Triste herança

O governo do Amapá acusa a Icomi de contaminar com arsênio um vilarejo de pescadores que moram em palafitas no rio Amazonas. O metal teria se desprendido do manganês extraído da Serra do Navio durante processo de purificação.
Por Leonardo Sakamoto
 01/01/2001

 

Crianças brincando em igarapé na Vila do Elesbão

A Indústria e Comércio de Minérios S.A. (Icomi) está sendo acusada pelo governo do estado do Amapá de ter contaminado a região do porto de Santana, próximo da capital Macapá, com arsênio – substância altamente tóxica que pode provocar câncer e até a morte. Processos para o enriquecimento do manganês, proveniente da Serra do Navio, teriam liberado o produto, impregnando o ar e a água. Perto dali, a vila do Elesbão, uma comunidade de pescadores que vive sobre palafitas às margens do rio Amazonas, enfrenta graves problemas de saúde.

De acordo com a Secretaria do Meio Ambiente do Amapá (Sema), exames preliminares feitos pela Universidade Federal do Pará, a partir de amostras de cabelo de cem moradores da vila do Elesbão, indicaram que 98 teriam no organismo índice de arsênio superior ao tolerado pela Organização Mundial da Saúde.

O governo do estado, através da Sema, já aplicou duas multas: uma no valor de R$ 40 milhões, pela contaminação, e outra de R$ 12 milhões, por ter a empresa levado de volta o minério contaminado às minas da Serra do Navio. A Icomi recorreu na Justiça. José Luiz Ortiz Vergolino, diretor superintendente da empresa, diz que estão sendo aguardados resultados de novas análises na população da vila, e que já foi determinada a transferência do minério para um aterro controlado.

A pesquisa e o laudo estão a cargo do Instituto Evandro Chagas, ligado à Fundação Nacional da Saúde, em Belém. Porém, de acordo com Edvaldo Souza, assessor jurídico da Sema, independentemente do resultado desses exames, o governo dará continuidade ao processo na Justiça, devido à enorme quantidade de provas e evidências que mostram a negligência da empresa no caso.

Enquanto isso, o Elesbão aguarda. "Estão morrendo crianças e os próprios adultos. Mas ninguém vem informar a gente de nada. A população continua nadando no rio e comendo camarão", reclama Josequias Antônio da Silva, líder comunitário da vila.

Tudo começou na década de 40, quando um caboclo que morava no meio do então território do Amapá levou um pedaço de pedra cinzenta para mostrar ao pessoal da cidade. Aquele torrão duro, quebradiço (muito parecido com ferro) despertou a atenção de gente que via naquele achado uma possibilidade de grandes lucros.

No rastro da 2ª Guerra Mundial, com o apoio do governo norte-americano, o Brasil alavancava sua indústria de base, com o impulso da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), alimentada pela hematita (minério de ferro) de Minas Gerais. Mundo afora, o aço adquiria mais e mais importância, tanto para recuperar o que foi danificado nas batalhas quanto para o desenvolvimento das nações.

Josequias, líder comunitário, em seu bar-palafita

E o torrão do Amapá tornou-se estratégico, amostra de uma das maiores reservas de manganês do planeta escondida no meio da floresta Amazônica. O mineral, que tem função desoxidante na siderurgia, entra na composição de várias ligas de aço, além de ter diversas outras finalidades – com usos que vão da fabricação de fertilizantes ao clareamento de vidros, da construção de pilhas secas à produção de tintas e vernizes.

Com a guerra fria, a antiga União Soviética deixou de suprir o mercado norte-americano do mineral, diminuindo a oferta e aumentando a cotação internacional do produto. Augusto Trajano de Azevedo Nunes, que já explorava o minério de ferro no pico do Itabirito, em Minas Gerais, viu boas possibilidades nessa situação e criou a Icomi, em 1947.

Abordagem na selva

Em meio a uma profusão de morros cobertos de floresta, de repente surge um gigantesco bloco de manganês, parecido com o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, porém tombado de lado. Alguns atribuem a esse aspecto o nome dado ao lugar, pois o bloco parecia um barco flutuando no meio do mar. Outros afirmam que a rocha lembrava a proa de uma embarcação.

