Uso comercial de Alcântara irá desalojar comunidades centenárias

No Maranhão, a ampliação do Centro de Lançamento de Alcântara irá expulsar de suas terras centenárias comunidades indígenas e quilombolas.
Por Leonardo Sakamoto
 01/10/2001
O pescador José Maria Cantanhêde leva hoje mais de 3 horas para jogar sua rede no mar

Sou do mato, fui criado como tatu. Mas fiquei sabendo de um tal grito da independência. Por isso, gostaria de saber se o presidente Fernando Henrique não está vendo que a gente está voltando a ser colônia", diz Manuelão, do alto de seus 70 anos, morador do povoado de Santa Maria.

Ele é um dos que serão expulsos de suas terras para a ampliação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no litoral do estado do Maranhão. No total, está programada a remoção de mais de 500 famílias – comunidades centenárias, em sua maioria remanescentes de quilombos e descendentes de índios tapuias. Os moradores prometem que vão resistir à desocupação, pois não concordam em sair, além de não acreditar nas compensações prometidas pelo governo federal.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) abriu um processo para apurar as violações contra as comunidades de Alcântara. O órgão deve pedir explicações ao governo brasileiro e analisar a atuação dos norte-americanos no processo.

A região é uma das melhores do mundo para o lançamento de foguetes devido a sua posição geográfica (perto da linha do equador e do mar), o que cria uma significativa economia de combustível e possibilita a colocação de satélites em órbitas distintas, das polares às equatoriais. Isso tem atraído o interesse de diversas empresas e nações, de olho em um mercado crescente. Até agora, o CLA tem sido subutilizado pelo Brasil e teve sua estréia adiada no lucrativo negócio devido ao fracasso dos Veículos Lançadores de Satélites (VLS) 1 e 2.

Nos últimos meses, o acordo entre Brasília e Washington para a locação do CLA com fins comerciais levantou um amplo debate entre Executivo, Legislativo, empresários e sociedade civil a respeito dos riscos para a soberania nacional. As restrições de inspeção do centro por autoridades brasileiras, com a delimitação de uma área sob total controle norte-americano, e a impossibilidade de transferência tecnológica para o Brasil decorrente do uso da base são alguns dos pontos polêmicos do acordo. Discutem-se largamente soberania, tecnologia, cifras e valores, mas não se pode esquecer que a região não é desabitada.

Desagregação

Alcântara está localizado 22 quilômetros a oeste da ilha onde fica São Luís. De barco, alcança-se o seu centro urbano em pouco mais de uma hora. Porém, por terra, são mais de 400 quilômetros através da rodovia MA-106, com trechos que ainda não estão asfaltados, em uma viagem penosa e demorada. O município, que data de 1648, foi tombado três séculos depois como patrimônio cultural nacional, devido a seu rico conjunto arquitetônico.

Dos 114 mil hectares de Alcântara, 52 mil foram tomados para a instalação do CLA em 1980. O governo, então sob ditadura militar, assinou um acordo, registrado em cartório, em que se comprometeu a atender as reivindicações da população que seria realocada: terra boa e suficiente, áreas de pesca, indenização justa, entre outras. Esse compromisso, porém, não foi cumprido.

Quando assumiu a presidência, José Sarney, ex-governador do Maranhão, assinou decreto reduzindo o tamanho dos lotes rurais de 35 para 15 hectares – insuficiente, uma vez que a população tende a crescer e o lote original a dividir-se entre os filhos. Os protestos não chegaram a ser ouvidos e, entre 1986 e 1987, 312 famílias foram transferidas para agrovilas – núcleos habitacionais compostos de um lote urbano e outro rural.

Em 1991, mais uma derrota, com Fernando Collor aumentando para 62 mil hectares a área destinada ao CLA. Em outras palavras, mais da metade do município teria de ser de uso exclusivo das forças armadas.

Sete agrovilas receberam famílias de 32 comunidades, desorganizando assim seu cotidiano e modo de produção. Os benefícios vieram na forma de energia elétrica, saneamento básico e uma estrada de acesso ao centro do município. Com a possibilidade de assistir a novelas na televisão e ter água gelada em casa, alguns acabaram se contentando com a situação. Contudo, a maioria ainda sonha com o regresso, mesmo que, para isso, tenha de abrir mão de benefícios da vida moderna.

