Das estatísticas para o circo

Em meio à riqueza narrativa das lendas amazônicas, uma história real melhora a vida de milhares de ribeirinhos. O Projeto Saúde e Alegria, há quinze anos atuando em comunidades do interior do Pará, utiliza o circo e a cultura regional na prevenção de doenças e no desenvolvimento sócio-econômico de 32 comunidades caboclas.
Por Maurício Monteiro Filho
 01/07/2002

Taumaturgo Neves tem 95 anos e, na maior parte deles, foi contador de histórias. Seus olhos, quase cegos em função do estado avançado da catarata, ainda se alegram quando conta as muitas lendas regionais e as que, em sua longa vida, ele próprio criou. Entretanto, o mais antigo morador da comunidade ribeirinha de Piquiatuba, localizada na Floresta Nacional do Tapajós (Flona), estado do Pará, é rigoroso ao estabelecer a diferença entre história e caso sério. "A chegada do Saúde e Alegria aqui é que foi caso sério", exemplifica. Taumaturgo se refere ao Projeto Saúde e Alegria (PSA), organização não-governamental (ONG) que atua na região desde 1987.

Hoje, o PSA é um caso sério para 32 comunidades dos rios Tapajós – onde está a maioria –, Amazonas e Arapiuns. "Quando eu nasci no mundo, já existia o PSA", diz o garoto Paulo Sérgio Melo, de 12 anos, morador de Marituba, vilarejo vizinho a Piquiatuba.

O que Paulo Sérgio diz, na verdade, é que hoje já não existem tantas ameaças quanto antes da chegada do médico Eugênio Scannavino Neto, que idealizou o PSA juntamente com a arte-educadora Márcia Gama, no início da década de 80. Na época, Scannavino trabalhava para a prefeitura do município de Santarém levando assistência médica às populações ribeirinhas da região. Para muitas delas, era o primeiro contato com qualquer espécie de serviço de saúde.

Por motivos políticos, Scannavino abandonou o trabalho na prefeitura, mas sem deixar que a experiência adquirida se perdesse. Foi assim que, a partir do financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), surgiu o PSA. "A idéia era criar o vírus da saúde. Fazer com que conscientização e prevenção se disseminassem na mesma velocidade da doença", explica o médico, atual coordenador-geral do projeto.

Através da experiência prévia de Scannavino, foram identificadas as populações cujo atendimento era mais premente. Os principais problemas eram comuns a praticamente todas as comunidades. Doenças causadas por veiculação hídrica, desnutrição e carência de acesso a vacinação colocavam as taxas de mortalidade infantil em níveis elevadíssimos. A partir daí, o PSA passou a caminhar na contracorrente das estatísticas. Entre 1999 e 2000, a mortalidade infantil era de 51,83 por mil crianças nascidas entre as localidades que o PSA não atingia. Naquelas em que a ONG já atuava, o índice era de 27,03. No mesmo período, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a mortalidade infantil média brasileira era de 29,6. Rufino Siqueira, de 76 anos, um dos fundadores da comunidade de Santana do Ituqui, localizada no rio Ituqui, pequeno braço do Amazonas, pôde presenciar o que o garoto Paulo Sérgio não viu. "Os meninos ainda são da cor da terra, mas hoje têm saúde."

Seu Rufino, Santana do Ituqui. "Os meninos são da cor da terra, mas hoje têm saúde"

Medidas de prevenção de baixíssimo custo, como produção do cloro para tratamento da água, instalação de pedras sanitárias para as fossas e produção de um complemento alimentar a partir de plantas regionais de alto valor nutritivo, a farinha múltipla, foram alguns dos responsáveis por esse aumento significativo na qualidade de vida das comunidades. "Eu me pergunto por que o governo não realiza esse tipo de trabalho. E a resposta é que o serviço público de saúde vive dessas doenças. Toda a sua renda depende delas", revolta-se Scannavino.

Essa condição, no entanto, pode ser parcialmente corrigida a partir de nova parceria entre o PSA e o BNDES. O convênio deve entrar em vigor antes do fim do ano e destinará cerca de R$ 2 milhões à implantação de postos de saúde em comunidades centrais e ao aumento da oferta dos serviços de saneamento básico, utilizando a estrutura já existente da ONG. Com isso, o PSA ampliará sua área de atuação para 129 comunidades, beneficiando diretamente 28.250 pessoas.

