O botequim, o samba e o futebol são velhos conhecidos. Os últimos tempos, porém, têm marcado a afirmação de uma nova instituição nacional: o vestibular. Início do ano é o momento em que a mídia mais gosta de tratar do assunto. Surgem pequenos gênios, fórmulas mágicas, o 1º colocado que (incrível!) namora e vai ao cinema, o que estuda e nunca passa, o que nunca estuda e passa. Poderia ser um bom momento para entrar mais a fundo nesse debate, perceber as nuances que o envolvem. Nada disso. Surgido para testar a capacidade dos pretendentes a uma vaga na universidade e transformado em mecanismo de exclusão, a trajetória deste exame no Brasil reflete o tratamento recebido pela universidade pública nas últimas décadas. Pois vejamos.
Até o final da década de 60, o vestibular era realizado para que se testasse a capacidade do candidato em acompanhar o seu curso de escolha. Para isso, determinava-se uma nota mínima que deveria ser alcançada. Mas já naquela época as instituições públicas não tinham vagas para todos, o que determinou a existência da categoria “excedente”. Este era o indivíduo que havia alcançado a nota mínima mas que não entrava na universidade porque não havia espaço. Tinha capacidade, mas não tinha vaga.
Assim, ficava explícito o problema da falta de vagas. Os excedentes eram uma panela de pressão social, pois obrigavam o Estado a pensar em soluções para o problema. A resposta encontrada no final da década de 60 não poderia ser mais simplista: acabar com a figura do excedente. A partir dali não existiriam mais aprovados, excedentes e reprovados, mas simplesmente aprovados e reprovados. Se não há vagas, está reprovado, independentemente da nota.
Por trás de uma simples alteração semântica estava a modificação de todo o significado do vestibular, que era transformado oficialmente em um mecanismo de exclusão. O Estado assim lavava as suas mãos. A responsabilidade de não estar na universidade passa a não ser mais de quem não proporciona vagas para os que têm condições, mas dos fracassados que não conseguem passar no vestibular. E toda a lógica se inverteu.
Questão de mérito
Essa mudança significou também a definitiva afirmação da meritocracia como critério para a entrada nas universidades. Quem sabe mais, tem mais direito. Essa lógica permeia boa parte das relações sociais e de poder, não só na esfera acadêmica, mas em toda a vida. E é difícil nos desvencilharmos dela. Basta pensar na pressão que existe para a entrada da faculdade. São raros os vestibulandos que não perdem cabelos, noites de sono e mesadas por causa da fatídica prova. E a grande maioria deles passa pelo fracasso do não ingresso. Ao invés disso mobilizar a pressão pela falta de vagas, gera sessões de terapia e o fortalecimento da indústria dos cursinhos, naquela perspectiva de “ano que vem você tenta de novo e vai conseguir”.
A arapuca tem pego muito mais do que pais conformados. A proposta dos cursinhos populares – que podem ser paliativos interessantes se contextualizados – tem servido mais para desencargo de consciência dos que o oferecem do que como solução real. Continuam repetindo a mesma lógica meritocrática. O problema não é a falta de vagas, mas preparar melhor os candidatos, para competirem de igual para igual com os egressos do 2º grau particular. E há para isso exemplos absurdos. Na Universidade de Brasília (UnB), o curso de Jornalismo tem apenas 18 vagas. Nove delas são reservadas para aqueles que conseguem boas notas no 2º grau. Para o vestibular sobram as outras nove. Como manter a idéia de que “faltou estudo” ao reprovado?
As conseqüências desse sistema são incontáveis. Uma das mais claras é o corte social que sofrem alguns cursos tradicionais, como Medicina e Direito, extremamente elitizados nas instituições públicas. Ora, se mantivermos o funil apertado e a lógica meritocrática é mesmo essa a tendência. Mas a elitização é tratada como um problema em si, de surgimento espontâneo, que tem como culpados os próprios beneficiados. Quando o que acontece é o inverso. Não se percebe que ela é fruto da mesma lógica que a questiona. Ainda os que vêem mais longe, que enxergam no fraco segundo grau público o problema da elitização, reproduzem a idéia de que deve haver uma “competição mais justa”. O diagnóstico é correto, mas limitado, o que faz o tratamento só interferir nos sintomas.
Inútil passagem
O último exemplo mais evidente de que a discussão anda mesmo tortuosa foi a aprovação de um catador de papel analfabeto para uma faculdade carioca. O questionamento foi feito sobre a qualidade da ensino da escola, quando não era isso que estava em jogo. A maior evidência dessa história é que o vestibular ganhou vida própria. Ali o teste não servia nem para distinguir quem tinha os conteúdos mínimos nem para “selecionar os melhores”. Acontecia simplesmente pela importância que ganhou como rito. O vestibular em si não servia para nada.
Mas nem por isso o que aconteceu foi um problema. Primeiramente, não havia possibilidade de o analfabeto fazer sua inscrição na faculdade, já que não tinha certificado de conclusão de segundo grau. Ainda assim, se a faculdade quer aprovar pessoas sem “grandes saberes” o problema é só dela. Poderia significar a disposição da instituição em aceitar alunos com dificuldades e permiti-los cursar o ensino superior. Não é isso que atesta qualidade de ensino – nem a falta dela. Problema haveria se o indivíduo saísse da faculdade sem os conhecimentos ali ministrados. E isso é possível garantir que acontece em diversos cursos “de ponta”, sem precisar procurar nas escolas sabidamente ruins.
A reação governamental mais uma vez não poderia ser pior. Obriga-se a prova de redação como critério de seleção. Muda o que na história? Evita-se o quê? Garante-se o quê? De 94 a 99 houve aumento de 70% no número de cursos privados no país. Só em três meses de 2001 foram autorizados 241 novos cursos. Difícil crer que foi uma expansão controlada e com qualidade preservada. As universidade públicas tiveram suas verbas reduzidas pelo MEC e mesmo assim aumentaram o número de ingressantes. Mas continuamos a ter diversos exemplos parecidos com as nove vagas de Jornalismo da UnB. E nisso não se mexe.
Democratização do acesso ao ensino superior não é um debate que se inicia do vestibular, mas sim da luta pelo seu fim. Fazer qualquer discussão de acesso – inclusive cotas – sem debater a própria existência do exame e a meritocracia que o sustenta é abandonar a raiz do problema. E aceitar que o foco não seja a falta de vagas, mas a alocação das poucas restantes. Oxalá possamos em breve considerar um bom sinal a entrada de um catador de papel na universidade. E que isso possa ocorrer em uma universidade pública.
João Brant é jornalista, radialista e ex-coordenador geral da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social