À sombra do passado

Índios guaranis, descendentes das reduções jesuíticas dos séculos 17 e 18, sobrevivem de vender réplicas das ruínas de suas cidades em São Miguel, Rio Grande do Sul, morando precariamente nos arredores da cidade. O tempo passou, mas a justiça não.
Por Leonardo Sakamoto
 01/12/2000

 

Pôr do Sol nas ruínas de São Miguel

No início de 1994, um grupo de guaranis foi enxotado de uma cidade gaúcha, pois os donos do lugar não queriam índios zanzando na região. Colocaram a carga indesejada em uma kombi e a depositaram no município de São Miguel das Missões que, de acordo com a prefeitura descontente, dona da kombi e do direito de ir e vir, lá sim era terra de índio.

Recebidos pela população, os guaranis montaram uma aldeia, onde vivem até hoje. Nos finais de semana e dias de grande movimento, como nas festas de final de ano, famílias inteiras deixam silenciosamente suas casas de lona cobertas com palha – que mais se assemelham a barracos de um acampamento sem-terra – e caminham alguns quilômetros até atingir as ruínas da velha igreja. Não falam com estranhos, talvez por também se sentirem estrangeiros nessa terra.

Chegando, estendem pelo chão onças, corujas, tamanduás, arcos e flechas, cruzes e outros artesanatos feitos de madeira queimada e bambu, contas e outros penduricalhos. O parco português da maioria é suficiente apenas para dizer os preços aos turistas: a partir de R$ 4,00, dependendo do trabalho gasto na confecção da peça. Ao mesmo tempo em que os pais negociam, as crianças brincam pelo gramado do sítio arqueológico. Correm e jogam futebol, fazendo de traves dois restos de colunas com mais de 300 anos de idade. A bola vai rolando, ignorando a presença de quem quer que seja, enquanto a outra desce vagarosamente em direção ao horizonte pintando o céu de dourado. Provavelmente um presente de Pedro a Miguel, pois é véspera de Natal. Outras crianças, ficam à espera de turistas no estacionamento, correndo em sua direção. “Troquinho, troquinho!.” Esmolas nessa noite são mais difíceis de serem negadas.

Índia expõe artesanato a turistas na véspera de Natal

A concentração de visitantes vai aumentando: afinal de contas todos querem assistir a missa nas ruínas do povoado jesuíta de São Miguel Arcanjo, tornado Monumento Nacional desde 1938 e declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 1983. São Miguel era a antiga capital dos Sete Povos das Missões, cidades guaranis que por conta do trabalho dos padres da Companhia de Jesus, chegaram a juntar milhares de almas pagãs convertidas à fé católica.

Um turista se aproxima, pede licença e abraça uma velha índia enquanto outro tira a foto. Sai contente, quase se esquecendo de agradecer: “essa vai ficar para história!”. Depois se aproxima de uma parede da igreja e bate outro retrato com o mesmo sorriso no rosto.

Quando a noite cai e a missa começa, já não há mais nenhum guarani nas ruínas. Apenas o refletor iluminando um altar improvisado, cercado pela multidão. Na fala do bispo, convidado da vizinha Santo Ângelo para a cerimônia, graças aos céus por 500 anos de cristianização e três séculos da ação da Companhia de Jesus.

Os índios retornam à aldeia levando de volta suas réplicas de cruz jesuítica que, apesar de fazerem sucesso entre os turistas, não foram totalmente vendidas desta vez. O povo construtor daquela cidade, hoje em ruínas, que já foi senhor de todas as terras ao redor, sobrevive de réplicas de seu passado vendidas a turistas brancos.

Uma fina ironia que, para ser compreendida melhor, necessita de alguns séculos de explicação.

Conquista Espiritual

O crescimento das religiões protestantes por toda a Europa levou a um movimento de contra-reforma pelas mãos da Santa Sé com o objetivo de reduzir as baixas e diminuir os prejuízos. Por um lado, houve algumas mudanças necessárias como o fim da venda e comercialização de indulgências. Porém, quase todas as outras medidas tornavam ainda mais severa a intransigência religiosa.