Para atingir seu objetivo de colocar ao alcance das populações ribeirinhas uma condição razoável de saúde, a ONG teve de enfrentar, principalmente, a carência de informação. Moléstias facilmente tratáveis tornavam-se causas freqüentes de morte em função da falta de assistência médica e do isolamento dos centros urbanos. Contra esse quadro, a única alternativa possível era concentrar esforços na prevenção. Além das enfermidades por veiculação hídrica, passou a ser trabalhada pelo PSA a conscientização sobre as doenças sexualmente transmissíveis e a saúde materno-infantil. Assim, paralelamente às crenças regionais, a camisinha e o exame pré-natal se tornaram parte da realidade comunitária.

Mas, ao longo do tempo, percebeu-se que prevenção não é um trabalho exclusivo da área médica. A alta mortalidade infantil não era apenas reflexo de falta de informação sobre saúde. Decorria também da baixa renda familiar, de problemas relativos à educação e da ausência de noções ambientais por parte dos ribeirinhos. A partir dessa constatação, o PSA foi obrigado a expandir suas atividades para atender às novas demandas.

Atualmente, a ONG se divide em quatro núcleos principais: Saúde Comunitária, Alternativas Econômicas Sustentáveis (Naes), Educomunicação e Organização Comunitária. Além disso, desenvolve o programa Mulher Cabocla, criado em 1995, que atende às mulheres ribeirinhas, mas não constitui um núcleo individual. O programa recebeu do Banco Mundial, em junho deste ano, o prêmio Desenvolvimento Sustentável.

Saga familiar

O sol e o calor das proximidades da linha do equador são muito mais impiedosos para Carlos Dombroski do que para a população cabocla. A pele clara denuncia a descendência de siberianos, que aportaram no Brasil com as primeiras migrações de eslavos. Nascido no Paraná, ele se mudou para o Pará em 1980.

"Quando chegamos à Amazônia, comemos o pão que o diabo amassou", relembra. Foi juntar-se à família que se estabelecera às margens da Rodovia Transamazônica, hoje região do município de Placas, um ano antes, atraída pelos slogans de integração do per&iacute
;odo da ditadura: "Terra sem homens para homens sem terra", "Integrar para não entregar". Na realidade, em meio à floresta, a luta por um espaço para plantar foi muito mais ferrenha do que aquela que se travou no sul do país.

Comunidade de Pedreira, caboclos descarregam mantimentos para as granjas comunitárias

"Naquela época, tive os primeiros contatos com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém", recorda Dombroski, que chegou a presidente da instituição e colaborou na fundação do sindicato do município de Belterra, vizinho a Santarém.

Atualmente, ele transmite sua experiência de luta diretamente para as comunidades. Coordena o núcleo de Organização Comunitária do PSA, criado em 1995, que tem por função conscientizar as populações sobre a importância da mobilização e da reivindicação e auxiliá-las nesse processo. Até 2000, já haviam sido formalizadas 13 associações comunitárias.

Além disso, o núcleo foi responsável pelo fortalecimento do Conselho Intercomunitário (CI). Funcionando informalmente desde 1990, com a aprovação de seu estatuto em 1997, o CI tornou-se a instância legal de representação das comunidades atendidas pelo PSA. A idéia do conselho é estabelecer a discussão sobre os anseios e necessidades das comunidades entre os próprios ribeirinhos. Hoje, seu maior desafio é atingir independência definitiva do PSA. Raimundo Oliveira, atual vice-presidente do CI, morador de Piquiatuba, vê a situação do conselho como decisiva. "Precisamos de recursos através de financiamento para poder continuar", declara. Mesmo com essas conquistas, ainda há muito a transformar. "A história da Amazônia é bastante marcada pelo paternalismo", critica Dombroski. Os modelos de auxílio às comunidades amazônicas têm sido, em sua maioria, assistencialistas. Isso fica patente na atuação dos partidos políticos entre os ribeirinhos. São constantes doações e obras com fins políticos, o que contribui para a passividade das populações.

Rufino Siqueira, apesar das dificuldades, é otimista quanto ao futuro. "A comunidade já anda sozinha. Ainda sem velocidade, mas anda."

Seu Francisco, Santana do Ituqui, consertando a malhadeira.

Luta pela sobrevivência

"As comunidades precisam fazer sua cultura se tornar renda", afirma Caetano Scannavino, irmão de Eugênio e vice-coordenador geral do PSA. Isso significa subverter a dinâmica econômica contemporânea, onde o transitório é o rentável.