"Prefiro morar em uma casa sem energia e água, mas ter o que comer." Vitória Barbosa não tem certeza da idade – "se não me engano é 70." Mesmo na sombra, transpirava, reclamando do calor. "Não há comparação entre a minha Camaraju e aqui na agrovila. Lá era beira de praia, de igarapé. Meu marido lançava a rede duas vezes por dia e trazia peixe."

Vitória Barbosa, 70, moradora da agrovila "K Ven"

Os lotes urbanos ficam distantes dos rurais, o que obriga as famílias a caminhar muito tempo até chegar às suas plantações. Além disso, todos são unânimes em reclamar da qualidade do solo, que é bem inferior à de seus locais de origem.

Pescadores vez ou outra ainda lançam redes próximo ao antigo povoado, depois de uma caminhada de mais de três horas. "Antes, não precisávamos nos preocupar com o que comer, porque tudo era perto", declara José Maria Cantanhêde, que consertava sua rede enquanto tentava adivinhar quantos anos tem. Diz, por fim, 57, mas sua pele, castigada de sol e mar, parece contestá-lo. Hoje, pesca em um igarapé, que fica a uma hora e meia de sua casa, onde ele deixa a canoa, pequena, com apenas 19 palmos de comprimento.

As agrovilas também trouxeram outros problemas de cidade grande. Durante muito tempo, as casas não tiveram medidor de energia elétrica e, como vários outros locais pobres do Brasil, pagavam um valor mínimo. Contudo, com a necessidade de coibir o consumo devido ao racionamento, foram instalados relógios de luz no dia 8 de junho. O sonho contemporâneo da TV e da geladeira, que substituíram o lampião a querosene e a carne-seca, foi trocado por dívidas e ameaças de corte.

Calote do governo

Se alguns moradores das agrovilas não possuem certidão de nascimento, nenhum deles, sem exceção, recebeu do governo o título de propriedade de seu lote. "Essas áreas são consideradas extensões dos quartéis, que interferem di
retamente na vida das comunidades", afirma Domingos Dutra, advogado dos moradores. Isso significa que, por exemplo, não se pode erguer novas casas para filhos ou netos no próprio terreno sem a permissão dos militares – que dificilmente dão a autorização.

A maioria dos proprietários realocados ainda aguarda o processo de indenização, que está tramitando na Justiça. Segundo Dutra, o governo quer pagar R$ 65 pelo hectare de terra limpa e R$ 75 se ela tiver alguma benfeitoria, valor que os moradores consideram irrisório.

A qualidade de vida não melhorou substancialmente desde a época das remoções, na década de 80, até hoje. A situação da saúde não mudou, o índice de analfabetismo é um dos piores do país, os acessos por estradas são precários. O trabalhador passou a conviver com a fome e com problemas fundiários que, até então, para ele não existiam.

Domigos Ramos, 78, e a esposa mostram a escritura das terras de Canela Tíua doadas aos pobres há mais de 200 anos

Com as transferências, as famílias que habitavam originalmente as regiões onde foram construídas as agrovilas também saíram prejudicadas, pois se viram obrigadas a dividir os poucos recursos existentes. O centro de lançamento não traz nenhum benefício ao comércio do município. O desemprego é grande, e os poucos financiamentos públicos obtidos para projetos agrícolas só apareceram devido à mobilização dos moradores. "Com a criação das agrovilas, houve uma melhora na infra-estrutura. Porém, a situação social piorou", afirma Samuel Araújo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara, que conta com cerca de 6 mil associados. O município tem 22 mil habitantes, dos quais apenas 5 mil residem na zona urbana.

 

Para viabilizar a utilização comercial do CLA, o governo quer dar continuidade às desocupações. Atualmente, há apenas 20 mil hectares em uso pelo centro. As fases 2 e 3 da implantação vão retirar mais de 500 famílias de suas terras, colocando-as em agrovilas como aquelas construídas há 20 anos. "Ninguém aceita sair de onde está", diz Dutra. Segundo ele, o projeto deixou de ter um interesse nacional, tornou-se comercial, perdendo a finalidade pública.

