Tumulto, espera e duas horas de ovação

Hugo Chávez, presidente da Venezuela, discursou e agradou por duas horas, enquanto milhares de pessoas o aclamavam do lado de fora
Especial para o Repórter Brasil
 27/01/2003

Caras pintadas: amarelo e azul. Levantam bandeiras vermelhas, dizem que estão com Chávez e pedem que “no se vá”. Chega o líder que representa para aquelas pessoas a luta contra o imperialismo norte-americano e o neoliberalismo. Antes de dirigir-se à Assembléia, onde proferirá conferência, cumpre a cena típica do Palácio Piratini: acena para o povo, da varanda. E “Viva Porto Alegre!”, diz pelo microfone às aproximadamente 6 mil pessoas. Aplausos, gritos e saudações apaixonadas. Cumprimenta Germano Rigotto, governador do Rio Grande do Sul. Vaias por mais de trinta segundos constrangem Chávez, que mantém silêncio, e parecem nem abalar o governador, cujo rosto não retorna expressão alguma.

O sol é forte e milhares de pessoas continuam chegando. Protegido pelo cordão de isolamento da Polícia Militar, Chávez deixa o Palácio pela Assembléia, em meio à multidão. Milhares de pessoas acompanham o presidente, fazendo grande pressão contra as tentativas dos integrantes do Comitê de Apoio à Venezuela de impedir a sua entrada. O rompimento do cordão formado pelos civis é apenas o início de um tumulto que terminará com a utilização de spray de pimenta pela PM. A sensação de caos e descontrole começa a gerar ansiedade e preocupação.

Entre os representantes da imprensa, um pouco menos de entusiasmo e um pouco mais de frustração. Aglomerados em frente à porta de entrada para a coletiva, de menos de 50 centímetros de largura, os jornalistas se empurram, aguardando a (falta de) organização permitir que entrem. Muitos não conseguem, apesar de terem enviado o e-mail de confirmação exigido. A maior indignação é causada pela ordem de chamada dos meios que podiam adentrar o prédio: BBC de Londres, AF, Ansa, France Press, Figaro… os meios locais ou alternativos têm de manter sua insistência ou buscar outras formas de acesso ao presidente.

Aos poucos, jornalistas conseguem participar da coletiva no quinto andar, enquanto cidadãos entram no auditório, com capacidade para aproximadamente 600 pessoas. Ainda assim, muita gente permanece do lado de fora.

A coletiva

Por cerca de 40 minutos, Chavez fala aos jornalistas – apertados na sala – sobre a situação da Venezuela, a revolução popular, suas expectativas em relação ao país e à América Latina. O presidente espera que “não ocorra no Brasil e no Equador o mesmo que aconteceu em seu país”; ou seja, reação da oligarquia e da elite diante das tentativas dos presidentes eleitos de implementarem mudanças radicais nas estruturas sociais dessas nações. Neste campo, Chávez acredita que o desenrolar dos acontecimentos na Venezuela pode ser decisivo no futuro do Brasil.

Com o final da coletiva, os jornalistas são encaminhados para o teatro da assembléia legislativa, onde encontram os demais representantes da imprensa e os manifestantes que, por sorte ou insistência, conseguiram acesso à sala. Mais calmos e organizados que a multidão do lado de fora, aguardam pacientemente a chegada do presidente venezuelano.

Por volta das oito da noite começa então o Ato de Apoio promovido pelo recém criado Comitê de Solidariedade com a Venezuela. A primeira a falar é a deputada estadual Luciana Genro (PT-RS), que faz parte do Comitê organizador. Ela dá as boas vindas ao presidente Chávez e afirma que a faísca que eles acendiam ali se espalhará por toda a América Latina. Depois é a vez do prefeito de Porto Alegre, João Verle, dar as boas vindas em nome da cidade. Porém o que todos querem é ouvir Chávez falar.

O discurso

E ele falou. Seu discurso foi profundo e convicto, causando risos e emocionando. Seu carisma conquistou a todos, e deixou claro o porquê do apoio popular que ele mantém em seu país, apesar da forte campanha realizada pela mídia.

