Ninguém nasce em Poá

Maternidade de Poá (Grande SP) está em obras há quinze anos, enquanto crianças da cidade nascem em outros municípios. Agora, quando as obras serão concluídas, prefeitura quer transferi-la para a iniciativa privada.
Por Paulo Belushi
 01/07/2002
Jane Pinto Souza, mãe de duas filhas, que teve que realizar seus partos fora de Poá, em frente ao hospital municipal da cidade

Jane Pinto Souza, moradora de Poá, cidade da região metropolitana de São Paulo, é mãe de duas filhas: Larissa, de 3 meses, e Janaina, com 8 anos. Ambas crescem na cidade, mas nasceram em cidades vizinhas. Larissa, a mais nova, veio à luz no Hospital Regional de Ferraz de Vasconcelos, enquanto Janaina nasceu na Santa Casa de Suzano.

Desde que não existem mais parteiras na cidade, ninguém mais nasce em Poá, embora a população da cidade tenha crescido junto com a região metropolitana. Como Jane, todas as mães são obrigadas a procurar cidades vizinhas na hora do parto. "Se a maternidade de Poá estivesse pronta, minhas filhas teriam nascido lá".

O Hospital Municipal Dr. Guido Guida está sendo construído há 15 anos, desde qundo a prefeitura assumiu a posse de um terreno onde o então Hospital São Marcos construía um anexo de suas instalações. A administração da época decidiu transferir para o local um pronto atendimento que já existia na cidade, e complementá-lo com uma maternidade.

Desde então, a população aguarda a conclusão das obras para utilizar o hospital. Enquanto isso, procura atendimento em outras cidades. É o caso de Joaquim Bezerra de Amorim, aposentado, 66 anos. No princípio deste ano, Joaquim sofreu um derrame cerebral. A família imediatamente procurou o pronto-atendimento no município. Como este não tinha condições de atendê-lo, o tratamento teve que ser realizado no Hospital Regional do Itaim Paulista, em São Paulo, administrado pela casa de saúde Santa Marcelina.

Três meses depois, Joaquim começou a sofrer de sangramento no ouvido. Orientada pelo médico que o atendeu na primeira vez, a família conduziu novamente o paciente para o Hospital Municipal, para que o ouvido fosse examinado com um otoscópio, o equipamento adequado para este tipo de exame. No entanto, o que o médico de plantão fez foi simplesmente medicar Joaquim sem nenhum diagnóstico. Quando a família procurou outro hospital, descobriu que o sangramento era resultado de infecção causada por uma paralisia no ouvido, seqüela do derrame, e o medicamente não teria efeito.

Joaquim, que sofreu derrame cerebral, e sua esposa Maria

Assim como Joaquim, boa parte da população de Poá procura serviços de saúde em outras cidades. Para Roberto Corci, do Conselho Municipal de Saúde de Poá, isto acontece porque a maioria da população não tem a cidade onde mora como referência para a saúde. "A maior parte procura atendimento nas cidades onde trabalha e nas cidades vizinhas". O secretário de saúde do município, Marco Aurélio Feitosa, discorda: "Se fizermos as contas das pessoas de Poá que procuram atendimento em outros municípios, e as de outros municípios que vem à Poá, a balança desequilibra a nosso favor".

"A atual gestão prometeu instalar em três meses a maternidade, e até hoje isto não aconteceu", diz Roberto Corci. Para ele, a conclusão do hospital deveria estar incluída no plano plurianual do município. O secretário se defende novamente, falando que a gestão anterior não avançou nas obras, entregando a construção como pegou. O Ministério da Saúde liberou este mês verbas para a conclusão do hospital em duas parcelas de R$ 240 mil, que de acordo com o secretário ajudarão a atual prefeitura a inaugurar a tão esperada maternidade.

Gastos mal explicados

Apesar das obras se encontrarem atrasadas, há gastos mal explicados no processo de construção. No ano de 1999, descobriu-se que a prefeitura municipal pagou cerca de 300 mil reais por dois elevadores para o hospital, que nunca foram instalados. Nas atuais instalações sequer existe o fosso dos elevadores na obra.

