordo com o Secretário de Fazenda da cidade de Corumbiara (município onde está localizada a fazenda), as madeiras que o senador "deu" estão sendo utilizadas para fazer pontes. "E pontes grandes, com mais de 21 metros de comprimento."

Quando índios são descobertos, as fazendas vizinhas também se alarmam, pois as áreas indígenas costumam ser extensas. Em alguns locais, começa-se uma espécie de caçada em busca de "solucionar" possíveis problemas.

Testemunhas afirmam que foi isso o que aconteceu próximo à cidade de Chupinguaia. Ao perceber que outras propriedades em Corumbiara foram interditadas para a reserva do Omer&e
circ;, pecuaristas que tinham contato com uma tribo indígena isolada em suas terras mandaram dar açúcar de presente aos índios. O que não avisou a eles é que o açúcar tinha sido temperado com veneno de rato. Segundo essas testemunhas, a maior parte dos membros da tribo morreu envenenada e os outros mortos ou afugentados à bala. Isso teria ocorrido há mais de dez anos. Infelizmente, as testemunhas que poderiam comprovar as suspeitas sobre os fazendeiros que ordenaram a matança estão desaparecidas. Medo de serem as próximas vítimas em uma terra sem lei. No Brasil o serviço de proteção às testemunhas é pífio e não oferece garantias satisfatórias para que peças-chave na solução de crimes contem o que saibam.

Cabana do índio solitário em foto de Marcelo dos Santos

Testemunha ocular

Nosso índio do início da reportagem eria sido o último sobrevivente e, desde então, vive fugindo com medo dos brancos pela matas da região. Através de informantes e investigações, a equipe da Frente Guaporé chegou até ele. De olhos miúdos e desconfiados, o índio tem várias peculiaridades não encontrados em poucos grupos indígenas. Usa costeletas. Sua moradia, pequenas cabanas construídas com armação de varas e cobertas de palha, possui em seu interior um buraco de 2,5 metros de profundidade. Próximo às suas palhoças, escolhe uma árvore e com um machado faz um anel no tronco, uma espécie de coroa. Acredita-se que, tanto o buraco como o anel, tenham finalidades espirituais.

Muda-se com freqüência, principalmente quando um branco descobre onde está residindo. Nos últimos anos, já se mudou quinze vezes – sempre dentro de uma área de mata virgem. Para garantir a sua segurança, foi pedida ao governo federal a interdição desta região em 1997, abrangendo pedaços de três fazendas, num total de 60 quilômetros quadrados.

Isso gerou um debate acalorado e a ira de agricultores. Muitos acusam os integrantes da Frente Guaporé de "plantarem" o índio. O que é um péssimo argumento haja vista que a Funai faz vistorias em fazendas a pedido dos próprios donos e quando constatada a inexistência de grupos indígenas, expede certificados para que a terra possa ser utilizada sempre problemas. Além disso, sob essa visão, a Funai teria que ter plantado alguns milhares de índios por todo o Estado.

O debate assumiu níveis de ignorância explícita quando jornais de São Paulo consideraram um absurdo interditar 60 km2 para uma só pessoa, comparando a situação com a de trabalhadores rurais sem-terra que esperam a reforma agrária. Primeiro, é um grande erro comparar culturas tão diferentes e tão díspares. Índios isolados caçam e para isso precisam de uma grande área, enquanto nós podemos escolher nossos produtos industrializados e com conservantes nas prateleiras de qualquer supermercado. Isso sem falar das mudanças de roçado e nas suas áreas místicas. E não são as reservas indígenas o entrave da reforma agrária no Brasil. Sabemos que o problema está mais para a política do que a para a antropologia.

E há um argumento maior do que todos esses: ele chegou lá primeiro. Estimativas apontam que os índios nhambiquaras, por exemplo, vivem naquelas bandas há pelo menos 4 mil anos, tendo tido contato com os incas muito tempo antes dos espanhóis.

A área abrange as fazendas Carlinhos, Socel e Modelo. A primeira delas, que possui apenas uma pequena área incluída, já não possuía capa florestal na época da interdição. A Socel não está realizando desmatamentos nos lotes atingidos. Porém, a Fazenda Modelo, dos irmãos Dennis e Hércules Golveia Dalafini, tem uma história que vem de longe.

Não foram eles que envenenaram os índios, pois adquiriram a propriedade anos após a provável chacina. Mas quando as terras foram parar em suas mãos, descobriu-se que uma aldeia existia, habitada por alguns indivíduos. Acredita-se que essa era a aldeia dos índios envenenados. Testemunhas afirmam que, quando souberam disso, os Dalafini mandaram limpar um retângulo de mata em torno do que era a aldeia para apagar qualquer vestígio de ocupação indígena anterior. Derrubaram-se árvores, queimaram-se cabanas, roças foram destruídas. De acordo com as mesmas testemunhas, quem morava na aldeia fugiu sob uma chuva de balas.

