Que acontece quando um índio vira padre e militar?

Despindo o país Os artigos desta coluna representam, necessariamente, a opinião de Repórter Brasil Por Roberta Mélega
Especial para a Repórter Brasil
 27/05/2003

Antes de mais nada, Henrique Ehkithó é um índio da Amazônia. Pertence à tribo Katapi , grupo que tem contato com os brancos desde o século 17 no alto rio Negro. Foi principalmente a presença de militares portugueses e padres jesuítas que influenciou os primeiros séculos de contato na região. Mas Henrique é uma personalidade única no Brasil: além de índio, ele é padre católico e tenente do exército.

Para se ter uma rápida noção da história do alto rio Negro, os antepassados de Henrique já foram escravizados, catequizados, dizimados por epidemias, explorados no comércio de borracha e no garimpo, e agora a moda é entrar para o exército brasileiro. Até movimentos messiânicos, de índios pregando ser Jesus, ocorreram na região, tal era a confusão de ideologias, interesses e referências culturais ali presentes.

Mas como foi possível um índio tornar-se padre e tenente? A história de Henrique ilustra bem o que aconteceu e está acontecendo na região: com cerca de dez anos ele foi para um colégio interno de padres no meio da floresta. A fim de continuar os estudos, mudou-se para a cidade de São Gabriel da Cachoeira, a 900 Km de Manaus. Motivo de orgulho na família, completou o 2º grau e começou a preparar-se para a ordenação de padre: foi estudar teologia em Manaus. Sendo alvo de vários preconceitos dos religiosos dali, resolveu intensificar os estudos para se destacar e ser respeitado. Conseguiu. Voltou para a sua aldeia como padre formado.

No entanto, sua posição não era muito confortável: todas as paróquias estavam repletas de religiosos, e vários não gostavam de Henrique. O bispo mandou-o então servir em uma pequena comunidade de fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Longe de familiares e de seus pares religiosos, o jovem Katapi entrou em uma depressão profunda. Aconselhado por outro padre, Henrique foi para Lorena, cidade paulista, em um recanto para religiosos. Depois de seis meses ali, voltou recuperado.

Sem ter muitas tarefas na Igreja, o padre Katapi recebeu uma nova incumbência: oferecer assessoria religiosa aos militares da região, na função de capelão. Para tanto, ele teve que se submeter a todos os procedimentos normais do exército: fazer curso de sobrevivência de selva, aprender a marchar, a prestar continência, cantar o hino nacional etc. Atualmente, ele ocupa o posto de tenente, recebe salário e deve apresentar-se diariamente ao quartel.

Henrique possui uma posição excepcional no exército: é o único índio brasileiro que ocupa um posto de oficial militar, segundo informações dos militares da região. Os outros índios que pertencem ao exército são majoritariamente soldados, em menor número cabos, e há alguns casos de sargentos.

O Exército virou uma febre na região: a cada ano, cerca de 180 jovens indígenas ingressam voluntariamente nos batalhões da Amazônia, e já representam quase 40% do efetivo de cabos e soldados dali. Entretanto, são poucos os índios integrantes do exército que estão estabilizados na sua posição, fazendo parte do efetivo permanente. A maioria é obrigada a se desligar com 9 anos de serviço, a fim de evitar a estabilidade. Isso não ocorre apenas com os índios, mas faz parte de uma política administrativa dos militares para enxugar os custos. Ou seja: restringir o número de funcionários militares estabilizados, que têm direito à aposentadoria pública, à saúde, ao pagamento de pensão à viúva, entre outros.

Com esta perspectiva de poder ficar no máximo 8 anos no batalhão, os índios deixam a instituição militar bastante desorientados: já viveram demais a vida de branco para voltar, como se nada tivesse acontecido, para suas aldeias. Na comunidade, são muito prestigiados por possuírem telhado de zinco em vez de palha (apesar do telhado de zinco esquentar e fazer um barulho ensurdecedor nas chuvas, ele é valorizado porque dura mais) e antena parabólica. Muitos oficiais chamam esses índios militares de os "novo-ricos" da fronteira. Recebendo a quantia inicial de um salário mínimo no primeiro ano, o soldado reengajado recebe um aumento substancioso a partir do segundo ano: cerca de R$ 600,00, variando de acordo com o tempo de serviço e o número de dependentes. Para a região, é um dinheiro considerável, que atrai a admiração da família e o interesse das mulheres. Sem muita noção de poupança nem projetos para o futuro, a maior parte dos soldados indígenas vai se acomodando, permanecendo no exército até quando é possível, sem maiores preocupações com o futuro.

O próprio Henrique é um oficial temporário. Se ele não fizer um exame específico para passar a ser permanente, ele terá que sair do exército em 2008. E até agora, decorridos mais de dois anos que ele ingressou no exército, não há perspectiva de efetivação. "Afinal, o que os brancos querem de mim?!" Henrique transita entre o mundo de seu pai na aldeia, o mundo do bispo e o mundo dos militares, sem conseguir estar em nenhum deles plenamente: "… mas também eu não fico numa situação de querer saber aonde eu pertenço: da minha cultura eu já saí, mas não pertenço à civilização branca. Eu tento equilibrar. Muitas vezes não dá, a gente sofre, é dolorido, tenta conciliar as duas coisas, num momento é indígena, no outro tá no meio dos brancos. Seria a melhor saída permanecer no meio do nosso povo, porque não dá para conviver diretamente com o pessoal das grandes cidades. Me sinto estranho muitas vezes na comunidade e no meio dos brancos (…) mas eu não posso abandonar nenhuma parte minha: se eu deixar de ser padre, militar ou índio, eu me sentiria desonesto comigo mesmo!"

O nome "Henrique Ehkithó" e a etnia "Katapi" são fictícios a fim de ocultar a identidade dele, informante, que vive na Amazônia nos dias de hoje e poderia ter sérios problemas com a Igreja e o exército por causa deste trabalho.

Roberta Mélega é antropóloga e jornalista. Realiza pesquisas nas regiões do Alto Xingu e de São Gabriel da Cachoeira (AM).

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