O caso foi parar no ministério público, e hoje está arquivado sob alegação de falta de provas, mas levantou a dúvida sobre o uso das verbas destinadas à construção do hospital. De acordo com o secretário de Saúde, a questão foi uma acusação sem fundamento usada politicamente contra a prefeitura. "A construtora pediu verba para os elevadores, mas gastou com outras coisas importantes, por exemplo, com as portas das enfermarias. Agora eles não podem mais pedir verba para as portas, mas podem solicitar para os elevadores novamente".

vereador Fernando Junior, presidente da comissão de educação, saúde e assistência social da Cãmara municipal de Poá

A privatização que leva outro nome

Neste ano, o prefeito encaminhou à Câmara dos Vereadores projeto de lei que facilita parcerias entre o Hospital Municipal e a iniciativa privada. Esta lei revoga uma anterior, de novembro de 2001, que proibia a privatização do hospital municipal. De acordo com o vereador Fernando Junior, presidente da Comissão de Educação, Saúde e Assistência Social da Câmara Municipal, "a lei continua proibindo a venda do patrimônio do hospital, mas permite a terceirização, no modelo do hospital Santa Marcelina de Itaquaquecetuba".

Marco Aurélio Feitosa, secretário de Saúde, evita usar termos como terceirização e parceria. Prefere "concessão de uso", embora admita que o modelo a ser replicado é o do hospital Santa Marcelina da Itaquaquecetuba. Isso significa que qualquer parceria entre o hospital de Poá e a iniciativa privada seria feita apenas com organizações sociais sem fins lucrativos, teria atendimento 100% SUS e a prefeitura não transferiria nenhum montante adicional de verba para o projeto. Em audiência pública realizada pela Câmara Municipal, o secretário disse não existir ainda instituição interessada em parceria: "Não existe porque a prefeitura não procurou ninguém. Por enquanto a lei não permite a parceria".

Onerar o Estao ou criar a dupla porta?

O hospital Santa Marcelina, que está sendo usado de modelo para Poá, atende 100% SUS, mas recebe remuneração superior aos procedimentos SUS convencionais, de acordo com contrato próprio firmado com a Secretaria Estadual de Saúde. Além disso,
tem metas de atendimento firmadas no contrato. Para Vivian Ferreira, diretora administrativa do hospital, a grande vantagem da concessão à iniciativa privada é a agilidade na gestão das verbas públicas. "Nossos funcionários são contratados em regime de CLT, não precisamos realizar concurso público nem licitação, embora existam regras rígidas para os contratos que firmamos".

Hospital Regional de Itaquaquecetuba, administrado pela Casa de Saúde Santa Marcelina em convênio com o governo do estado de São Paulo.

Para o professor Bernard Couttollenc, da Faculdade de Saúde Pública da USP, transferir a gestão de um hospital para a iniciativa privada sem remuneração extra seria inviável: "Nenhum hospital, público ou privado, sobrevive apenas com a remuneração de produção do SUS". Ou se faz uma parceria cujo atendimento seja todo do SUS, com uma complementação de verba feita pelo município, ou se permite que a instituição atenda convênios particulares para complementar o orçamento. "No entanto, isto gera a dupla porta, e não é tão simples assim de se fazer".

Para o professor José Aristodemo Pinotti, da Faculdade de Medicina da USP e secretário de saúde do estado de São Paulo entre 1986 e 1990, "uma instituição filantrópica não tem como atender 100% SUS, porque não tem orçamento do governo como os hospitais públicos, e porque recebe os procedimentos SUS com 75% a menos que um hospital universitário".

No caso poaense, o secretário de saúde discorda. De acordo com Marco Aurélio, a remuneração de produção do SUS para maternidade é superior às dos outros casos. "A permanência da paciente no hospital é menor, e existem incentivos do ministério da saúde para as maternidades".

Roberto Corci Ferreira, membro do Conselho Municipal de Saúde, em frente a unidade de saúde do PSF.

A principal vantagem vista por todos na gestão privada é a agilidade para a liberação das verbas. Mas este tipo de gestão apresenta outros problemas. O principal é que todo investimento para construir e equipar o hospital continua sendo público. Assim foi no hospital Santa Marcelina de Itaquaquecetuba, e assim seria em Poá. "Se é a prefeitura que vai ter que gastar todo o dinheiro para construir e equipar o hospital, então porque entregá-lo de mão beijada para a iniciativa privada?", questiona Roberto Corci.

Cada vez mais as chances do convênio ser firmado tornam-se remotas. Quando o projeto de lei que autoriza a concessão foi à votação na Câmara Municipal, a população local organizou uma manifestação. O projeto recebeu emendas e foi tirado da pauta para ser mais discutido. Uma audiência pública já aconteceu depois deste fato, e provavelmente outra seja convocada até o final do ano, antes que o projeto retorne à votação.