"Ou o governo reconhece que Alcântara tem brasileiros que merecem respeito ou o projeto não vai para a frente", acrescenta.

O Relatório de Impacto Ambiental (Rima), feito em 1999 para a ampliação do CLA, não leva em consideração as populações que habitam a região, reservando mais espaço para estudos sobre a fauna e a flora. Audiências públicas para discussão do Rima foram canceladas devido aos protestos da população e, até agora, ele não foi aprovado.

Criados no mato

Manuel Alves de Oliveira, o "Manuelão", 70 anos, chegou a Alcântara há 49. Não teve filhos, mas adotou muita gente, criou netos, bisnetos. Tem roçado simples – arroz, feijão, milho, mandioca.

"Eu poderia até concordar em sair, pois estou no fundo da panela. Mas e meus filhos, meus netos? Como eles vão fazer para plantar? Tenho medo de que, assim como acontece nas agrovilas, a gente fique sem documentação. Aí, quando eu morrer, não vou poder passar minhas coisas para meus filhos." A opinião de Manuelão vai ao encontro do desejo de boa parte das famílias das 106 casas do vilarejo, que querem manter seu estilo de vida e poder continuar caçando peba ou veado, além de pescar e lavrar. "Somos como adubo no pé de planta. A gente não vale nada, mas faz as coisas crescerem. Somos carentes. Carentes de justiça."

Canelatiua, uma das comunidades mais antigas, fica a 46 quilômetros da zona urbana de Alcântara. Domingos Ramos, 78 anos, nasceu nesse pequeno vilarejo. E, assim como ele, seu pai. "E o pai do meu pai", acrescenta.

"Os primeiros donos do lugar foram os índios, que o venderam para Theophilo José de Barros. Aqui havia um canavial de engenho, que produzia cachaça, rapadura e açúcar. Depois de um bom tempo, ele foi embora e doou esta terra para os pobres." Domingos mostra com cuidado uma cópia da escritura lavrada em cartório que atesta "terra de pobreza", destinada a uso público, tanto para roça quanto moradia. O governo não concorda e afirma que a área é de terras devolutas.

O povoado tem poucas famílias: 48 ao todo. Na área central, um cajueiro com mais de 200 anos e outras árvores frutíferas centenárias são uma prova de que o lugar é habitado há muito tempo. "Nossos avós falavam para nossos pais: meus filhos, ganhamos esta terra de mão beijada. Então, vamos plantar com os dentes para colher com as gengivas. Esta terra Deus nos deu e ninguém vai tirar de nós." Domingos não aprendeu a ler nem a escrever, mas é o responsável por garantir que a história seja passada adiante, para as gerações seguintes.

O lugar já foi bem isolado. Antigamente, quem tinha mais poder era enterrado no cemitério do centro do município. Para isso era preciso andar de sete a dez horas com o defunto nas costas. E quem quisesse colocar os filhos na escola também precisava levá-los para Alcântara. "Eu botava meus filhos no lombo do boi, tocava para a cidade e os deixava lá estudando."

"Não moraria na agrovila porque lá não existe o que temos aqui. Hoje, meu filho pescou cinco tainhas grandes e trouxe uma para eu almoçar." O mar, assim como em muitas comunidades, fica ao lado de Canelatiua. "Aqui ninguém cata caranguejo, porque a pesca é muito farta. O peixe chega vivo à cozinha. Dá até para mariscar com a mão." Domingos Ramos acha que não estará vivo no ano que vem. Mas diz que só sai de lá carregado.

De Alcântara para Brasília

Para entrar em vigor, o acordo depende da ratificação dos Congressos dos dois países. Porém, cabe a eles apenas aprovar ou não o texto integral, pois nenhuma das partes pode realizar alterações. Aqui, antes de ir a plenário, deve passar pelo crivo das comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional, Ciência e Tecnologia e Constituição e Justiça.

