Pobre município rico

A Província de Urucu é um gigantesco complexo de extração de petróleo e gás natural no coração da floresta amazônica. A melhora de vida, promessa que fez a população da cidade de Coari aceitar as mudanças desse progresso, não veio. Muito pelo contrário. O dinheiro dos royalties jorra, mas ninguém sabe para onde.
Por Leonardo Sakamoto
 01/05/2002
Poços de extração de petróleo e gás natural em Urucu

No coração do estado do Amazonas, banhado pelo rio Solimões, Coari era igual a qualquer outro município perdido no meio da floresta, com uma pequena população. A realidade local começou a mudar quando foram descobertos petróleo, de excelente qualidade, e uma imensa jazida de gás natural cerca de 3 mil metros abaixo do solo. A partir daí, a Petrobrás implantou em suas terras a Província Petrolífera do Rio Urucu, tornando possível a prospecção, o transporte e o escoamento do material até o Solimões e, de lá, para a Refinaria de Manaus (Reman).

Do primeiro poço, construído em 1986, até hoje, Coari multiplicou seu orçamento. No ano passado, foram R$ 19,14 milhões em royalties transferidos pela Petrobrás à administração municipal, além de R$ 1,25 milhão na forma de participação especial – paga quando há grande volume de produção ou rentabilidade. Dos municípios com exploração continental, é o que mais recebe royalties, e no ranking geral perde apenas para os da região da bacia de Campos, no estado do Rio de Janeiro.

Contudo, essa fartura de recursos não alterou a qualidade de vida de seus moradores. "A cidade passou a receber muito dinheiro, mas também muita gente. A população que vivia ao redor, espalhada, migrou para o centro", analisa Aziz Nacib Ab’Sáber, titular do Departamento de Geografia e professor emérito do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). Da mesma forma que o orçamento, a população também foi se multiplicando, e hoje são mais de 67 mil habitantes na busca pelo seu quinhão do Eldorado negro. Como não havia estrutura para isso, cresceu a prostituição, e doenças, como a malária, proliferaram. A cerca de 2 quilômetros do porto da Petrobrás, no rio Solimões, a iluminação do terminal e a movimentação das embarcações afastaram os peixes, que eram fonte de renda e alimentação para a população ribeirinha.

Ao mesmo tempo, a compensação financeira pela exploração do subsolo não foi sentida pela população mais carente. "Os royalties se destinavam a investimentos em áreas sociais do município. Mas o que se viu foi um aumento da marginalidade e da criminalidade. O hospital não tem equipamentos. Para nós, a saúde continua em estado de calamidade pública", afirma Manoel Alzimar Cerdeira, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Coari. "O antigo e o atual prefeito não prestam contas. A gente não sabe o que está sendo feito com esse dinheiro."

Na região rural também há problemas. "Nosso bairro hoje não tem nada. Nem o centro médico nem o centro social funcionam. Usamos a igreja como colégio", afirma Francisco Rebouças de Sousa, presidente da associação de moradores da Vila Lira, próxima ao terminal de embarque de petróleo e gás natural. O local sobrevive do cultivo de mandioca e da produção de farinha.

Vista de torre da Província Petrolífera d o rio Urucu, rodeada pela floresta Amazônica

Para Walsioni Alberto, secretário de comunicação de Coari, a cidade recebeu muitos recursos nas últimas gestões, mas eles praticamente não foram aplicados. "Desde 1º de janeiro de 2001 (início da atual administração), esse dinheiro passou a ser investido como deveria."

O secretário informou que os royalties são utilizados na manutenção de uma série de projetos sociais, entre eles um centro de convivência do idoso e a distribuição de enxovais para mães carentes, além da pavimentação de ruas, educação, eletrificação de bairros e saneamento básico.

O Ministério Público solicitou à prefeitura relatórios de execução orçamentária com a discriminação do investimento desses recursos. "A Petrobrás informou que fez o repasse de R$ 19 milhões em 2001. É um dado que se choca com a realidade do município", explica o promotor Rogério Marques. O procedimento não é uma investigação e sim um pedido de prestação de contas à comunidade – a qual poderia ser divulgada em quadros afixados na fachada de prédios públicos, em espaço comprado na televisão e em sites da Internet. Se uma prefeitura não aceita fornecer essas informações, apela-se ao Tribunal de Contas do estado. Não atendida a ordem judicial, o prefeito pode ser acionado por improbidade administrativa, com penalidades que vão do pagamento de multa e suspensão dos direitos políticos até o afastamento do cargo.

