A ação, realizada por uma equipe do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, com o apoio da Polícia Federal e da Procuradoria do Trabalho, foi motivada por denúncias de maus-tratos e cerceamento da liberdade. Algumas pessoas não eram pagas há anos, recebendo apenas arroz, feijão e alojamento – pequenas barracas de lona nas quais se amontoavam redes. A água que utilizavam era imprópria e servia ao mesmo tempo para consumo, banho e lavagem de roupa. Um perigo, haja visto que a pele ficava contaminada com o veneno usado no tratamento do pasto e não havia equipamentos adequados de proteção.
Dos 29 trabalhadores libertados na Ponta de Pedra, perto da Vila de Quatro Bocas, dois eram menores de idade. Um deles, de 13 anos, operava motosserra desde os nove, fazendo estacas de cercas com as árvores que o pai derrubava da floresta amazônica. Paulo (o nome do garoto foi trocado para manter o anonimato) é analfabeto. Em toda a sua vida freqüentou um banco escolar por apenas dez dias devido à violência causada pela ação de pistoleiros que tomaram conta do vilarejo mais próximo.
Passava os dias da semana morando em uma tenda de lona no meio da floresta – onde já passou muito frio, ensopado nos dias de trovoadas amazônicas – e nos finais de semana ajudava o pai na roça do seu sítio. Não sabia o dia do aniversário e nem o que se comemorava no 1º de maio, dia em que foi encontrado pela equipe do Ministério do Trabalho. Por dois anos, sua família não viu a cor do dinheiro, recebendo só comida da fazenda. “Trabalhar com serra é o jeito. Senão a gente morre de fome”.
A lei permite ao jovem apenas a condição de aprendiz a partir dos 14 anos, em uma escola destinada a esse fim. Segundo Marinalva Cardoso Dantas, chefe do grupo móvel de fiscalização, o trabalho que ele realizava só seria permitido a partir de 18 anos e, ainda assim, sem as condições insalubres a que estavam expostos os cerqueiros.
O proprietário da fazenda foi obrigado a pagar mais de R$ 80 mil em multas e direitos aos trabalhadores. Paulo recebeu R$ 7,2 mil, a maior quantia entre todos. Contando toda a sua família, inclusive um irmão deficiente, o total foi mais de R$ 20 mil.
Na Ponta da Serra, Francisco Moreira recebeu, de acordo com o grupo móvel, a maior indenização já paga a um único trabalhador resgatado. Pelos seus 19 anos como carpinteiro da fazenda sem direitos trabalhistas e com a audição comprometida por causa do serviço, recebeu R$ 40 mil, descontados os impostos. Aos 64 anos, já tinha passado da idade de se aposentar, mas tinha medo de parar de trabalhar por não ter a carteira de trabalho assinada. A Ponta da Serra foi obrigada a acertar R$ 293 mil em contas com os trabalhadores, pagamento que, como garantiu o proprietário, iria ser finalizado ainda hoje.
Em ambas as fazendas foram apreendidas armas, motosserras, além de “cadernos de cantina” (ver texto abaixo), nos quais se marcavam as dívidas dos trabalhadores.
Os direitos dos trabalhadores rurais freqüentemente são ignorados na chamada “fronteira agrícola”, onde a floresta amazônica perde espaço a cada dia para grandes fazendas de gado. Péssimos alojamentos e alimentação, atraso ou não pagamento de salários e até privação de liberdade sob ameaça de morte acontecem com freqüência na região. Homens se tornam escravos do dia para a noite.
Para impedir que isso aconteça, grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho realizam vistorias de surpresa, aplicando multas e resgatando pessoas quando são constatadas irregularidades. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o Pará é o estado com maior número de pessoas em condições subumanas de trabalho. Por sua vez, o Maranhão, o Piauí e a Bahia são locais com altos índices de aliciamento de trabalhadores.
Como alguém se torna um escravo
A escravidão de hoje é diferente daquela existente no século 19, mas tão perversa quanto. Devido à seca, à falta de terra para plantar e de incentivos dos governos para fixação do homem no campo, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca de sustento para a família. Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, ele vai para esses locais espontaneamente ou é aliciado por gatos (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão).
Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara.
Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por conta do transporte aumentará em um ritmo constante, uma vez que o material de trabalho pessoal, como botas, é comprado na "cantina" do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um "caderninho", e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Um par de chinelos pode custar o triplo. Além disso, é costume do gato não informar o montante, só anotar. Saber o valor correto não adiantaria muito, pois, na maioria das vezes, o local de trabalho fica em áreas isoladas e os peões não têm dinheiro. Cobra-se por alojamentos precários, sem condições de higiene.
No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Em outras situações, até os próprios gatos da fazenda são enganados pelo proprietário. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Um poço sem fundo.