Onde a argumentação não funcionou foram utilizadas técnicas de intimidação. A Inquisição percorreu boa parte do velho continente buscando hereges e infiéis, porém foi na Península Ibérica e na Itália que alcançou o auge do terror, conseguindo, por fim, apagar desses lugares os vestígios de protestantismo.

Escultura em madeira policromada feita por guaranis entre os séculos XVII e XVIII

Em 27 de setembro de 1540, o papa Paulo III deu estatuto religioso à Companhia de Jesus, liderada pelo ex-guerreiro espanhol Inácio de Loyola. Os jesuítas – como conhecidos os seus integrantes – eram, antes de mais nada, soldados que utilizavam como armas a persuasão e o conhecimento das doutrinas da igreja. Assim, partiram aos mais distantes cantos do mundo para difundir o catolicismo.

Nessa época, Portugal e Espanha lançavam-se às suas conquistas de além mar, invadindo as terras do Novo Mundo e escravizando ou eliminando seus antigos moradores. E um dos locais escolhidos pelos jesuítas foi exatamente o Novo Mundo e suas legiões de pagãos que adoravam a natureza e precisavam ter suas almas salvas.

Os jesuítas permaneceram no Brasil até 1760, data de sua expulsão, cumprindo-se decreto do Marquês de Pombal de um ano antes. Pouco tempo depois, por influência de Pombal, também foram enxotados das terras da Espanha e da França e por fim, extintos pelo papa Clemente XIX em 1773. Iriam ressurgir em 1783 por ordem de Pio VI, mas já sem a força de antes.

Com o objetivo de levar a fé católica aos mais distantes lugares acabaram sendo responsáveis por parte de nosso desenvolvimento urbano, fundando vilas e povoações, entre elas a de São Paulo, em 1554. Mas foi o governo espanhol que viu neles a viabilização para suas nascentes colônias na região da bacia do rio da Prata.

Civilizar para catequizar, organizando politicamente e estruturando o território. E em 1607, começou a ser criada a Província Jesuítica do Paraguai nas terras pertencentes à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas e hoje divididas entre o Paraguai, a Argentina e o Brasil. Os índios, através da ação dos padres, foram convencidos a deixar as aldeias nas matas e montanhas e a morar em povoados, por eles mesmos erguidos. Ao todo, as missões foram compostas por 30 reduções jesuíticas, agrupando dezenas de milhares de índios.

A produção
agrícola, destaque para produção de erva mate, e pecuária conseqüente dessa organização social foi muito proveitosa para a coroa espanhola. Além disso, as missões jesuíticas foram responsáveis pela implantação de algumas das primeiras manufaturas da continente americano, do trabalho com o couro à metalurgia.

Esculturas do Museu das Missões, dentro do sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo

A missão de São Miguel Arcanjo foi fundada em 1632, no centro do atual Estado do Rio Grande do Sul. Simultaneamente às ações da Companhia de Jesus, os bandeirantes partiam país adentro em busca de ouro, pedras preciosas e força de trabalho. A captura e a comercialização de escravos índios foi um dos negócios mais lucrativos dos paulistas e o desenvolvimento desses povoados rapidamente atraiu a atenção sua atenção. Apesar das missões estarem sob a proteção de Madri, os bandeirantes ignoraram Tordesilhas e avançaram sob o consentimento de Lisboa.

Por isso, não muito tempo depois, jesuítas e guaranis foram forçados a abandonar esse povoado e empurrados para o outro lado do rio Uruguai com destino ao atual território da Argentina. Retornaram em 1687, reconstruindo São Miguel Arcanjo, agora em sua localização definitiva.

Sete Povos das Missões

Em território brasileiro, foram criadas sete cidades, sete reduções missioneiras que ficaram conhecidas como os Sete Povos das Missões: São Borja, São Luiz Gonzaga, São Lourenço Mártir, São Nicolau, São João Batista, Santo Angelo Custódio e São Miguel Arcanjo.