No momento, enquanto o prefeito Manoel Adail Amaral Pinheiro (PL) é convidado a fornecer informações, a gestão anterior passa por um processo de investigação.

Vista do Pólo Arara na base de Urucu, onde o petróleo e o gás natural são armazenados e preparados para o transporte. Daí o material segue por gasoduto até a cidade de Coari

Fiscalização

As empresas que fazem a exploração de petróleo, gás natural ou xisto betuminoso repassam o valor dos royalties à Secretaria do Tesouro Nacional. O cálculo exato depende de fatores como riscos geológicos e expectativas de produção, mas gira entre 5% e 10% do total da produção de um campo durante um mês. Cabe à Agência Nacional do Petróleo apurar o valor devido aos beneficiários e garantir o pagamento. O montante – dividido entre estados e municípios produtores (ou que abriguem estrutura de transporte) e, eventualmente, a marinha e o governo federal – é então depositado em contas do Banco do Brasil.

A lei nº 9.478, de 1997, que trata da aplicação dos recursos gerados pela compensação financeira do petróleo, proíbe sua utilização na amortização de dívidas ou na folha de pagamentos. Compete ao Tribunal de Contas da União (TCU) fiscalizar essa aplicação por meio de inspeções e auditorias, com o apoio dos Tribunais de Contas Estaduais e Municipais. Não é necessário que os ad
ministradores enviem relatórios periodicamente à instituição, que é acionada quando há suspeita de irregularidades.

O senador Jefferson Peres (PDT-AM) solicitou ao TCU no ano passado, através de requerimento do Senado Federal, uma auditoria em Coari. "Tudo indicava que os royalties estavam sendo malversados", afirma ele. O pedido do senador foi anexado a um processo já em andamento. Uma auditoria já havia estado na cidade no ano de 2000 e, ao analisar a utilização dos royalties entre janeiro de 1999 e julho daquele ano, verificou uma série de irregularidades. Uso da verba em salários, pagamentos fantasmas e transferência de recursos para outras contas da prefeitura, sem informações quanto à aplicação. Foram detectadas operações que beneficiavam, inclusive, o então prefeito, Roberval Rodrigues da Silva (PFL).

O TCU – diante dos fatos expostos pelo ministro Benjamin Zymler, relator do processo – pediu uma tomada de contas especial (associada à existência de débito, prejuízo ou aplicação indevida). No total, o destino de cerca de R$ 8,4 milhões não pôde ser comprovado durante o período apurado. Roberval Rodrigues, citado como responsável, foi chamado a apresentar sua defesa, com a respectiva documentação. Se for julgado culpado, terá de devolver esse valor aos cofres públicos, acrescido de juros de mora e correção monetária.

De acordo com Helena Valente, secretária de controle externo do Tribunal de Contas do estado do Amazonas, o processo está na fase de análise das defesas. Como os responsáveis têm o direito de usar todos os recursos jurídicos possíveis, não há previsão de quando será o julgamento.

Segundo informações da Justiça e da administração de Coari, o ex-prefeito Roberval Rodrigues, devido a problemas de saúde causados por um derrame, estaria morando em Manaus para tratamento. Além do problema com os royalties, ele também foi convocado para dar explicações sobre convênios firmados durante sua gestão.

Vista de vilarejo ribeirinho na Amazônia

Impacto social

Tefé, outra cidade às margens do Solimões, perto de Coari, tem aproximadamente o mesmo número de habitantes – 62,6 mil contra 67 mil, de acordo com o IBGE. Perde no número de escolas de ensino fundamental (69 a 165), o que é compensado pela média de anos de estudo da população (2,92 a 2,48) e pelo índice de analfabetismo: 19,3% a 29,9%. Empata na quantidade de hospitais (1) e ganha na de leitos hospitalares (101 a 54).

Há miséria em ambas as cidades, e o quadro social é parecido. Mas Tefé não recebe dinheiro do petróleo, ao passo que Coari teve à disposição cerca de R$ 41,05 milhões nos últimos três anos.

