Instalações da rádio comunitária de Sorocaba: a serviço da Igreja |
9 de abril de 1991. Em ação surpresa, a Polícia Federal (PF) apreende os equipamentos da rádio instalada na Casa de Cultura Reversão. A antena comunitária da Vila Ré, bairro da zona leste de São Paulo, é silenciada depois de três anos no ar. Leo Tomaz, um dos fundadores da casa, é preso e tem de responder a processo. Sua defesa evoca o artigo quinto da constituição federal, que sacramenta a liberdade de expressão a todos os cidadãos. Numa decisão sem precedentes, o juiz Casem Mazloum absolve Tomaz. A Reversão ainda retoma as transmissões, no terceiro aniversário da "blitz" policial, mas um raio sepultaria para sempre a voz da comunidade.
A sentença de Mazloum esquentou um debate muito em voga nos últimos tempos: a democratização dos meios de comunicação. Com o respaldo da jurisprudência aberta a Leo Tomaz, pipocaram emissoras de baixa potência e cobertura local. Dessa maneira, tomava fôlego o movimento pela legalização das chamadas rádios comunitárias (RadCom), tachadas de criminosas, piratas, clandestinas (entre outros "elogios"). Hoje, existem aproximadamente 10 mil espalhadas pelo Brasil, para desespero da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), entidade que representa estações comerciais em todo país. E assim corre risco o domínio sobre a mídia mais popular no território nacional. Aliás, o potencial de formação da opinião pública desse veículo sempre foi preterido em relação ao da televisão. Essa leitura contrasta radicalmente com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 1999, dos quase 160 milhões de habitantes, 90% possuíam aparelho de rádio em seu domicílio, contra 88% de televisão. Eram 3,5 milhões de pessoas que só tinham acesso a informações mediante o som.
"Piratas são eles. Nós não estamos atrás do ouro." Com esse chavão, a Xilik alfinetava os donos das grandes emissoras nacionais. A idéia de montar uma rádio partiu de estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Universidade de São Paulo (USP), em 1985, influenciados pelo psicanalista francês Félix Guattari. Líder do movimento europeu de rádios livres, ele trouxe idéias libertárias ao Brasil. Com críticas mordazes, a Xililk tinha uma proposta original, de intervenção política.
É importante ressaltar a diferença entre rádios piratas e livres. As primeiras surgiram na Inglaterra com o intuito de burlar o controle imposto pela BBC (British Broadcasting Corporation). Visavam, desde sempre, ao lucro. Por sua vez, as rádios livres possuem outro objetivo: minar o poder sobre a comunicação. Nesse sentido, o movimento brasileiro pelo reconhecimento das RadCom tem raízes na segunda frente.
A Reversão também foi um marco. "Com a absolvição de Leo Tomaz houve a grande explosão do movimento. Evangélicos, comerciantes e famílias começam a fazer rádio", explica a jornalista Marisa Meliani, especialista na área. Segundo ela, esse é na verdade um ponto problemático: "a RadCom precisa encontrar sua identidade". Marisa vai mais longe, ao considerá-las como "filhas bastardas" das rádios livres, por não possuirem um plano ideológico, reproduzindo o conteúdo das emissoras convencionais.
Leo Tomaz: absolvido em decisão inédita |
Há ainda aquelas rádios reféns de grupos religiosos e partidos políticos. Em reportagem de julho de 2001, a revista Carta Capital denunciou a estratégia de promoção do presidenciável, e atual governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho. Conforme a matéria, o Ministério Publico estimava em 58, distribuídas por 16 estados diferentes, o número de rádios evangélicas que retransmitiam o programa "A Paz do Governador", produzido pela "Rádio Melodia". O preço do espaço na programação das emissoras era salgado: R$ 40 mil. Contudo, o montante valia a pena. De acordo com dados do recenseamento de 2000 do IBGE, 16 a 18% da população adulta brasileira é evangélica, o que significa uma fileira de 30 milhões de eleitores.
O técnico em radiodifusão Francisco Pereira, o Chico Lobo, também alerta para esse fenômeno. Segundo ele, há diversas rádios piratas, ou seja, com interesses econômicos, travestidas de RadCom. Algumas têm grande potência e são sintonizadas em toda a cidade de São Paulo. "Se pedirem o prefixo, elas não dão porque não possuem", diz. Prefixo é uma espécie de registro, como a placa de um carro. Muitas se destinam a evangélicos, os quais vêm marcando presença em todas as mídias.