Para os caboclos, a simples agricultura de subsistência já não satisfaz as necessidades locais. "Só com o roçado de mandioca não dá para comprar todos os mantimentos para a comunidade", diz Dário Teixeira, do vilarejo de Nazaré. O outro pólo de sustentação econômica, a pesca, também vem se tornando insuficiente. Segundo Leandro Pinheiro, coordenador do Naes, o problema é que "as comunidades são extrativistas, e não produtoras".

Preservando os conhecimentos agrícolas tradicionais dos caboclos, o Naes busca introduzir novos plantios, como os de feijão, soja, milho e, mesmo, árvores frutíferas nativas, constituindo os chamados sistemas agroflorestais. Desse modo, é possível viabilizar fontes de renda alternativas nas entressafras.

Outra iniciativa do núcleo é a implantação de granjas comunitárias em alguns vilarejos da Flona. O projeto é financiado pelo Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil, gerenciado pelo governo brasileiro, e trabalha com recursos vindos do grupo dos sete países mais desenvolvidos do mundo. As comunidades de Pedreira, Piquiatuba, Maguari e Nazaré foram as primeiras beneficiadas.

Paralelamente ao trabalho com os produtores, o Naes busca atingir também a população comunitária jovem. O programa Jovem Empreendedor consiste em um sistema de microcrédito voltado para novos empreendimentos, desde que desenvolvidos dentro das próprias comunidades.

Grupo de mulheres em Santana do Ituqui prepara a farinha múltipla

Seguindo a filosofia de fusão entre o conhecimento local dos ribeirinhos e o técnico, trazido pelo PSA, o programa Mulher Cabocla tornou-se um dos mais eficazes no aumento da renda das populações. Em Urucureá, no rio Arapiuns, 29 mulheres estão organizadas na produção de 26 artigos de artesanato. Na comunidade de São Francisco, também no Arapiuns, são produzidas frutas regionais desidratadas. Em outras cinco comunidades, mulheres e homens trabalham na implantação de unidades de beneficiamento de frutas, que destinarão os resultados de sua atividade à merenda escolar.

"As mulheres são o eixo principal no contexto comunitário", aponta Valcléia Lima, responsável pelo Mulher Cabocla. Segundo ela, mais do que para o estabelecimento de uma alternativa econômica sustentável, o programa serviu para instaurar a discussão de gênero e romper a visão patriarcal que pairava sobre aquelas populações há sete anos, quando iniciou suas atividades. "Hoje já há mulheres presidentes de comunidades. Urucureá é um exemplo", comenta.

Anseios da juventude

Em Santana do Ituqui, à medida que o sol se põe, a luz de lâmpadas elétricas, alimentadas pelo gerador a óleo, rasga a escuridão. Simultaneamente, vozes jovens começam a soar pelos alto-falantes instalados no centro do vilarejo, transmitindo a programação diária da Rádio Santana.

Juntamente com o grupo de jovens de Santana e de muitas outras comunidades, Fábio Pena também contribuiu para romper o silêncio secular em que estão imersas as populações caboclas. Nascido em Carariacá, no rio Amazonas, tomou contato com o PSA em 1987. "A chegada do barco do projeto era um acontecimento. Todos corriam para ver", relata. Desde então, nunca mais se distanciou da ONG. Hoje ele é um dos coordenadores do núcleo de Educomunicação, destinado a crianças e jovens da comunidade.

Em contraste com seus pais e avós, os olhares dos mais novos lançam-se cada vez mais para além do rio, em direção &ag
rave;s cidades. "A população cabocla já foi atingida pela globalização", constata Caetano Scannavino. Esses anseios acabam por gerar um processo de êxodo rural muito intenso entre os jovens ribeirinhos. Em busca de condições de vida diferentes das de seus pais, eles vão encontrar uma realidade muito mais brutal nos centros urbanos. "Nem com todo recurso do mundo eu iria para a cidade", afirma Dário Teixeira, que não pode dizer o mesmo sobre seus oito filhos.

O desenvolvimento tecnológico já atinge algumas comunidades, mas as condições de saúde ainda são precárias

A desilusão dos adolescentes com a vida comunitária torna-se um golpe duro sobre a memória cultural das populações caboclas. As histórias de Rufino, de Taumaturgo, da saga dos Dombroski correm o risco de desaparecer juntamente com seus protagonistas. Mais longe, o conhecimento da floresta, de suas plantas, das técnicas de pesca definha, circunscrito aos mais idosos. Assim, o núcleo de Educomunicação visa criar, entre jovens e velhos, uma ponte que seja capaz de resgatar a cultura tradicional da região.