Comparando a realidade de dez anos atrás com a de hoje, não houve evolução ou crescimento em Vila Lira. O posto de saúde, que deveria ser de responsabilidade do governo, foi reformado por uma empresária de São Paulo, que também doou medicamentos. Mas não há médico para atender a população. Ao todo, 38 famílias ainda dependem da água do Solimões, uma vez que a de poço não serve para consumo.

"Coari é, de longe, o município mais rico do Amazonas." O senador Peres acredita que se o dinheiro fosse aplicado em projetos sociais sérios haveria pobreza, mas não miséria ou indigência. E considera que para eliminar desvios de recursos oriundos de royalties dentro das prefeituras é necessário que o TCU dê mais agilidade ao processo de fiscalização. Ele sugere também que o governo federal faça o acompanhamento mais rigoroso desses fundos, incluindo a criação de um conselho comunitário. Independente e com poderes totais, esse órgão seria formado por membros da sociedade civil para vistoriar a aplicação do dinheiro – acionando o Ministério Público a qualquer indício de irregularidade.

É claro que nada disso adianta sem a condenação dos responsáveis, fazendo valer leis já existentes e garantindo o ressarcimento dos recursos desviados dos cofres públicos. O que beneficiaria não só o Amazonas, mas também os mais de 760 municípios que recebem royalties do petróleo.

"Em todo lugar em que uma empresa grande aparece, tem-se a impressão de que tudo vai ficar mais fácil", afirma o professor Ab’Sáber – co-autor do livro Previsão de Impactos, no qual analisa o desenvolvimento sustentável e as mudanças sociais e ambientais geradas pelos projetos. "Em Coari, a questão era, desde o começo, ter planos de harmonização entre o urbano, o sítio, o rio e o lago." Uma vez que isso foi ignorado pelos governantes, resta estudar o problema e buscar soluções para recuperar a harmonia, ou, como diz Ab’Sáber, "desenvolver projetos para minimizar o crescimento rápido e socialmente anômalo, ajudando os que buscam uma vida melhor".

Gente, como a de Vila Lira, que se encheu de expectativas quando ouviu notícias sobre a descoberta de petróleo e do dinheiro que ele trazia. Mas que está ainda na espera, ou sem perspectivas.

Orquidário para reflorestamento na base de Urucu

Eldorado negro

A exploração comercial da Província Petrolífera do Rio Urucu começou em 1988, dois anos após o estabelecimento do primeiro poço. A reserva provada é de 72,42 milhões de barris de óleo e 294,85 milhões de barris de gás natural – representando cerca de 24% do total de reservas nacionais, atrás apenas da bacia de Campos (50%). Sempre houve a expectativa da descoberta de grandes jazidas na floresta amazônica, assentada em uma das maiores bacias sedimentares do planeta. Data de 1917 o início da exploração na parte norte do país, quando o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil perfurou um poço de sondagem.

Coró, um dos pioneiros na região de Urucu, continua funcionário da Petrobrás até hoje. Ele conta que descia por cordas de helicóptero e abria caminho à faca para a exploração. Lembra de histórias de araras que perseguiam caminhonetes e atrapalhavam as comunicações cortando os fios telefônicos. De lá para cá, as clareiras cresceram. No início de 2001, o gigantesco complexo de Urucu apresentava 110 quilômetros de estradas, dos quais 71 pavimentados, 60 poços em produção, 103 quilômetros de dutos nos campos
e um sistema de escoamento de 285 quilômetros de Urucu até o porto do rio Solimões, em Coari.

Em Urucu, tanto para o funcionamento dos veículos quanto para a geração de energia elétrica utiliza-se o gás natural, que lança menos resíduos sólidos na atmosfera, se comparado com outros derivados do petróleo, além de ser mais barato. Ali também foram desenvolvidos um orquidário (com mais de 70 espécies) e viveiros de plantas nativas, como o angico, que são cultivadas para reflorestamento. "Segundo pesquisadores, temos o maior orquidário da Amazônia", ressalta Márcio Amorim, engenheiro florestal e diretor técnico desse setor.

Vista aérea de clareira aberta no meio da mata para a perfuração de um poço em Urucu

O gasoduto Urucu-Porto Velho

Hoje, o escoamento de gás e derivados do petróleo é feito por barcaças através do rio Solimões até a Refinaria de Manaus (Reman). A Petrobrás, que implantou o gasoduto de 285 quilômetros que liga a Província Petrolífera do Rio Urucu a Coari, agora quer construir outro até Porto Velho. O objetivo é fornecer gás natural a uma termoelétrica que vai ser construída para possibilitar o desenvolvimento de Rondônia e Acre. O tempo de vida útil do gasoduto é de 20 anos.