Buraco no centro da moradia do índio

Poderia-se dizer que foi uma derrubada normal, como qualquer outra, dentro da lei. Contudo isso aconteceu em janeiro de 1994 e nesse mês não se realizam cortes de árvores, pois o céu simplesmente despenca no verão equatorial amazônico. Grandes derrubadas costumam acontecer no inverno, seco, para que, quando cheguem as chuvas, os campos já estejam limpos para pastos, plantações ou construções. Nas fotos de satélite, é possível ver onde era a aldeia e o retângulo feito em torno dela.

Os Dalafini praticamente puseram a baixo toda a mata no ano passado, desrespeitando a portaria federal. Hoje, o lote 37, setor 9, da gleba Corumbiara praticamente é uma grande pasto. E, para piorar, os proprietários não autorizam a entrada de agentes da Funai na área porque não quiseram receber a ordem judicial que mantinha a interdição. Em tese, a prorrogação vale até dezembro deste ano, porém como ninguém quis assinar coisa nenhuma, a data será postergada. Dennis Dalafini foi procurado pela reportagem, mas não retornou a ligação até o fechamento desta edição.

Com o derramamento de óleo na Baía de Guanabara pela Petrobrás colocou-se em pauta as leis de crime ambiental e todo mundo ficou sabendo o valor do teto da multa: R$ 50 milhões. Vergonhoso saber que até agora o máximo cobrado em caso de destruição nas fazendas da região, com a derrubada de grandes áreas de mata virgem, raramente chegou a R$ 5 mil. E que quando se atenta contra um ser humano, no caso do índio solitário, não acontece nada. Quanto mais longe das metrópoles, menos vale a vida.

Talvez pressentindo isso, o índio não queira conversa com brancos. A maior aproximação foi um canequinho de alumínio e uma machadinha de ferro que foram deixados lá como presentes e ele levou. Vários dialetos indígenas já foram usados em tentativas de conversa, mas sem sucesso. Não se descarta a possibilidade de que ele seja surdo por decorrência de uma eventual ingestão do veneno.

Foto de satélite mostra área onde ficava sua aldeia

A intenção da Frente Guaporé seria convencê-lo a morar em uma reserva de índios não aculturados, no qual saísse desse estado de ermitão para viver em conjunto novamente. E também por causa do tempo, que avança rapidamente na mesma velocidade com que uma tora cai no chão. Contudo, ao que parece, apesar das várias tentativas, ele quer permanecer sozinho. E se quiser morrer assim, é direito dele, garantido pelo Estatuto do Índio.

A última fronteira

Talvez também saiba que, morando novamente em sociedade, possa ter o mesmo destino que outras tribos em Rondônia que, de tanto contato com o homem branco, acabaram por querer ser iguais a eles. Como alguns nhambiquaras, que descobriram que a madeira da qual suas terras estavam recheadas valia cachaça, carros, casas de alvenaria, aparelhos de televisão. Alguns transformaram prostitutas brancas em esposas, pagando casa e comida para elas na cidade, enquanto mantinham suas outras mulheres na aldeia. O resultado: um aumento no caso de índios portadores de HIV. Criou-se uma outra classe social dentro dos índios, uma classe dos ricos, formada por aqueles que cuidavam da madeira.

Mas não fizeram planos para o futuro, deixaram suas terras nuas, torraram todo o dinheiro e agora estão na miséria.

Não poderia dizer que, se o comércio ilegal não existisse, hoje a situação seria diferente. Quem sabe uma legislação mais rigorosa, coibindo a extração desenfreada de árvores. Ou uma fiscalização eficiente, com maior amparo legal aos índios, deixando-os livres dos atravessadores, brasileiros ou estrangeiros, que vêem exportar a floresta. Há ainda também a moralização do sistema, passando pela limpeza dos corruptos.

Mas há algo inevitável que não se pode negar. O contato nessas áreas até então preservadas é cada vez maior. As fronteiras dos últimos índios isolados foram caindo exponencialmente da segunda metade do século até agora, guiadas por um lado pelo fator econômico, do desenvolvimento, e do outro por uma espécie de messianismo. Ainda há os que acreditam que é necessário levar o índio brasileiro da idade das trevas da perdição para a luz de nossa sabedoria ocidental, chegando a ponto de sugerir a eles o "american way of life" como linha de comportamento. É uma questão de tempo até os valores ocidentais chegarem aos índios isolados do Estado de Rondônia. Porém, sua aculturação não é irreversível. Podemos ficar sentados e esperar acontecer o que houve em outros lugares do Brasil, onde índios pedem esmolas na porta de bancos, em Rio Branco, ou se vestem especialmente para dançar para crianças da classe média alta de São Paulo, na aldeia do Morro da Saudade, em Parelheiros. Ou podemos procurar soluções para que esse encontro seja o menos traumático possível e que sejam preservados sua cultura e, principalmente, sua dignidade.