Para isso, utiliza técnicas de arte-educação e comunicação e busca trabalhar paralelamente as crianças, os adolescentes e os professores da rede pública. "O trabalho de comunicação acaba abrindo a cabeça tanto para a crítica à própria realidade, como para o mundo externo", diz Fábio, que, através do PSA, participou das oficinas de monitores-mirins e foi repórter comunitário em Carariacá.

Hoje, a Rede Mocoronga de Comunicação Intercomunitária conta com várias rádios e jornais locais, além do periódico "O Mocorongo" (palavra que designa aquele que nasce em Santarém), editado na sede do PSA, o qual circula trimestralmente em todas as comunidades.

O trabalho com os monitores-mirins tem por finalidade criar, entre as crianças, multiplicadores das informações que o PSA leva às comunidades. Além disso, tenta estabelecer um vínculo mais íntimo entre elas e a escola, através do desenvolvimento de atividades recreativas no espaço de ensino. Quanto aos professores, a ONG busca estimular a formação em arte-educação e a introdução de conteúdos adaptados à realidade local. "Em vez de usar a uva ou o morango como exemplos de frutas, tentamos fazer com que o professor utilize o cupuaçu", explica Rosival Dias, que está no PSA há 13 anos.

Pôr-do-sol em Santana do Ituqui

Interação lúdica

Luis Evandro Rodrigues tornou-se o palhaço Pimentinha em meio ao ermo da Rodovia Transamazônica, acompanhando a obra com o circo itinerante de sua família. Junto ao pai, à mãe e às duas irmãs, viajou boa parte da região norte do Brasil apresentando números circenses para toda espécie de público. Agora, sua platéia localiza-se às margens dos rios do Pará, nas comunidades atendidas pelo PSA.

Pimentinha, juntamente com Dias, ou palhaço Curumim, a equipe da ONG e voluntários locais encerram as visitas às populações com o espetáculo do Gran Circo Mocorongo de Saúde e Alegria. Aglomerados nos barracões, os moradores assistem a números de mágica e malabarismo. Enquanto isso, recordam os conteúdos tratados pelo PSA ao longo de sua estada na comunidade. "O circo funciona como síntese do que transmitimos nas visitas. Às vezes, tudo o que deixou de ser assimilado acaba sendo apreendido porque foi visto no circo", afirma Dias.

"Não há como escapar do circo, pois ele é tudo. Não só um espaço físico, mas um lugar onde circulam idéias. Ali, você pode sonhar e ser qualquer coisa", diz Pimentinha.

Difusor de idéias

Surgiu do PSA a concepção do Amazônia.br, fórum de convergência entre ONGs que desenvolvem trabalhos na região amazônica e o empresariado brasileiro. "O projeto tem por objetivo sensibilizar a iniciativa privada sobre os problemas daquela região e cobrar providências", explica Eugênio Scannavino. Iniciado em 2001, o Amazônia.br realizou entre 16 de julho e 18 de agosto passado uma exposição no Sesc Pompéia, em São Paulo, com a intenção de trazer a público a experiência.

Tassiane, 2 anos, com seu Taumaturgo, seu pai, de 95 anos

O PSA é referência nesse espaço de discussão devido à importância que atingiu em 15 anos de atividade. Isso, no entanto, obrigou a ONG a um processo agudo de institucionalização. Os vínculos com financiadores do mundo todo – atualmente são dez diretos e um indireto – tornaram necessária a criação de uma estrutura administrativa que pudesse dar conta de todas as demandas burocráticas, o que acaba gerando críticas internas.

Seja como for, a despeito do que possa acontecer no futuro, segundo Jair Resende, do setor administrativo, "uma revolução social está acontecendo nas comunidades". Na verdade, já transcendeu os rios do Pará para ser reeditada em populações carentes da Índia. A convite da Organização Mundial de Saúde, Caetano Scannavino auxiliou na implantação do modelo de saúde comunitária do PSA em favelas daquele país asiático.

Se os olhos de Taumaturgo perderam a faculdade de enxergar, não deixaram de ser capazes de se iluminar à lembrança das histórias que viu, viveu, ouviu e contou. Histórias sobre feitos extraordinários. Sua filha mais nova, Tassiane, de 2 anos, ainda tem no olhar a gravidade de quem espera. A seus olhos, a vida é pura potência. Ela nasceu no mundo em que vive Paulo Sérgio, onde, desde sempre, existe o PSA.

Santarém, julho de 2002

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM