A pele de Manuel se transformou em couro, curtida anos a fio pelo sol da Amazônia e pelo suor de seu rosto. No sudeste do Pará, onde boi vale mais que gente, talvez isso lhe fosse útil. Mas acabou servente dos próprios bois, com a tarefa de limpar o pasto. "Fizeram açude para o gado beber e nós bebíamos e usávamos também." Trabalhava de domingo a domingo, mas nada de pagamento, só feijão, arroz e a lona para cobrir-se de noite. Um outro tipo de cerca, com farpas que iam mais fundo, o impedia de desistir: "O fiscal de serviço andava armado. Se o pessoal quisesse ir embora sem terminar a tarefa, eles ameaçavam, e aí o sujeito voltava".
Na hora de acertar as contas, os gatos informaram que Manuel e os outros tinham "comido" todo o pagamento e, se quisessem dinheiro, teriam de ficar e trabalhar mais. "Eles dizem que a lei não entra na fazenda." Mesmo assim, Manuel resolveu ir atrás dos seus direitos.
Com base em sua denúncia, a fiscalização entrou na Peruano. Após ter seus direitos pagos pela fazenda, disse que tomaria o rumo de volta ao Maranhão para rever os filhos, depois de quatro anos. "Quem dá queixa tem de sair, porque senão dança. Perde a vida e ninguém sabe quem matou." A intenção era começar de novo, de forma diferente, pois, na verdade, o cativeiro é apenas a ponta de um novelo que, desenrolado, se inicia na própria terra de cada trabalhador.
Manuel nasceu às margens do rio Parnaíba, numa cidade maranhense na divisa com o Piauí, no dia 8 de outubro. Do ano não se lembra, e os documentos que poderiam atestar sua idade se perderam. Acredita que hoje tenha em torno de 40 anos. Certeza fica para a quantidade de filhos: cinco, todos com o primeiro nome do pai. Manuel das Chagas é o mais novo, com 8 anos.
A região possui água o ano inteiro por conta do rio. Terra é que é difícil. Morador de um vilarejo, não conseguiu área para fazer um roçado só seu e por isso era obrigado a plantar na propriedade dos outros e dividir o resultado da produção de subsistência com o dono. "Se tivesse terra não teria vindo para o Pará", explicou.
A família o acompanhou quando decidiu ir a Eldorado dos Carajás, atraído pelas histórias de trabalho farto naquela região de fronteira agrícola. Com o tempo, foram embora e ele continuou sozinho, de pasto em pasto. Em uma das oito vezes que pegou malária, parou o serviço para se tratar e ficou sem receber os 30 dias que tinha trabalhado.
A reportagem tentou entrar em contato com Manuel em sua cidade natal, mas até o fechamento desta edição ninguém sabia onde ele se encontrava.