O teólogo da libertação contra o imperialismo

Em entrevista exclusiva, Leonardo Boff discute a guerra imperialista, o novo papel dos movimentos sociais brasileiros e por que Lula deve ir a Davos
Especial para o Repórter Brasil
 23/01/2003

Defensor dos direitos humanos e da preservação ambiental, o teólogo Leonardo Boff, uma das principais vozes da militância social brasileira, não se intimida ao expressar sua indignação contra as diferentes formas de injustiça e violências provocadas pelo homem.

Precursor da Teologia da Libertação, que tem como principal valor a transformação social dos pobres para torná-los sujeitos conscientes e questionadores das doutrinas religiosas, é autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística.

Cerca de 4 mil pessoas ouviram Boff na abertura do Fórum “Vivemos Juntos: conhecer e viver a Carta da Terra”, em Porto Alegre, um dos eventos que antecederam o Fórum Social Mundial 2003. A seguir os principais trechos da entrevista concedida à Ciranda Internacional da Informação (www.ciranda.net) e Repórter Brasil.

Quais ameaças a iminente guerra entre EUA e Iraque podem trazer à humanidade?

Leonardo Boff – A guerra é contraditória, vai contra o sentido da criação. O ser humano é sapiens e demiens, e nesse cenário ele se mostra duplamente demente. Podemos entrar numa guerra de alta destruição, não só de vidas humanas, mas também de ecossistemas. Poços de petróleo e reservas que a natureza criou há milhões de anos para o seu equilíbrio estão sob ameaça de uma guerra de alta tecnologia. Hoje, mais importante do que lutar pela paz é lutar contra a guerra.

Como o senhor vê a possível utilização de armas nucleares neste conflito?

George Bush vai utilizar todas as armas e isso implica armas nucleares. Este é um agravante que nunca ocorreu durante a Guerra Fria, pois esse armamento era utilizado como mecanismo de dissuasão, para meter medo, mas ninguém o utilizava. Agora não, antes que o outro se anuncie como inimigo é possível destruí-lo com armas nucleares. É um passo inédito na história da guerra, cujas conseqüências são imponderáveis, pois a radioatividade poderá afetar a todos, não só o Iraque.

Temos presenciado manifestações no mundo inteiro, a favor da paz, contra a guerra. Como o senhor analisa esses paradoxos?

Todo sistema vivo é dinâmico e contraditório. É feito de caos e cosmos, diabólico e simbólico, ordem e desordem. Essa é a lógica de todo o universo e também a lógica social. Se por um lado Bush é provocador de caos e altamente destrutivo, por outro, a humanidade caminha para o seu oposto, convencida de que para criar uma nova ordem e mantê-la não é preciso o uso da violência destrutiva. Talvez aprendam que não dá mais para confiar a ordem mundial a uma potência. A Terra tem que ser gerenciada por todos os povos, responsáveis pela criação de organismos paralelos aos Estados belicistas, que ainda vivem no velho paradigma imperialista, utilizando o poder como imposição, destruição e guerra.

Com a renovação política no Brasil, a sociedade tem assumido um papel de agente do processo de renovação política que hoje se desenha no País. O que essa mudança representa?

O Lula é resultado de um processo social de dezenas de anos, feito por uma vasta articulação de movimentos sociais, comunidades, sindicatos e grupos para criar um novo poder social, canalizado num contexto político tão forte, que conseguiu conquistar o aparelho central do Estado, o governo. Essa organização gerou uma nova perspectiva política, com mais esperança, sentido de justiça social. Isso é a força do governo Lula. Entretanto, se ele não mantiver a coesão entre os poderes político e social correrá o risco de ser mais um governo social, de esquerda, com os mesmos vícios do poder palaciano, que faz políticas de costas para o povo. Se Lula herdou um dilúvio de 500 anos, ele não pode, como um Noé solitário, pilotar essa arca sozinho, tem que contar com coadjuvantes. Por isso, os movimentos sociais devem se organizar, abrir caminhos e entender o Estado como um aliado, não um arqui-inimigo. Sem a ajuda da sociedade civil não se conseguirá, só pelo poder político, uma saída esperançosa para o Brasil.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) reflete essas necessidades?

O MST é portador do melhor da sociedade civil brasileira. Ele e todos os movimentos que lutam pela terra desejam que ela seja o lugar onde se habita, se alimenta, se organiza o ser humano. É o sonho de uma nova humanidade, não só de um novo Brasil. Essa é a força da utopia desses grupos. Não é sem razão que o MST nasceu nas bases da Igreja, pois sonham com um reino de paz e justiça. Eles traduzem o sonho religioso num sonho político, num sonho pedagógico. Terra, semente, saúde, escola, transporte, segurança, tudo isso significa um projeto integral de reforma agrária.

Como os valores espirituais contribuem para um maior entendimento da sociedade com relação às mudanças políticas?

Lula deu uma resposta, quando levou seus ministros para sentir a pobreza na pele. Foi um choque existencial de superação do sofrimento humano. O sistema só se mantém se colocado longe da vida, não vendo a mão que se estende ao grito do oprimido. Os ministros se comoveram e passaram por uma revolução espiritual, isto é, uma indignação com o social. Isso permite um entendimento sábio e político, sem assistencialismo, para incentivar o desenvolvimento das comunidades. Todas essas dimensões são pré-políticas e influenciam enormemente não como simples maneira de gerenciar recursos e poder e sim como cuidado com as pessoas. E eu estou feliz que Lula poderá dizer isso em Davos, no coração do império, duro, cruel e sem piedade. Que tem que escutar lições sábias de quem sofre com essas mazelas e apresenta sonhos de uma humanidade mais justa.

Como transformar a atual globalização, perversa e excludente, em outra mais humana?

Esse tipo de globalização não é conversível, é perverso. É um lobo que tem sua voracidade e não faz sentido serrar os seus dentes, pois ele sempre vai querer devorar a vítima. O atual modelo revela essência competitiva inerente ao ser humano. Precisamos romper com a camisa de força da competição através da cooperação, solidariedade mundial e das iniciativas de redes desenvolvidas mutuamente, criando responsabilidades coletivas.

É o espírito de Porto Alegre?

Sim. E é isso que está valendo no mundo. O Fórum Social Mundial faz contraponto à outra globalização e permite entender como é necessário um outro modelo, com rosto humano e com a manutenção do planeta vivo, para que possamos seguir sem nos sentir ameaçados.

Claudia Jardim, Laura Cassano e Luciano Máximo

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