Para isso é necessário que lhes seja garantido não só o direito de usar a sua própria terra, mas também apoio para encarar esse mundo novo que avança assustadoramente na velocidade de uma onça. Nisso, instituições como a Frente Guaporé, em Rondônia, e outras frentes espalhadas pela Amazônia têm papel fundamental.

Soluções maiores passam pela melhoria de toda a sociedade civil brasileira. Para compensar a perda de dinheiro com a interdição de terras, mantendo o mesmo lucro, madeireiras dispensam funcionários. Ou por outra, com menos madeira para cortar e transformar em tábuas, não há geração de empregos. Fazendeiros, serrarias e políticos jogam a culpa nos índios e em suas "imensas propriedades" improdutivas.

Na Região Norte, índio é sinônimo de atraso no desenvolvimento. Há os que possuem o discurso ensaiado, como as empresas de extração mineral da Amazônia – que babam em cima de reservas indígenas ricas em ouro, diamantes e até urânio.

A culpa do desemprego e da pobreza recai sobre os ombros de pessoas que não sabem ainda nem o conceito de dinheiro. Todos querem ficar com as terras indígenas por acharem um exagero tanto para tão poucos. Uma versão local do argumento dos jornais de São Paulo.

O impasse gerado é um tanto quanto desconfortável para o Sudeste que acha que a Amazônia tenha que ser, para sempre, o seu jardim pessoal, intocado, algo para pendurar na parede feito uma pintura de Monet. Ao mesmo tempo que ainda projetam no índio a figura rosseauniana do "bom selvagem", considerando impossível eles abaterem suas próprias terras na busca pelo padrão da cidade grande, criando assim um laço social na marra.

O rio Guaporé é a linha que separa o Brasil da Bolívia

O Sudeste já fez isso uma vez. É só lembrar que boa parte dos índios da terra de Pindorama vivia no litoral da Mata Atlântica. Hoje eles sumiram e a floresta também.

 

O conceito de desenvolvimento sustentável ainda é incipiente, para não falar quase inexistente em várias partes do Brasil. E é mais fácil ignorar o que se aprendeu com os erros do passado do que pegar um atalho para obter dinheiro fácil. Não é destruindo o ecossistema que o desemprego será solucionado. E depois, quando a madeira acabar também nas reservas, o que irá se fazer? Atravessar a fronteira e atacar a Bolívia? Bem, não se está muito longe disso, uma vez que guardas florestais do Parque Noel Kempf Mercado, uma reserva boliviana bem cuidada e estruturada, acusam brasileiros de roubar madeira.

O futuro do desenvolvimento sustentável passa por uma reformulação nos projetos para a região. Talvez seja a hora de trocar a pecuária, pela agricultura (há terra roxa de ótima qualidade em Rondônia) e principalmente pelo turismo. O Vale do Rio Guaporé, por exemplo, com sua pouca infra-estrutura, já atrai visitantes do mundo inteiro.

Por conseguinte, disso depende o futuro de todos grupos indígenas não só de Rondônia, mas de todo o país. A história do índio solitário não é única. Como ele, milhares de outros estão sozinhos, mesmo vivendo em grandes aldeias. Abandonados, desprezados, encurralados na terra que um dia já foi sua. Trocados por boi com o apoio e a conivência da sociedade civil. Ou servindo de atração circense nas grandes capitais.

Em toda a Região Norte, índios vem sendo mortos com a mesma freqü&
ecirc;ncia em que árvores são transformadas em tábuas. E nunca ninguém precisará saber ao certo quem faz isso porque, na verdade, não estamos mesmo interessados. Que a vida siga como ela sempre foi: nós com nosso Jardim de Giverny, os europeus com suas mesas de madeira maciça, os latifundiários com grandes pastos, políticos com férias em Angra e os trabalhadores com seus empregos efêmeros. Do que nos interessa a vida de um só índio, que foge bandido pelas matas cumprindo pena por ter subvertido a ordem nacional.

Marcelo dos Santos, da Frente Guaporé, termina:

"…depois de seis horas de tentativas, desistimos. Ele no seu desespero e ódio não deseja, neste momento, dialogar ou receber visitas de quem quer que seja. Porque, mais do que ninguém, sabe o que é perder todos os seus parentes pelas mãos dos que agora aparecem para ofertar comida. Está só e parece querer morrer assim. Voltamos para nosso acampamento. Noite longa e triste."

Rondônia, Janeiro de 2000

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