A primeira é considerada a comissão do mérito, e sua decisão terá um peso maior que as outras. Os deputados votaram o parecer do relator, Waldir Pires (PT-BA), aprovando o acordo com ressalvas após análise. "Há aspectos que interferem no exercício da soberania nacional, em regras de conduta e competência do Brasil em projetos restritos a decisões do poder público brasileiro, eleito pelo pa&iacut
e;s".

Segundo o relator, é fundamental o esforço do Congresso para proteger a integridade das populações de Alcântara, havendo ou não o acordo com os Estados Unidos. "O sacrifício não deve ser jogado sobre os ombros deles injustamente. Os governos brasileiros nunca investiram bem no aspecto humano, por isso temos índices de desigualdade social tão grandes."

O Planalto está jogando pesado para sair vitorioso, haja vista a presença constante na mídia do ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardenberg, para explicar os benefícios do acordo. Não há consenso sobre uma cifra oficial, mas acredita-se que o aluguel do centro de lançamento poderá render US$ 30 milhões ao ano aos cofres brasileiros, dinheiro este que não poderá ser investido no desenvolvimento de tecnologia aeroespacial – cláusula do próprio acordo.

Mas os descendentes de negros e índios de Alcântara prometem que não vão deixar suas terras tão facilmente. Quando chegar a data da votação, um grupo pretende sair de São Luís do Maranhão em uma perua, levando moradores das comunidades rurais de Alcântara para Brasília. Sem a experiência do lobby de banqueiros, fazendeiros ou industriais, tentarão convencer os deputados a desistir de milhões de dólares em favor da vida simples de alguns brasileiros.

O que diz o governo

O ministro da Ciência e Tecnologia, Ronaldo Sardenberg, afirma que, em agosto passado, foi iniciado o processo para pagamento das indenizações às famílias que já foram e às que ainda serão removidas da área desapropriada para a instalação do CLA. Segundo ele, foram disponibilizados R$ 2,44 milhões para isso.

De acordo com o ministério, será implantado um programa de recuperação de Alcântara, do qual participarão outras pastas e órgãos vinculados à Câmara dos Deputados, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida e garantir um desenvolvimento econômico sustentável daquela população. Além de ações sociais, está prevista a implantação de projetos nas áreas de agropecuária, turismo, lazer e cultura.

Os moradores, no entanto, desconfiam que tudo isso não passe de apenas mais uma promessa.

Texto polêmico

O acordo entre Brasil e Estados Unidos sobre Alcântara foi celebrado em Brasília em 18 de abril do ano passado. Segundo o parecer do deputado Waldir Pires, ele possui cláusulas que criam obrigações quase que exclusivamente para o Brasil. O governo federal, porém, discorda, alegando que os Estados Unidos já fecharam contratos nos mesmos termos com outras nações e que esse mercado será uma fonte de divisas para o país.

Seguem alguns trechos do acordo ressaltados pelo relator.

Sobre o controle da área do centro (artigo IV, parágrafo 3):
"(…) o Governo da República Federativa do Brasil manterá no Centro de Lançamento de Alcântara áreas restritas (…) e permitirá que pessoas autorizadas pelo Governo dos Estados Unidos da América controlem o acesso a essas áreas".

Sobre proibições alfandegárias (artigo VII, parágrafo 1B):
"Quaisquer Veículos de Lançamento, Espaçonaves, Equipamentos Afins, e/ou Dados Técnicos transportados para ou a partir do território da República Federativa do Brasil e acondicionados apropriadamente em contêineres lacrados não serão abertos para inspeção enquanto estiverem no território da República Federativa do Brasil".

Sobre restrições políticas (artigo III, parágrafo 1A):
"Não permitirá o lançamento, a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, de Cargas Úteis ou Veículos de Lançamento Espacial de propriedade ou sob controle de países os quais, na ocasião do lançamento, estejam sujeitos a sanções estabelecidas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas ou cujos governos, a juízo de qualquer das Partes, tenham dado, repetidamente, apoio a atos de terrorismo internacional".

Sobre interferência na aplicação de recursos (artigo III, parágrafo 1E):
"Não utilizará recursos obtidos de Atividades de Lançamento em programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não tripulados (quer na República Federativa do Brasil quer em outros países)".

Alcântara, Outubro de 2001

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