Os jesuítas não foram santos. Eram soldados e agiam como tal em busca do objetivo. Com o uso da retórica e outros artifícios, forçaram guaranis a mudar o seu secular estilo de vida e a aceitar a religião católica como única forma de salvação. Porém, as reduções serviram também como forma de organizar os índios contra ataques de fazedores de escravos e de garantir um diálogo entre os antigos e os novos donos daquela terra. E se eles nunca tivessem vindo, teria sido melhor ou pior? Discussão que não levaria a lugar nenhum uma vez que, na história, não existe o condicional “se”.

Sílvio Karaí fabrica uma zarabatana com bambu em sua tenda na aldeia

Não os absolvendo, mas levando isso em conta, é impossível não reconhecer a produção cultural no apogeu dos Sete Povos entre os séculos XVII e XVIII. Muitos jesuítas eram mestres escultores, pintores, músicos, arquitetos, escritores. Esses europeus ensinaram aos guaranis técnicas artísticas, tentando reproduzir o que consideravam o padrão de civilização. Construíram-se instrumentos musicais tocados por orquestras indígenas. Produziram-se tecidos para vestimentas. Nasceram estátuas de santos e anjos em madeira policromada que adornavam o interior das igrejas e catedrais. Esculturas em arenito, telas pintadas a óleo, criando um estilo novo de arte, o barroco missioneiro.

Os povoados eram projetados e seguiram padrões. O edifício mais imponente era o da igreja, que ficava de frente para a praça, centro de toda a vida social. Em volta dela, ficavam as casas dos índios e o cabildo, ou conselho dos caciques. De um lado da igreja, o colégio, a residência dos padres e oficinas. Do outro, o cemitério e o cotiguaçú, uma casa que recebia os órfãos e as viúvas. Atrás, o pomar e hortas dos jesuítas. Nas redondezas, fontes de água, olarias, cortumes, açudes e plantações.

Maquete do povoado de São Miguel Arcanjo que se encontra no sítio arqueológico. O maior edifício é a catedral. E as dezenas de construções iguais, as casas dos índios

Cada redução possuía dois jesuítas, um responsável pelos assuntos religiosos, outro pela administração da cidade junto com os caciques do cabildo. Alguns autores consideram as missões uma experiência teocrática e escravista, comandadas por padres-soldados que dividiam a manipulação do espírito com a cobiça comercial. Outros que foi uma experiência comunista – apesar das propriedade provada existir livremente. Porém, se considerarmos o contexto histórico, sua organização nos moldes ocidentais de civilização e desconsiderarmos a liberdade da alma – são lembradas como umas das maiores experiências de democracia em todo o mundo. Uma sociedade, vivendo em cidades, nas quais o bem público realmente estava acima do bem pessoal.

A Guerra Guaranítica

Dentre os Sete Povos, São Miguel destacou-se entre os demais, tornando-se sua capital. Possuía a mais imponente das igrejas, cujas ruínas, patrimônio da humanidade, ainda existem. Quando, no seu apogeu, atingiu 7 mil habitantes, foi desmembrada e os primogênitos de cada família migraram para uma área próxima fundando o povoado de São João Batista.

Em 1750, as coroas de Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Madri trocando a Colônia de Sacramento, de posse portuguesa, localizada no rio da Prata, pelos Sete Povos das Missões. Os espanhóis queriam evitar a fuga das riquezas de suas terra que acontecia através de Sacramento ao mesmo tempo em que almejavam a hegemonia na foz do Prata, um dos pontos mais estratégicos da América do Sul. Agora em terras portuguesas, os Sete Povos não receberiam mais proteção da Espanha. Jesuítas e guaranis foram comunicados que deveriam se mudar, cruzando novamente o rio Uruguai.

Mulheres guaranis em frente à catedral de São Miguel das Missões

Furiosos e traídos por Madri, negaram-se a sair das cidades que haviam erguido e declararam guerra aos colonizadores. Exércitos conjuntos dos dois impérios foram enviados para pôr fim à revolta. A luta, ficou equilibrada por muito tempo até que, por fim, os índios se viram derrotados, contando seus milhares de mortos. Povoados incendiados, escravos capturados e a experi&e
circ;ncia democrática dos Sete Povos extinta.