O vereador Junior, que analisa o projeto, pretende incluir na letra da lei as promessas feitas pelo secretário Marco Aurélio de que, em um eventual convênio, o atendimento SUS será total e o município não transferirá receita para a instituição. "Quando ele fala, a coisa fica bonita, mas na realidade ninguém sabe como vai ser".

A população local afirma que não existe demora no atendimento. Em visita à instituição foi possível perceber que esta impressão é verdadeira. No entanto, alguns fatos chegam a impressionar Por um lado, a instituição conta com um considerável corpo de seguranças para evitar o acesso de muita gente às alas internas do hospital. Por outro lado, no último dia 30 de julho, mais da metade da fila era obrigada a ficar do lado de fora do prédio, em um frio de 15°C, sob alegação de que as cadeiras do hall da recepção estavam lotadas.

Obras do hospital municipal de Poá

Perguntada sobre as razões de submeter parte dos pacientes ao frio do dia, Vivian Ferreira, diretora administrativa do hospital, alegou que os pacientes chegam muito tempo antes do horário em que a consulta é marcada. "É cultural, as pessoas estão habituadas à fila no SUS, e acabam chegando mais cedo do que deveriam. Quem está na hora da sua consulta tem prioridade para ocupar as cadeiras da recepção". E ainda complementa: "Esse é o tipo de coisa que não gostamos de fazer quando abrimos um hospital".

Saúde pública e privada no Brasil

A década de 90 foi marcada pela expansão do setor privado nos chamados serviços públicos, como previdência e educação. Na saúde, a situação tem sido a mesma. De acordo com a Organização Panamericana de Saúde, vinculada à ONU, o custo público de saúde no Brasil corresponde a apenas 40% (dados de 1998) dos gastos nacionais com saúde, enquanto que no Canadá o custo público é de 74%, na Costa Rica é de 75%, e mesmo nos Estados Unidos chega-se a 45%. Dados da ABRAHUE (Associação Brasileira de Hospitais Universitários e Escolares) apontam que os convênios privados, por sua vez, representam 50% do orçamento dos hospitais-escola do país.

Como compreender este custo privado de saúde brasileiro? "É importante ressaltar que o custo privado de saúde inclui também custos como medicamentos, ou seja, mesmo que a maioria da população dependa do serviço ambulatorial do SUS, ela arca com parte importante do tratamento ao ir até a farmácia", afirma o professor Bernard François Couttollenc, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Além deste, os gastos com dentista correspondem a outra grande parcela deste custo privado da saúde.

Placa da construtora do hospital

Os convênios, no entanto, tem a sua importância neste custo: a cobertura dos planos de saúde chega a 45 milhões de pessoas, o equivalente a 26% da população total do país, com condições de pagar as taxas dos convênios existentes. No restante da população estão a imensa maioria da popula&ccedi
l;ão, atendida pelo SUS, e os que pagam as consultas particulares do próprio bolso. "Dizer que os 60% de custo estão distribuídos para apenas 26% da população é falho, e confunde custo privado de saúde com os convênios", afirma o prof. Bernard.

Mas se é errado confundir custo privado com os planos de saúde, também é errado confundir custo público com hospitais públicos. O cadastro do SUS registra um total de 3.466 hospitais privados conveniados ao sistema no país, contra 2.091 hospitais públicos e 147 hospitais universitários. Esta é uma realidade que se aprofunda na região Sudeste, onde o SUS aponta a existência de 1.178 hospitais privados conveniados ao sistema e apenas 398 hospitais públicos. No resto do país, onde a renda da população é menor, o número de hospitais públicos torna-se superior ao de privados conveniados ao SUS.

A alta quantidade de hospitais privados conveniados ao SUS não significa redução dos gastos públicos de saúde. "A remuneração das organizações sociais privadas pelo SUS é superior à das instituições públicas", afirma o professor Bernard Couttolenc. Para além da produção ambulatorial, a instituição recebe, de acordo com o contrato, uma complementação de verba do município ou do estado, que pode garantir um atendimento 100% SUS ou em conjunto com convênios privados, de acordo com o contrato.

Sala de esterilização do Hospital Municipal de Poá – em obras.

O Estado de São Paulo tem presenciado diversas parcerias com a iniciativa privada para a gestão de instituições públicas de saúde. A mais desastrada foi a experiência paulistana do PAS, encerrada pela prefeita Marta Suplicy depois de diversos escândalos de corrupção e da queda na qualidade do atendimento.