A Icomi, um dos embriões do Grupo Caemi (a segunda maior mineradora do país, atrás apenas da Companhia Vale do Rio Doce), comprou as terras e, em 1953, obteve do governo de Getúlio Vargas a concessão para explorar o minério pelo prazo de 50 anos. A empresa não era a única dona, mas a sócia majoritária do empreendimento. Outras companhias, como a United States Steel, tinham participação no negócio.

Construiu-se uma verdadeira cidade ao lado das minas para alojar diretores, engenheiros, técnicos, operários e suas respectivas famílias. Implantaram-se escolas, postos médicos e áreas de lazer. Arquitetos e urbanistas foram chamados para planejar prédios de acordo com a realidade amazônica. Trilhos de aço rasgaram 194 quilômetros de selva para ligar a Serra do Navio a Santana, a fim de escoar a produção e transportar o pessoal. Um dos maiores portos naturais da Amazônia foi adaptado e começou a receber gigantescos navios para levar a Serra do Navio para os Estados Unidos.

Em Santana foi criada a vila Amazonas, para hospedar o pessoal da Icomi. E, para se ter uma idéia do contraste que tudo isso gerou, por muito tempo aquela foi a única área do município com infra-estrutura adequada de saneamento básico.

Durante quase 50 anos, comeu-se a terra. E, mesmo quando o navio desapareceu, continuou-se a cavar dezenas de metros abaixo do solo, abrindo crateras na paisagem e acabando com o manganês de boa qualidade. "Em 1998, configurando-se a exaustão das minas de manganês, a Icomi paralisou suas atividades de lavra", afirma José Luiz Ortiz Vergolino.

"Não se previa que a exploração seria tão intensiva a ponto de esgotar totalmente a reserva", lembra Aziz Ab’Sáber, titular do Departamento de Geografia e professor emérito do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). Dia e noite, máquinas não pararam. Ficou estipulado, no termo de concessão do governo, "que trabalhariam oito horas por dia, mas eles trabalharam 24", afirma Edvaldo Souza. Ao receber uma concessão de exploração, a empresa deve pagar royalties à União sobre o montante retirado do subsolo. "Temos certeza de que eles tiraram muito mais minério do que declararam", afirma Souza. O fato é que Augusto Trajano tornou-se conhecido como o "rei do manganês".

O bloco de manganês que aflorava à superfície ficava acima da cratera aberta pela exploração

No auge da exploração, entre o fim dos anos 60 e o início dos 70, havia 800 funcionários trabalhando no local, de mineiros a professores de ensino fundamental. Hoje, faltando ainda dois anos para o prazo da concessão se encerrar, a Serra do Navio tem muitos pontos de paisagem lunar. Montanhas de minério moído espalhadas pelas estradas de terra "asfaltadas" com manganês começam a ganhar uma tímida cobertura vegetal – provavelmente de sementes trazidas pelo vento. Muitas crateras formaram belos lagos, com água proveniente do lençol freático. Os gigantescos caminhões de carga e as esteiras de transporte estão parados, e parte do maquinário está sendo vendido para a Companhia Vale do Rio Doce e deslocado para Marabá, no Pará. Movimento mesmo, existe apenas o do pequeno contingente que se ocupa da manutenção do complexo fantasma.

"A Icomi cumpriu rigorosamente suas obrigações contratuais", afirma Vergolino. Ele ressalta as melhorias para a região: da construção de uma "cidade moderna e planejada" – modelo adotado por outros projetos que se instalariam na Amazônia posteriormente – ao saneamento básico, escola e estrutura de lazer.

A cidade de Serra do Navio, que havia sido construída para dar apoio administrativo e infra-estrutura aos funcionários da Icomi, foi alçada à condição de município e teve seu primeiro prefeito eleito em 1993. Com o fim das atividades, muitas pessoas migraram para Macapá, Belém e outros lugares em busca de emprego. Atualmente, a prefeitura é a maior empregadora local. "O objetivo da empresa era o minério. Com o fim dele, acabou seu interesse na região", lembra Edmir dos Santos Silva, secretário de Meio Ambiente e Turismo de Serra do Navio e ex-funcionário da empresa. "Até há pouco tempo, esta região era distrito de Macapá, e todo o dinheiro pago pela Icomi ia para lá. Se estamos em dificuldades, boa parte da responsabilidade é dos antigos governantes, que não pensaram que a mineradora sairia um dia e a cidade precisaria estar preparada para isso." Segundo Vergolino, "dos impostos, taxas, royalties, etc., pagos pela Icomi ao governo do Amapá, nada foi aplicado no município. Ou seja, todos os investimentos foram feitos com recursos próprios da mineradora".