A partir daí as reduções entraram em decadência e, acentuadas pela expulsão dos jesuítas, foram sendo invadidas pelo mato do esquecimento. O cacique Sepé Tiaraju, que liderou a revolta e foi morto em combate, soltou aos colonizadores antes de morrer um grito que ecoaria perdido pelas matas e ruínas das missões nos séculos seguintes: “Essa terra tem dono!”

São Miguel

Mais de 200 anos depois, um pequeno grupo de guaranis volta a São Miguel das Missões – cidade fundada em torno dos remanescentes de São Miguel Arcanjo distante 490 quilômetros da capital Porto Alegre – para fazer aldeia. Em verdade, os guaranis são um povo tradicionalmente nômade. Vagam pelo mundo em busca da “terra sem mal”, um lugar em que nada falta, sem doenças e dor. Quando expulsos da cidade gaúcha do início da reportagem, procuravam o seu paraíso.

Simplificando, o processo é assim: primeiro o pajé, encarregado de descobrir o lugar, sonha com ele. O sonho depois é dividido com a aldeia que, em conjunto, tenta visualizá-lo. Por fim, começa uma busca pelo lugar na esperança de que seja finalmente a terra prometida.

Desde 1994, o acampamento guarani está na área do parque da Fonte Missioneira, uma bica d’água usada pelos jesuítas para abastecimento, pertencente ao patrimônio nacional. “No início, houve uma certa resistência da esfera federal para deixar os índios ficarem em São Miguel”, conta Luís Cláudio Silva, diretor da Tekohá, uma organização não-governamental que vem cuidando da preservação dos remanescentes das missões. Segundo ele, o governo temia que a memória histórica da cidade legitimasse os guaranis a começar uma luta pela retomada das terras locais.

Algumas casas de lona, cada uma abrigando mais de uma família, seguem em uma fila mal feita, pulam um córrego – atravessando o local onde os jesuítas davam de beber aos bois e cavalos – e chegam aos pés de milho que alimentam a aldeia. Ao lado das espigas dos brancos, cresce uma espécie diferente. “Essa é mais robusta e resistente às pragas e é produzida há muito tempo pelos guaranis”, conta Nicanor Benítez Karaí, que prontamente atende os visitantes por ser o maior conhecedor da língua portuguesa – uma espécie de relações públicas de lá. Ele conseguiu as sementes com outra tribo em um dos encontros do conselho dos povos indígenas do Rio Grande do Sul, em que está sempre presente.

As crianças são a maioria. E, apesar do cuidado com as tradições, a cultura ocidental já mudou bastante esta geração

Muitos na aldeia falam espanhol, mas não português. Quase todos moravam na Argentina, próximo a redução jesuítica de San Ignacio Mini, considerado um dos mais belos remanescentes arquitetônicos das missões. Mas como a vida estava difícil por lá, cruzaram o rio Uruguai em busca do paraíso. “Nós guaranis não temos fronteira”, explica Nicanor.

Próximo às casas, um campo de futebol com traves feitas de bambu. Pequeno, terra batida, cercado por um punhado de mata missioneira, como é denominada a vegetação da região – com árvores de porte alto, diferindo de sua prima Atlântica do litoral. Nicanor é vascaíno e comemorou a virada de seu time em cima deste repórter palmeirense, ao mesmo tempo em que discutia a espetacular campanha do São Caetano na Copa João Havelange. No final de semana anterior ao Natal, a aldeia inteira seguiu viagem para Porto Alegre em um ônibus cedido pela prefeitura de São Miguel. Tinham algo importante a resolver, um acordo firmado com os guaranis que vivem nos arredores da capital.

Entre o campo e as casas, a escola guarani, que ficou apenas nas fundações dos troncos de madeira. O objetivo era criar um lugar em que a língua e a cultura guarani fossem passadas às crianças e onde os adultos tivessem a oportunidade de aprender o português. Atualmente, as crianças podem freqüentar as escolas dos brancos caso os pais desejem.

Aldeia índigena guarani, com suas lonas de plástico preto e antenas de TV

Apesar de séculos de ataques contra sua cultura, os guaranis das missões conservaram suas tradições e língua, crenças e, na medida do possível, até o estilo de vida. É claro, também tiveram que se adaptar e foram adaptados. Em várias tendas, antenas de televisão colocadas no topo de altos bambus abastecem pequenos televisores movidos à bateria.