Com o objetivo de congregar atividades, surge a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), do I Encontro Nacional de Rádios e Televisões Comunitárias, em 1993, na Praia Grande (SP). A entidade tem ramos em quase todos os estados e ainda hoje é referência nacional para as RadCom. Sua luta chegou a um momento decisivo em 1998, com a aprovação da lei 9.612, que regula o funcionamento dessas emissoras. "Não foi o que queríamos. Mas era o que se podia conseguir na época", lamenta Edson Amaral, o Edinho, diretor e fundador da Abraço. A principal crítica diz respeito à restrição da potência, já que o objetivo era conseguir a autorização de transmissores de até 250 Watts. "Foi um balde de água fria", resume.
A busca das RadCom pela perda do estigma de piratas e clandestinas enfrenta uma verdadeira batalha jurídica. E, mesmo após mais de duas décadas, pouco se evoluiu nessa direção.
Até 1998, não havia legislação específica que regulamentasse a atuação das RadCom e muitos juízes recorriam ao obsoleto Código Nacional de Telecomunicações, que vigorou de 1962 a 1997, para arbitrar sobre questões desse teor. A primeira jurisprudência favorável às rádios surgiu com o caso Leo Tomaz. A partir de então, pareceres judiciais inocentando seus praticantes apontaram para a necessidade da criação de uma lei. Cinco anos se passaram até que a 9.612 fosse aprovada, prenunciando
uma realidade supostamente mais democrática. Essa expectativa, no entanto, não se comprovou. O que se apresentava como mecanismo de legitimidade da prática da radiodifusão comunitária, na verdade, serviu para ampliar o número de emissoras que funcionavam na ilegalidade.
Em resumo, quanto às disposições técnicas, o texto da 9.612 exige, para que uma emissora comunitária seja considerada legal, transmissor de 25 Watts, antena que não ultrapasse 30 metros da média de altura da região sobre a qual atuará e raio de alcance máximo de 1km. Sobre a estrutura administrativa, a rádio deve ser de gestão coletiva, sob tutela de uma associação representativa de moradores. Não pode ter fins lucrativos. As especificações sobre o conteúdo da programação são vagas, com requisitos como "programação plural", que preserve "os valores éticos e sociais da pessoa humana e da família".
Chico Lobo: muitas rádios têm interesses econômicos |
Preservar valores, entretanto, não foi o objetivo da criação da lei. Ficou clara no texto a intenção de restringir a atuação das emissoras comunitárias. Substituindo o artigo 70 da lei 4.117/62, que criminalizava sua prática, a 9.612 tornou-se o novo mecanismo de enquadramento dessas estações. Os processos de autorização, pela complexidade das exigências, tornaram-se extremamente burocráticos. Existem emissoras em funcionamento atualmente que aguardam a aprovação de seus pedidos há mais de três anos.
Outro aspecto que contribui para a morosidade da regulamentação é o fato de que a jurisdição sobre essa questão é federal. Para conseguir uma autorização de funcionamento, uma rádio comunitária deve fazer a requisição ao Ministério das Comunicações (MiniCom), em Brasília, e sua aprovação depende da anuência do Congresso Nacional. Essa estrutura vem sendo criticada pela maioria dos envolvidos com RadCom e já recebeu atenção de diversos políticos e juristas. Nesse sentido, um anteprojeto de lei elaborado pelo juiz federal aposentado e autor do livro "Rádios Comunitárias", Paulo Fernando Silveira, serve de base à idéia de municipalizar o controle sobre a radiodifusão alternativa. O texto já foi aprovado em municípios como Santo André e Votorantim, em São Paulo, e São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Na cidade de São Paulo, tramita na Câmara sob projeto de lei 145/2001, de autoria dos vereadores Carlos Neder, do PT, e Ricardo Montoro, do PSDB.
O maior benefício da municipalização, de acordo com seus defensores, será a manutenção das especificidades locais de cada região para que se determine como atuará a emissora. Isso é essencial, por exemplo, para estipular a potência mais adequada do transmissor. "Em regiões planas, uma potência de 25W pode ser exagerada. Em compensação, em determinadas regiões de São Paulo, a mesma potência será insuficiente", explica Iara Bernardi, deputada federal do PT, em Sorocaba, interior paulista. Essa cidade vivenciou uma explosão do movimento das RadCom, que ficou conhecida como "Verão de 82". Na ocasião, surgiram 43 emissoras do tipo.