Falou sobre a Venezuela na História, sobre o que representava aquele momento. De como ele chegara até ali. Explicou suas origens, a fundação do partido. Foi interrompido inúmeras vezes por manifestações de apoio, que aclamavam a Revolução Bolivariana e rechaçavam a hegemonia norte americana e o neoliberalismo. Um dos gritos que mais ecoaram no auditório foi a versão de saudação a Lula transformada para: “Olê, Olê, Olê, Olê, Chavez, Chavez / Olê, Olê, Olê, Olê, Chavez, Chavez”. O presidente deixava que as manifestações acontecessem e voltava naturalmente ao ponto em que fora interrompido.

Chávez explicou o processo de desenvolvimento da nova constituição, através da formação de uma assembléia constituinte. Destacou os principais artigos, que instituíam a democracia participativa. O tema da proibição constitucional da privatização da PDVSA – empresa de petróleo estatal da Venezuela – provocou aplausos acalorados na platéia. Falou sobre o referendo que duas vezes consultou a opinião do povo sobre o que estava sendo feito. Quando tirou do bolso um pequeno exemplar resultante do processo e disse que muitos venezuelanos também a carregavam consigo, foi imitado por seus compatriotas presentes, que corroboraram sua afirmação.

Cristão, retirou do outro bolso um crucifixo que carrega consigo constantemente e que, acredita, o prepara para a batalha. O silêncio do público denunciou certo espanto com a declaração. Porém naquele ponto nem mesmo isso abalou a crença geral de que Chávez representa uma liderança não apenas venezuelana, mas latino-americana e socialista.

Falou muito, mas poucos ficaram cansados de ouvi-lo. Contou para a platéia atenta e incrédula um ardiloso plano das elites para matá-lo, uma vez que prendê-lo ou exilá-lo apenas aumentaria sua força. Raptado em um helicóptero, disse que se sentiu à beira da morte e que, nesse momento, lembrou-se de Che Guevara. Diz a lenda que antes de ser fuzilado, ele pediu um instante para se colocar de pé e afirmou: “Pronto, agora atira, para ver como se morre um homem.” O auditório foi ao delírio.

Falou sobre a mídia. Sobre como o convidaram para uma entrevista quando foi eleito, em 1998, depois de terem demonizado sua imagem durante toda a campanha eleitoral. Sobre como encontraram uma foto sua de quando era criança e o mantiveram no ar por mais de quatro horas. E depois entregaram-lhe uma lista de sugestões de pessoas que poderiam ser indicadas para os ministérios. Chávez não aceitou nenhuma. Hoje, diz, pode falar na TV venezuelana no máximo uma vez por ano. Repórteres são demitidos por entrevistá-lo. Escreve muito esporadicamente em alguns diários. Nesse contexto, até sua afirmação de que provavelmente terá de utilizar de censura para conter o ataque da imprensa foi recebida por aplausos entusiasmados.

Surpreendentemente ou não, Chávez em momento algum se apresentou como a figura personalista que a mídia muitas vezes o faz parecer. Ao contrário, falou de projetos políticos e sociais construídos nas bases, tanto no Brasil como na Venezuela, e tratou Lula e a si próprio apenas como representante destes projetos populares. “O triunfo não é meu. Sou conseqüência, não sou causa. Não é Chávez. É um povo que deciciu ser livre. Não adianta tentar tirar Chávez”, resumiu.

Por último, falou sobre a crise em dezembro, sobre o “Natal sem Chávez”. Disse que as elites estavam seguras de seu plano, fechando o porto, suspendendo a produção, alardeando greves que na verdade eram lockouts. Elogiou a coragem e a resistência dos venezuelanos e levou muitos às lágrimas. Afirmou que o que foi feito em seu país foi um crime contra a humanidade mas que, felizmente, as elites não resistiram ao povo e ao exército e, principalmente a um sentimento nacionalista que domina o país.

Chávez não perdeu oportunidades de “fazer graça” e provocar risos na platéia. Com retórica afiada, alternou entre contar histórias e proferir frases de efeito e um discurso ideológico explícito. “Não podemos optar por vencer ou morrer. Temos que vencer, para que viva a República”; apenas um exemplo de suas várias frases de impacto. De pé, proferiu discurso por cerca de duas horas, sem titubear.

Terminou com o mesmo vigor com que começou, sendo cercado por uma multidão de jornalistas e manifestantes. Lentamente ele se retirou e tudo se acalmou. E um sentimento revolucionário continuou no ar por muito tempo ainda.

Daniela Matielo, do Repórter Brasil, e Oona Castro, da Ciranda da Informação

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