Augusto Trajano, o "velho", como era chamado, morreu em 1996, lúcido aos 90 anos. Em 1990, transferiu a presidência da Caemi para Guilherme Frering, o neto mais velho. Porém, desavenças entre este e Mário – o mais novo – pelo controle fizeram com que Trajano optasse pela profissionalização da empresa, transferindo Mário e Guilherme para o Conselho de Administração. Muita gente, em Serra do Navio, põe a culpa pela decadência nessa briga familiar e na falta de interesse dos herdeiros. Tanto que os Frering estão vendendo sua participação no capital votante.

Porém, o vácuo que se deu após a morte de Trajano não é responsável pela situação de hoje. A japonesa Mitsui, que possui 40% do total acionário, impulsionou a Caemi a uma revitalização, dando seqüência à profissionalização e fazendo novos investimentos. O que vemos com a contaminação do manganês é o desfecho de uma história que começou mal em 1953 e que durante muito tempo ainda apresentará seqüelas.

Impacto social

Hoje, a mineração em escala industrial não é necessariamente agressiva à paisagem, e é considerada por muitos uma solução econômica para a região amazônica. Ao contrário da exploração da madeira ou da pecuária extensiva, que exigem a devastação de gigantescas áreas, a mineração pode deixar incólumes áreas florestais. Modernas técnicas de sondagem e prospecção garantem que o meio ambiente sofra poucas transformações ao longo do processo.

Embora a atividade em si possa não causar problemas, não se deve deixar de considerar as conseqüências sociais de um projeto de grande porte, a partir de sua implantação. "Quando se pensa em previsão de impactos, analisam-se apenas aspectos físicos, biológicos, ecológicos. Mas esquecem-se os impactos sociais", lembra Aziz Ab’Sáber. O professor é co-organizador de um livro que trata justamente dessa questão, comparando experiências de várias partes do mundo (Previsão de Impactos, lançado no país pela Edusp). "Desconsideram-se os recursos humanos e psicoculturais em qualquer estudo de desenvolvimento do país."

Máquinas da Icomi paradas. Provavelmente serão, como boa parte da estrutura, vendidas a outras mineradoras

Cada vez que se começa a explorar uma área, há um fluxo de pessoas simples que vão tentar a sorte no garimpo manual ou trabalhar para a mineradora. Surgem comércio, moradias (na maioria das vezes precárias), ruas, vielas. O pequeno garimpeiro dificilmente guarda dinheiro, pois gasta tudo com comida, bebida ou jogo. Porém, os intermediários que compram sua produção precisam de bancos para proteger seu lucro. Estabelecida uma frente pioneira, há o surgimento da prostituição – inclusive infantil. Aliciam-se mulheres de outros lugares para vários tipos de serviço, mas ao chegar à região do garimpo elas se vêem obrigadas a entregar-se à exploração sexual para não morrer de fome.

Por sua vez, o garimpo manual é extremamente danoso à natureza. No caso do ouro, por exemplo, dragas assoreiam rios e igarapés, enquanto o mercúrio, utilizado na separação do mineral, contamina as águas e toda a cadeia alimentar da região. E, principalmente, é necessário tomar cuidado com a valorização da terra que se dá após a instalação de um complexo industrial em uma região antes deserta. Aproveitando as estruturas montadas pelo empreendimento, há a implantação de vilarejos e cidades, e, devido à temida especulação imobiliária, a terra é invadida, repartida e negociada. Por todas essas razões, ao criar a província petrolífera de Urucu, no coração do estado do Amazonas, a Petrobras adotou uma série de medidas preventivas para que a região, rasgada por adutoras de gás natural, não sofresse um processo de urbanização.