Segundo o juiz Silveira, que emitiu mais de 1000 liminares em favor das RadCom de Minas Gerais, o interesse sobre elas é eminentemente local. Isso foi imposto pelas próprias determinações técnicas da 9.612. Não existe sentido em passar por juízo federal uma questão que atinge uma área restrita. "O maior benefício das RadCom é a descentralização do poder. Através delas, pode-se democratizar os veículos de comunicação e, por conseqüência, democratizar o país", justifica Silveira.
O vice-presidente da Aesp (Associação das Emissoras de Rádio e Televisão de São Paulo), Edilberto Ribeiro, discorda da iniciativa do juiz Silveira. Ribeiro defende a manutenção do poder decisório numa esfera superior à municipal. Segundo ele, as emissões de uma rádio comunitária podem interferir de forma prejudicial em municípios vizinhos. "Para as ondas de rádio não existem fronteiras", rebate Ribeiro. Assim pensa a procuradora do Estado de São Paulo, Vera Nusdeo. Para ela, o controle municipal sobre as RadCom é mais vulnerável ao "clientelismo", convertendo-as em moeda de barganha política.
Em 2001, foi aprovada uma portaria que permite ao MiniCom autorizar temporariamente o funcionamento das emissoras, antes da apreciação pelo Congresso, dinamizando os processos. O juiz Silveira considera inconstitucional essa medida. Além disso, pode configurar uma manobra para ofuscar os projetos de municipalização. "Não sei se a intenção governamental é essa, mas é de se presumir".
São cerca de 100 mil habitantes que fazem de Heliópolis, zona sul da capital paulista, a maior favela do estado. Para aglutinar tantas pessoas, a UNAS (União de Núcleos, Associações e Sociedades de Heliópolis e São João Clímaco) criou, no começo da década de 90, uma rádio. "Era um meio de prestar contas à comunidade", lembra Geronino Barbosa, atual coordenador. Bastante limitada a princípio, a "Rádio Popular de Heliópolis" funcionava através de alto-falantes presos a postes ("corneta"), e só ia ao ar aos fins de semana, com alcance restrito.
Passo mais largo foi a aquisição de uma antena em 1996. No ano seguinte, a rádio foi reinaugurada, com novo nome, escolhido por meio de concurso feito no próprio bairro. A partir daí, a "98,3 Heliópolis FM" aposentou o transmissor de "fundo de quintal" e o substituiu por um de potência adequada às exigências legais. Uma equipe com 42 pessoas, de telefonistas a locutores, viabiliza 24h de transmissão. Todos são voluntários, à exceção de Gerô, que recebe uma ajuda de custo da UNAS.
Edson Amaral: lei restringe potência |
A programação alia música de todos os gêneros a notícias sobre o cotidiano dos moradores. Torneios de dança na região contam com suporte da rádio que, para arrecadar fundos, organiza mensalmente uma festa. É aí que artistas da comunidade entram em cena. Gerô garante que eles também têm cadeira cativa na grade da "98,3FM". Outra forma de conseguir dinheiro se dá pelos "apoios culturais"
, eufemismo para designar as propagandas dos estabelecimentos comercias das redondezas. Mas até artistas consagrados já utilizaram o espaço da rádio, como o cantor Lobão, que enxergou nos veículos comunitários um relevante instrumento para lançar seu CD. Sobre esse interesse duvidoso, Gerô responde categoricamente: "estamos em evidência".
Em Sorocaba, a rádio 97,1 FM, na paróquia Cristo Rei, também tem traços em comum com a de Heliópolis. Financiamento e programação são os principais pontos de tangência. Surgida em 1998, o objetivo original era divulgar os trabalhos sociais da igreja. Noticiário local, dicas de saúde, orientações de um advogado, somados a muita música, dão corpo à rádio. "Não há como falar que não somos comunitária", afirma Neide Rodrigues, responsável pela 97,1 FM. Ao contrário da emissora da capital, a de Sorocaba possui a Associação Comunitária Cultural, que serve como espécie de "Conselho", pré-requisito estabelecido pela lei 9.612/98. Por outro lado, ambas não têm situação legalizada perante o MiniCom, apesar de mandada, há anos, a documentação exigida. Outra extensão à sociedade, na opinião de Neide, é o estágio que alguns estudantes do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) da cidade fazem lá.
A maior parte dos programas das duas rádios veicula os sucessos turbinados pelas grandes mídias. Nesse sentido, reproduzem a programação das rádios comerciais, uma vez que dedicam sessões aos ritmos e cantores de maior popularidade no país. Assim, a RadCom, que deveria fomentar a produção local, revela-se um apêndice dos meios de comunicação de massa que homogeinizam os padrões culturais nacionais. Porém, Gerô crê que a rádio não deve se limitar à cobertura local. "Não somos hipócritas. Atendemos o que as pessoas querem", argumenta. Neide admite uma seleção prévia da programação por parte daqueles que trabalham na rádio: "nem de tudo que o ouvinte pede, a gente vai atrás".
Como falar com trabalhadores sem o hábito de leitura? Essa foi a premissa de que partiu um grupo de universitários, durante os anos de chumbo da ditadura militar, que resolveu trabalhar com comunicação popular. A iniciativa culminou, em 1978, com o advento da Oboré. "Era necessário estabilizar um trabalho profissional para assessorar os movimentos populares", resume Sérgio Gomes, jornalista e diretor da entidade.
O envolvimento com o rádio partiu do campo. Há nove anos, dirigentes da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) procuraram a Oboré para desenvolver um curso de capacitação, na área de comunicação, para seus dirigentes. Hoje, essa relação é mais visceral. "A Voz da Contag", programa semanal dedicado ao universo rural, é produzido e distribuído a rádios, comunitárias ou não, de todo o país pelo jornalista João Paulo Charleaux. Atualmente, no núcleo de projetos com rádio, existem cerca de 17 programas, a maioria voltada a assuntos marginalizados pela grande imprensa. Cidadania, temas da atualidade, dicas culturais e de saúde compõem o mosaico disponível aos comunicadores. A função da entidade, portanto, é muni-los de produtos bons e gratuitos. Charleaux avisa: "a Oboré não representa as RadCom", apesar de constituir valioso ponto de apoio. Um exemplo disso foi a recente reestruturação da "98,3 Heliópolis FM". Um grupo de engenheiros, acionado pela Oboré, conduziu um estudo no perímetro da rádio a fim de potencializar ao máximo a qualidade da transmissão.
A instituição, em parceria com a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), também concebeu o Curso de Informação e Saúde Pública para Radiocomunicadores, Jornalistas e Estudantes de Jornalismo. A inspiração partiu do professor da escola e coordenador do curso, Paulo Gallo, que procurou o auxílio técnico da Oboré. Na opinião dele, "a participação popular é prerrogativa para o bom funcionamento do sistema de saúde", e é nesse fundamento que sua idéia está calcada. O curso, totalmente gratuito, destina-se, principalmente, a comunicadores de RadCom (muitas não legalizadas) e é ministrado por três palestrantes, nas manhãs de sábado. Geralmente, são dois profissionais da área da saúde e um de comunicação, remunerados com dinheiro proveniente do Ministério da Saúde. A primeira turma, composta por 50 membros, assistiu às palestras de março a novembro de 1999. Para 2002, a estimativa é de que sejam atendidas cerca de 120 pessoas. A única forma de avaliação é a produção de um "spot" (programa), analisado coletivamente, em que os participantes expõem o aprendizado. Para tanto, os próprios alunos correram atrás de doações a fim de montar um laboratório na faculdade. A ambição é oferecer, de graça, os "spots" por meio de tecnologia digital na Internet.
Na XI Conferência Nacional de Sáude, em 2000, o curso foi alçado a modelo de política de saúde pública no país. Meses antes, a III Comsaúde (Conferência Brasileira de Comunicação e Saúde) aprovou uma moção reiterando a importância das RadCom na prevenção e combate de doenças. Assim, estabelece-se um conflito no mínimo curioso no Planalto: enquanto o Ministério da Saúde apóia, e financia, a capacitação dessas rádios, em parceria com a universidade pública, o Ministério das Comunicações combate ostensivamente emissoras não autorizadas.
Paralelamente às disputas judiciais, o confronto de ordem técnica divide ainda mais as opiniões sobre as RadCom. São comuns campanhas de difamação da radiodifusão alternativa. Alegações como "Rádio pirata derruba aviões" povoam as vinhetas das rádios comerciais.
Geronimo Barbosa, na 98,3 Heliópolis FM: 42 funcionários |
O engenheiro Fernando Pereto é categórico. "Não existem estudos conclusivos que comprovem os efeitos danosos das RadCom". A única fonte das chamadas emissões espúrias, principais responsáveis por interferências, são os equipamentos de má qualidade, alerta Pereto. "Se rádios comunitárias e comerciais usarem equipamentos homologados (de qualidade comprovada), as últimas s
ão capazes de gerar interferências muito maiores por apresentarem transmissores mais potentes", explica o engenheiro. O Superintendente de Radiofreqüência e Fiscalização da Anatel, Edílson dos Santos, rebate e afirma: "Se a RadCom não prejudica diretamente, funciona como uma panela fervente pronta para gerar interferência, caso seja autorizado outro serviço naquela área".
Cabe à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) gerenciar o espectro radioelétrico, meio pelo qual se difundem as ondas provenientes de estações de rádio e televisão, e dar respaldo técnico à ação administrativa do MiniCom. Portanto, compete à agência monitorar todo o tipo de interferência e uso indevido do serviço. Segundo Edílson dos Santos, devido à enorme demanda, o espectro radioelétrico brasileiro está saturado, o que pode justificar a esquiva dos órgãos oficiais em conceder as licenças para as RadCom. Até 2000, no Brasil inteiro, de 9521 pedidos, apenas 917 passaram do MiniCom para o Congresso. Desse número, 219 foram outorgados. Para Edilberto Ribeiro, o número reduzido de processos aprovados reflete "a incompetência da Anatel na alocação das freqüências". Ribeiro prevê, ainda, que a desorganização deve aumentar com a mudança do sistema analógico para o digital. "A Anatel abriu espaço para 3500 concessões a rádios comerciais, número que já é inviável. E não foram nem mencionadas as RadCom", diz Ribeiro.
Apesar de investir na fiscalização do espectro (recentemente adquiriu um equipamento de R$ 96 milhões para esse fim), a Anatel não agrada nem a rádios comercias nem a comunitárias. A própria Abert processou a agência e o MiniCom pela ineficácia em fechar rádios que, segundo afirmava a associação, provocavam interferências. Do lado contrário, as reclamações vão desde lacrações e apreensões ilegais até negligência na determinação das freqüências para uso dessas rádios. Para a cidade de São Paulo, por exemplo, a Anatel alega que é impossível designar um canal, devido a uma "superlotação" do dial.
Grande parte dos envolvidos na luta pela liberalização das rádios comunitárias concorda que o movimento enfrenta atualmente um período de refluxo. Os entraves burocráticos surgidos com a lei 9.612 e a fiscalização intensa da Anatel, além do combate realizado pelas rádios comerciais, são algumas das justificativas para essa regressão. Chico Lobo vai mais longe: "A miséria social leva à miséria do movimento". Essa explicação é, certamente, aquela que mais se aproxima do estágio atual da organização das RadCom. Abandonado o movimento das rádios livres, majoritariamente conduzido por uma camada universitária de classe média, hoje é impossível dissociar os fluxos de surgimento de RadCom dos focos de miséria das cidades.
Resultantes de esforços de associações de bairro, que rateiam os custos de instalação entre seus membros, as emissoras comunitárias são muitas vezes reflexos dessa miséria. A despeito do conhecimento técnico que seus praticantes adquirem com o tempo, a programação ainda deixa a desejar. O próprio Leo Tomaz, pioneiro do movimento, diz, em tom desiludido: "não existem mais rádios comunitárias". Para preencher esse tipo de deficiência, no sentido de orientar as RadCom quanto ao conteúdo, sem ferir sua autonomia, atuam empresas como a Oboré.
Boré: nome de origem tupi-guarani que designava o instrumento utilizado para reagrupar a tribo a fim de lutar em legítima defesa em caso de ataque rival. Não por coincidência, a denominação de que se vale também uma das inúmeras iniciativas que reivindicam a ampliação do espaço da radiodifusão comunitária.
Independente do nome, todos os setores sociais envolvidos com a questão exercem de algum modo sua legítima defesa. Como todo o contra-ataque, apresenta suas incoerências e sua desorganização. Mas possui um fundamento legítimo, sintomático de uma longa espera. Por isso não podem ser descartadas as luzes que escapam de pequenos cômodos, abafados pelo isolamento acústico, onde, entre fios e complicados aparelhos eletrônicos, aqueles que buscam voz brandem seus borés, esperam atingir uma tribo cada vez mais dispersa e sem unidade. "
São Paulo, Outubro de 2001