Voltando da excursão, os índios estavam um pouco abatidos. Afinal de contas, o time da aldeia havia sido goleado pelos da capital por 6 a 1 em um campo lotado de torcedores guaranis que foram assistir ao amistoso.

Artesanato, cultura e sobrevivência

Floriano Verá Sondaro, possui 36 anos, é cacique de 53 pessoas, das quais 29 são crianças. Seu pai também era cacique mas, quando atingiu certa idade e se sentiu preparado, tornou-se pajé – sendo a ponte da aldeia com o outro mundo até o dia de sua morte.

Floriano Verá, cacique da aldeia, mostra sua casa feita de palha e lona: defende que a cultura guarani não acabou

“Dizem que nós, guaranis, deixamos a cultura de lado. Mentira! Não deixamos de lado. Mas aqui é muito pequeno, não tem mato, não dá para caçar, não dá para pescar, não dá para fazer nada.” De qualquer maneira, involuntariamente, sua cultura vai gradativamente se perdendo à medida em que os velhos morrem e os mais novos descobrem novos interesses pois não conseguem enxergar um futuro.

Esses descendentes guaranis, assim como seus antepassados, também produzem esculturas. Não mais dos santos católicos, mas inspirados na fauna da região e nas ruínas das missões. Não fazem apenas como pura manifestação artística, mas por questão de sobrevivência.

A agricultura de subsistência não é suficiente para abastecer a aldeia devido à quantidade minúscula de terras disponíveis. Isso aliado ao fato de que São Miguel é um grande ponto turístico, o artesanato acaba despontando como uma solução para a renda. Com o consentimento de proprietários da região,
eles retiram árvores como o salso e a guajuriva (confecção das esculturas) e bambu e raízes de guaimbé (para cestas e outros trabalhos de palha).

Silvío Reis Karaí faz zarabatanas. Anselmo Ferreira Verá, tartarugas. Todas as famílias produzem em série e vendem o material próximo às ruínas. Nos meses de inverno, cada família consegue entre R$ 200,00 e R$ 300,00 com esse trabalho. “Depois temos que guardar para o verão”, contam Anselmo, Sílvio e Nicanor. Isso porque nos meses mais frios, excursões de estudantes visitam a cidade e são mais gastadores que os turistas de fim de ano.

A bem da verdade, a venda de artesanato é responsável pelo sustento de muitas tribos ao longo do território brasileiro. Mas em São Miguel isso ganha outra conotação devido à sombra dos Sete Povos das Missões.

Terra sem mal

Criança observa sementes de milho usadas pelos guaranis, mais resistentes a praga que o milho branco

Nos últimos tempos soluções mais perenes começaram a surgir. Há alguns meses, o governo do Rio Grande do Sul comprou três áreas no interior do estado para dar aos grupos guaranis – antiga reivindicação de índios e ONGs. De acordo com Luís Cláudio Silva, que participou desse processo, a escolha dos locais se deu em acordo com futuros moradores e seus pajés. A idéia é criar ilhas de espaço para os índios poderem transitar pelo território gaúcho.

Para o grupo de São Miguel foi adquirida uma área preservada de 236 hectares nos limites do rio Nhacapetum, dentro do município. O falecido proprietário e as terras já eras velhos conhecidos da aldeia, pois lá era retirada parte da madeira para a produção de artesanato.

Gumercindo Vargas, coordenador da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) na região, informou que o objetivo é que, até o fim do primeiro trimestre de 2001, eles deixem a aldeia/acampamento de lonas pretas e se instalem em definitivo na nova área. “Pediram para poderem construir as moradias de duas maneiras: de alvenaria e também no estilo deles, com palha e madeira. Para isso, o governo já concedeu a utilização de madeira apreendida devido a extrações ilegais.” Para Gumercindo, um dos cuidados mais importantes é tentar não alterar sua cultura, trabalhando ao máximo com elementos de sua origem.