Em relação à exploração feita pela Icomi na Serra do Navio, Vergolino diz que "as jazidas foram trabal
hadas observando-se os melhores padrões de segurança e mineração existentes. A proteção ao meio ambiente e a recuperação das áreas mineradas tiveram início antes de se tornarem obrigação legal". Segundo ele, "a empresa foi pioneira no aproveitamento dos recursos naturais sem degradação do sistema." Ele destaca ainda o reflorestamento de áreas exploradas e o cuidado com o destino de dejetos e resíduos. Segundo afirma, em 1989, quando surgiu a legislação que exigia planos de recuperação para áreas degradadas, a Icomi obteve a licença de operação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Porém, tanto a empresa quanto os governantes não pensaram no futuro das áreas dependentes da mineração após o fim da exploração da Serra do Navio. Durante décadas, era apenas tirar o manganês e contabilizar os lucros – para ambos os lados. Quando questionada a respeito de projetos voltados para as comunidades do entorno, a Icomi lembra a construção de um cais fluvial para navios de grande calado, instalações industriais para extração de minério, a estrada de ferro, uma usina de enriquecimento de manganês e outras benfeitorias. O fato é que, atualmente, à exceção do cais, tudo isso está parado ou longe das necessidades da população.

"Se fosse hoje, a história da Icomi seria muito diferente. O Amapá não é mais um local onde se pode fazer o que se bem entende", afirma Edvaldo Souza.

O lago azul de água mineral que deixado pela mineração pode se tornar ponto turístico

No período da ditadura militar, projetou-se a rodovia Perimetral Norte, que deveria ligar Macapá à região de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, extremo noroeste do país. O objetivo era a integração – sem se preocupar muito com a preservação, a bem da verdade. Como em outra obra faraônica do regime, a Transamazônica, trafegar nessa estrada de terra é dificílimo na época das chuvas. Além disso, a Perimetral pára de repente em uma reserva indígena para ressurgir próximo à divisa entre Pará e Roraima. Cruza este último estado e morre novamente antes de chegar a São Gabriel.

Com a diminuição do fluxo da estrada de ferro, a Perimetral é a única alternativa de transporte para os habitantes de Serra do Navio. Isso é um complicador também para o projeto de desenvolver o turismo como uma forma de revitalizar a região e evitar o êxodo populacional. Como é preciso agüentar horas de solavancos, buracos e atoleiros para chegar à cidade, os menos aventureiros acabam por desistir, preferindo hotéis de selva mais próximos à civilização.

Ainda assim, tanto o governo do estado quanto o do município acreditam na atividade turística como uma alternativa para o desenvolvimento da região. "Primeiro estamos tentando recuperar a cidade para depois fazer a divulgação do turismo", explica Edmir dos Santos. As propostas passam pela utilização da área do complexo de mineração, que em 2003 vai ser novamente de uso público, sob o gerenciamento da prefeitura. O belo lago azul, que um dia já foi uma gigantesca montanha de manganês, receberá uma balsa para servir de apoio aos banhistas, e um teleférico será construído para cruzar a antiga área da Icomi.

Eles sabem que é necessário criar infra-estrutura para o turismo, antes de mais nada. O único lugar com condições de receber turistas, e que, hoje, está subaproveitado, é o Hotel Serra do Navio, antigo alojamento de diretores, executivos e visitantes da Icomi. O núcleo urbano possui infra-estrutura e saneamento, mas o mesmo não acontece com os vilarejos do entorno, nos quais essas palavras são luxo.

Contudo, o turismo em si já é um desafio para o Amapá, apesar de toda a sua beleza e diversidade natural. "Não há chance de turismo praiano – o lodo toma conta de quase todo o litoral", afirma Aziz Ab’Sáber. "Eles têm de apelar mais para a pesca e para o turismo fluvial na foz do Amazonas." O eucalipto é hoje largamente explorado próximo à costa para ser transformado em celulose no monstruoso Complexo do Jari, que também já pertenceu à Caemi.

Segundo Ab’Sáber, o núcleo de Serra do Navio é de difícil recuperação para a economia e para o ecoturismo. Tentou-se a plantação de dendê para extrair óleo, mas o negócio não prosperou. A USP foi chamada para realizar pesquisas e planejar a revitalização da região.

Igarapé na vila do Elesbão. As palafitas dominam a paisagem

Vila do Elesbão

Situada às margens do canal norte da foz do rio Amazonas e próxima ao porto de Santana, a vila do Elesbão possui 1,8 mil moradores, que se equilibram em palafitas entre os igarapés. Desses, segundo a última contagem, feita no final de 2000, 936 são crianças. A pesca do camarão é a principal atividade, seguida de perto pelo comércio e pela carpintaria. Muitos já trabalharam para a Icomi. Outros sentiram seus efeitos.

"Na década de 60, ‘destambecava’ óleo queimado vindo das caldeiras pelo igarapé. Era fumaça, uma catinga desgraçada. Um pó preto cobria tudo, a ponto do açaí ficar parecendo jabuticaba." Josequias, líder comunitário, carrega lembranças de uma época em que muita gente se foi. "Meu pai morreu de câncer no pulmão e meus irmãos também. Cheguei aqui com 11 anos, agora estou com 50. Não sei como ainda não morri."

Com a decadência e o fim da exploração da Serra do Navio, os moradores do Elesbão pensaram que o drama tinha terminado. Foi quando surgiram problemas nos rins, febres, dores no corpo, diarréia, vômitos. "Muitas pessoas morreram, e a maioria das famílias tem um doente em casa."

É impossível negar a beleza do pôr-do-sol visto do bar de forró de Josequias. Porém, o encanto do Amazonas tem um doído contraste com a falta de infra-estrutura e saneamento básico do vilarejo. A malária é endêmica. "Porém, nunca tínhamos tido esse tipo de doença. Nunca a nossa água nos causou isso. Ontem mesmo morreu uma criança por infecção. Estão morrendo crianças e adultos e ninguém toma providências, nem explica os sintomas direito. Ninguém diz na
da." Segundo Josequias, funcionários da Icomi vieram à vila dizer que não era o manganês que causava os problemas e "que não podiam fazer nada, pois não havia laudo que comprovasse culpa".

Para Elizabeth Nascimento, professora de toxicologia do Instituto de Ciências Farmacêuticas da USP, são comuns casos de contaminação por arsênio. A sua absorção pode ocorrer após a ingestão de alimentos, água e outras bebidas ou através da inalação. Todos temos arsênio no organismo. "Em quantidades pequenas no sangue, ele não representa risco", lembra ela. Contudo, em uma área contaminada, o elemento vai se acumulando no corpo e, ao longo do tempo, pode se tornar prejudicial.

A intoxicação crônica tem como sintomas distúrbios gastrointestinais, danos renais, anorexia, vômitos e diarréia, anemia e problemas no sistema nervoso. Também podem ocorrer ulcerações de pele, perda de pêlos e cabelos, fragilidade das unhas. Segundo a professora, estudos mostram uma relação entre o câncer de pele e o contato com água contaminada com arsênio. Dependendo da concentração, que não precisa ser muito elevada, pode levar à morte.

Em Santana, o manganês passou pelo processo de pelotização, em que é aquecido a altas temperaturas para eliminar o minério de baixo teor – com menor valor no mercado internacional. Jorge Bittencourt, professor de geologia da USP, explica que, como o manganês não se encontra puro na natureza, pode haver no mineral a incidência de sulfetos de arsênio. Esses compostos são instáveis e, em condições extremas de temperatura ou devido a intempéries, podem ter sua estrutura cristalina rompida e liberar arsênio para o meio ambiente.

"Em 1997, tivemos uma denúncia de que o manganês depositado em Santana estaria contaminado. Pedimos informações à Icomi, que contratou uma empresa de auditoria ambiental, mas temos informações de que eles já sabiam do problema muito tempo antes e tentaram camuflá-lo", afirma Edvaldo Souza. A Secretaria do Meio Ambiente do estado do Amapá determinou a retirada do material estocado próximo ao Elesbão. O minério será espalhado ao longo da ferrovia, nos quilômetros 34 e 35, em local já tratado, longe de habitações e obedecendo às exigências de segurança de um EIA/Rima (estudo e relatório de impacto ambiental).

"A solução recomendada por uma empresa especializada foi a remoção do resíduo para a Estrada de Ferro do Amapá, cujas condições topográficas e de lençol freático são adequadas para a construção do aterro controlado." O diretor superintendente da Icomi mostra que, agora, a empresa demonstra cuidado com a destinação dos rejeitos e implicitamente reconhece sua periculosidade: "O aterro que será construído pela Icomi é enquadrado na categoria de industrial para resíduos sólidos perigosos, adaptado às condições e limitações locais".

Minério de manganês estocado próximo à vila do Elesbão. Esse teria sido o provável foco da contaminação.

De acordo com ele, o desejo da empresa era que os resíduos de manganês fossem removidos para seu local de origem, o que foi rechaçado pela população de Serra do Navio em audiência pública. Os moradores não quiseram acordo, mesmo com o oferecimento de medidas compensatórias. Mas, segundo a Sema, antes mesmo de a audiência acontecer, vagões já haviam levado parte do minério de volta – o que foi constatado por técnicos do estado -, motivo que levou o governo a aplicar multa de R$ 12 milhões. "Temos provas contundentes suficientes para mostrar que eles estão errados, mas não sabemos como serão os julgamentos dos recursos. Apesar de demonstrar o contrário, a Icomi não está tranqüila em relação ao resultado. Pois, além das multas aplicadas pelo governo, vão chover ações indenizatórias", conclui Edvaldo.

Segundo a pesquisadora Elizabeth Santos, do Instituto Evandro Chagas, a pesquisa sobre a contaminação dos moradores do Elesbão vai demorar um bom tempo, e antes do fim de maio não será possível expedir um laudo conclusivo. Além de enfrentar as dificuldades impostas pelas fortes chuvas que caem na região no começo do ano, a instituição precisa de tempo para fazer um diagnóstico da saúde de cada indivíduo da comunidade e a partir daí traçar um panorama da situação e ver se há relação com o arsênio. "A população mora em palafitas, sem saneamento básico, e vários fatores podem afetar sua saúde." Ela não quis comentar a pesquisa prévia, na qual 98 entre cem moradores apresentavam altos índices de arsênio no organismo. "Não estamos atrás de culpados e sim de saber o real estado de saúde da população e diante disso tomar as devidas providências."

Tudo de novo?

A ferrovia e outras benfeitorias feitas pela Icomi deverão ser entregues ao governo do Amapá. Por US$ 100 milhões a empresa vendeu sua parte florestal à Champion International, da área de papel e celulose. A empresa norueguesa Elkem ficou com a mina de cromita por outros US$ 10 milhões. Porém, quem se deu melhor na história foi a Anglo American, gigante da mineração que, há cinco anos, comprou uma área da Icomi para a pesquisa de ouro. Antigas sondagens já mostravam a possibilidade de ocorrência do metal em áreas próximas a Serra do Navio. Dito e feito: descobriu-se uma enorme mina, que poderá produzir centenas de milhões de dólares.

A exploração não começa agora. A Pastoral da Terra entrou na Justiça para que fossem revistas as indenizações pagas aos pequenos proprietários que venderam suas terras para que a multinacional instalasse o complexo de exploração. De acordo com o órgão, a Anglo teria pago uma quantia abaixo do valor real. A Sema não expediu a licença de operação, e espera por uma decisão judicial.

Na verdade a exploração se dará no município vizinho de Pedra Branca do Mapari, que receberá os conseqüentes royalties. Porém, a estrutura de Serra do Navio, núcleo urbano mais próximo, será utilizada. De acordo com Edmir dos Santos, a estimativa da prefeitura é que sejam criados 800 empregos diretos e 1,5 mil indiretos. "Seria muito bom se a Anglo se instalasse rápido aqui", afirma ele.

O receio é que a euforia dê lugar à decepção, com o passar do tempo. "A descoberta do ouro pode revitalizar Serra do Navio
, desde que sejam tomados cuidados com as conseqüências sociais", lembra Aziz Ab’Sáber.

Agora, aguardam-se os laudos. Porém, independentemente do resultado, sabe-se que o Elesbão já saiu perdendo. A lição deixada pelo manganês da Serra do Navio ainda é muito recente para que não se aprenda nada com a experiência. Deve-se ter consciência de que o mesmo que aconteceu com aquele torrão cinzento e quebradiço ocorrerá com o metal amarelado – ou seja, quando ele acabar, a Anglo irá embora. Espera-se, contudo, que não deixe as mesmas lembranças ruins e que, daqui a 50 anos, ainda haja crianças brincando no Elesbão sob o pôr-do-sol do Amazonas.

Amapá, Janeiro de 2001

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