O processo, que está em fase de análise pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), foi duramente criticado durante as audiências públicas (realizadas em cidades que serão afetadas pelo projeto) por pesquisadores, ambientalistas e organizações da sociedade civil. Uma das reclamações é que o Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) não apresenta alternativas à implantação do gasoduto, necessárias a uma obra dessa magnitude. Alguns ambientalistas sugerem, por exemplo, a construção de um ramal no gasoduto Bolívia-Brasil. O EIA/Rima foi produzido para a Petrobrás pela Cepemar – Serviços de Consultoria em Meio Ambiente, que aconselha a sua implementação.

Ao todo, o gasoduto terá 522,2 quilômetros, abrindo uma clareira de 20 metros de largura que percorrerá os municípios de Coari, Tapauá e Canutama, no Amazonas, até atingir Porto Velho, e atravessando os rios Madeira, Açuã, Purus, Coari e Itanhauã, além do igarapé Trufari e do furo Curá-Curá. Em quase todo o percurso, ficará enterrado a uma profundidade mínima de um metro.

Outras críticas recaem sobre o risco de contaminação da água e do solo, a alteração da vida das populações indígenas e ribeirinhas, a exploração desenfreada e o desmatamento que o projeto pode trazer.

O relatório não afasta a possibilidade do aumento das doenças sexualmente transmissíveis, da prostituição e do índice de violência – que ele próprio considera hoje "bastante baixo na região" -, além da transformação de moléstias endêmicas, como a malária e a leishmaniose, em epidemias.

Poços de extração de petróleo e gás natural em Urucu

As recomendações para reduzir os impactos nem sempre se mostram suficientes. Uma delas é a contratação de trabalhadores apenas na sede dos municípios, para evitar que se utilize mão-de-obra dos ribeirinhos, causando êxodo. Mas, caso se repita o que aconteceu em Coari, um deslocamento de pessoas em busca de emprego no centro urbano ocorrerá de qualquer forma.

O exemplo desse município não é citado para reforçar a necessidade da correta aplicação dos royalties em projetos sociais. O Rima também informa que, terminadas as obras, a economia retornará aos níveis anteriores – depois de já ter provocado migração. Por isso, sugere um trabalho de "esclarecimento da temporalidade do projeto" às comunidades.

Quanto ao meio ambiente, a Petrobrás informa que "não correrá risco na operação do gasoduto. O que existe é a possibilidade de impactos ambientais durante a construção, para os quais estão previstas ações preventivas e compensatórias a ser definidas a partir da emissão, pelo Ibama, da licença prévia". A empresa afirma que atua na Amazônia há cerca de quatro décadas e que a conservação da natureza é uma de suas maiores preocupações.

Em carta enviada ao Ibama, Josué Sateré Maué, coordenador da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira, desabafou: "Nós, povos indígenas, nos grandes projetos (rodovias, hidrelétricas, linhão), sempre fomos considerados empecilhos ao desenvolvimento. O discurso de que somos poucos justifica qualquer empreendimento. Mesmo que atinja diretamente em torno de 4 mil pessoas, distribuídas em 57 aldeias, com dez etnias diferentes, além dos indígenas de pouco ou nenhum contato […] para o governo federal, os estados e a Petrobrás, o projeto vale a pena porque trará benefícios para milhões de ‘brancos’ que moram distantes de nossas terras e que não se importam com nosso sofrimento…"

Na verdade, não são só os povos indígenas que estão ameaçados. O professor Aziz Ab’Sáber faz um alerta para outras conseqüências do projeto: "Com uma extensão dessa e com uma estrada de apoio, abre-se um caminho fantástico para os especuladores. Daí fazem ramais, sub-ramais, loteiam, vendem, começam a extração de madeira". Há o exemplo da região sul-sudeste do Pará, hoje ocupada por fazendas de gado, e que vem perdendo boa parte de sua cobertura vegetal e enfrentando graves problemas sociais, como o trabalho escravo. "Seria o primeiro grande caminho de devastação da Amazônia ocidental."

Coari, primeiro semestre de 2002

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