Em 1998, o governador Mário Covas fechou um acordo com a Casa de Saúde Santa Marcelina – instituição filantrópica privada – através do qual a gestão do hospital estadual do Itaim Paulista seria terceirizada para a instituição. Em 2000, acordo semelhante terceirizou a gestão do hospital estadual da cidade de Itaquaquecetuba, na região do alto Tietê.

Alternativas para a saúde pública

É importante salientar que, para além do custo público e privado da saúde, existe um custo social, pago sob a forma de impostos e por cada indivíduo na compra de serviços ou de medicamentos. A medicina curativa tende a ficar cada vez mais cara, devido ao surgimento de novas tecnologias, mais sofisticadas. O custo do uso desta tecnologia acaba sendo repassado à sociedade, quando ela é obrigada a pagar caro pelo atendimento.

Sandra Papaiz, diretora geral da Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em entrevista à revista da Adusp (Associação dos Docentes da USP) de dezembro de 2001, declarou que na Inglaterra o sistema de saúde já não atende quem tem mais de 65 anos. "Eles escolhem, mediante regras, quem vão atender, porque não há recursos para atender a todo mundo".

Hospital Municipal de Poá

Em um país como o Brasil, no entanto, o investimento em medicina preventiva é apontado como uma saída para a redução deste custo social, com elevação da qualidade de vida. O professor Bernard Couttllenc discorda, no entanto, com esta concepção. "Se em uma determinada região não existe demanda por atendimento médico, porque as pessoas não estão acostumadas a isso, um programa de medicina preventiva aumenta o custo, ao invés de reduzi-lo".

Programa de Saúde da Família: Alternativa?

O governo federal vem implantando, desde 1994, o Programa de Saúde da Família. Em 1998, ele já atingia 24 estados e 1219 municípios, com 3119 equipes, de acordo com estudo feito pelo ministério da saúde em 2000. O objetivo do projeto é o acompanhamento sistemático da saúde em uma determinada população, com visitas regulares e orientação às famílias cadastradas através de agentes comunitários de saúde.

O modelo do programa em Poá prevê que a sociedade amigos de bairro se responsabilize pela contratação dos agentes comunitários de saúde, e a prefeitura apenas cuida do repasse das verbas para a associação e da gestão municipal do programa. Para Marco Aurélio Feitosa, este formato garante a transparência do orçamento público da saúde, e faz com que a comunidade se sinta parte da secretaria.

Desde sua implantação o sistema atingiu quatro dos dez postos de saúde do município. Para Roberto Corci, a velocidade de implantação é rápida. "Você tem que levar em consideração que em Poá o sistema existe e funciona", diz Roberto. O secretário salienta que todos os municípios do alto Tietê estão usando programa poaense como modelo. "Recentemente, na conferência municipal de saúde de Mogi das Cruzes, foram convidados a secretaria estadual de saúde e a cidade de Poá, para apresentar o seu modelo de programa de saúde da família".

Dr. Marco Aurélio Feitosa, dentista, secretário municipal de saúde de Poá

De acordo com Marco Aurélio, o programa em Poá atende 12 mil pessoas e este ano este número chegará em 16 mil. No entanto, o banco de dados do SUS aponta um atendimento de 4,8% da população, o que em números absolutos significa apenas 5 mil pessoas.

Para o professor Bernard Couttollenc, ainda não existe uma padronização dos dados do PSF, e cada município passa os dados para o ministério da saúde de um jeito diferente. O ministério pretende realizar um estudo mais detalhado sobre o programa até para uniformizar a informação e compor um quadro nacional. "Enquanto este estudo não sai, não podemos afirmar nada sobre o andamento do PSF nos municípios".

Mais Informações

Muitos dos dados oficiais sobre saúde citados nesta matéria estão à disposição na internet para o público em geral:

Organização Pan-Americana de Saúde (http://www.opas.org.br/): contém dados sobre a saúde nos países do continente americano

Banco de Dados do SUS (http://www.datasus.gov.br/): contém dados oficiais sobre a saúde pública no Brasil, incluindo repasses do SUS para instituições conveniadas, orçamentos municipais e número de atendimentos registrados.

Ministério da Saúde (http://www.saude.gov.br/): contém informações gerais sobre a saúde no Brasil.

PSF Brasil (http://www.psfbrasil.hpg.com.br/): site não governamental com estudos sobre o programa de saúde da família no Brasil.

Poá, julho de 2002

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