Nicanor Karaí junto a uma espiga de milho de uma espécie usada pelos guaranis na horta da aldeia

O programa também fornecerá verba para a compra de bois, cavalos, galinhas além de preparar 10 hectares para a agricultura. Vão ser utilizados o milho, o feijão e a mandioca tradicionais dos guaranis, plantadas espécies de bambus para ajudar no artesanato e cipó e capim para cobrir as casas. A prefeitura entrará com as instalações de fornecimento de água e com a mão de obra para ajudar na construção do conjunto. Gumercindo sugeriu a implantação de painéis solares, energia elétrica limpa e ecologicamente correta. “Mas a decisão final, assim como todas as decisões sobre área, será deles.” Toda a verba destinada ao projeto é considerada a fundo perdido.

No local do atual acampamento, será criado um parque arborizado e instalada uma casa de passagem para ajudar na venda do artesanato, uma vez que a reserva, apesar de ligada por estrada ao município, está distante do centro. Está próxima a uma assentamento de trabalhadores rurais sem-terra com 28 famílias. Discute-se agora se as crianças guaranis estudarão na mesma escola em que os filhos dos assentados ou terão a sua própria na aldeia – sonho antigo, que permanece nas fundações de madeira do acampamento de lona.

Terra sem mal?

Apesar de os guaranis serem um povo nômade, a aldeia de São Miguel decidiu se estabelecer na reserva, criando laços com a terra. O mesmo laço que seus pais, gerações atrás, tiveram que criar por intermédio da ação dos jesuítas.

Criança da aldeia guarani: 29 no total

Atrás do sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, fica um lugar chamado ironicamente de Vila da Alegria. Casas pobres, muitas feitas com dificuldades, gente humilde. Lá vivem muitos descendentes dos guaranis da época das missões que, com o tempo, se misturaram ao branco. Hoje, vivem em uma triste situação de não serem nem brancos, para possuírem as facilidades do colonizador (que se mantêm até hoje), nem índios, e obterem alguns direitos do Estado, como o não pagamento de vários impostos e taxas. São chamados de guaranis invisíveis. Estão em uma espécie de limbo, renegados ao esquecimento, cobertos pelas largas sombras das ruínas da igreja.

“Os guaranis foram usados e depois expulsos. Conseguiram manter sua identidade cultural, mas ainda não possuem estrutura organizada para defender seus direitos”, desabafa Luís Cláudio Silva. O branco incorporou tudo, até o grito do cacique Sepé Tiaraju.

“Essa terra tem dono!”

E não só tem dono como a exploração do passado dos Sete Povos e da imagem guarani tem servido muito bem aos brancos. Uma verdadeira festa, na qual quem a organizou foi expulso e é obrigado a assistir de fora. Celebram-se missas pela memória do passado e esquece-se das necessidades do presente.

Porém, pacientemente, o cacique Floriano ainda espera por dias melhores. Uma espera secular que começou quando seus antepassados viram os primeiros europeus. “É preciso lutar por terras que já foram nossas. As ruínas de estão lá para nos mostrar que é preciso continuar lutando.”

Museu das Missões

O Museu das Missões: madeira policromada

O sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo é de responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Dentro dessa área podem ser vistas as ruínas da antiga catedral, projeto do arquiteto j
esuíta João Batista Prímoli e que foi construída entre 1735 e 1745. Em estilo barroco, era toda branca e dentro possuía rica ornamentação de quadros pintados a óleo e estátuas. Foi feita em tijolos de arenito, sem ser utilizada qualquer cimento, cal ou argamassa para uní-los. Foram moldados para que as saliências de um se ajustassem perfeitamente às imperfeições de outro. Ruínas do cemitério, oficinas, escola, casas dos índios também estão espalhadas em torno da praça central do antigo povoado.

O Museu das Missões foi criado em 1940. Projetado por Lúcio Costa – pai da planta urbanística de Brasília -, tem inspiração nas antigas habitações dos índios da época. Possui um acervo com mais de 100 peças de madeira policromada, sinos e esculturas em arenito. Várias de suas obras foram emprestadas à exposição comemorativa aos 500 anos do Brasil em São Paulo.

Todas as noites, há um espetáculo de luz e som em que a história das missões é narrada por atores de teatro e televisão brasileiros.

São Miguel das Missões, Natal de 2000

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