Sem água e sem terra

Construção de hidrelétrica no Vale do Jequitinhonha (MG) expulsará moradores de 22 comunidades ribeirinhas. A obra, com orçamento estipulado de R$ 220 milhões, visa apenas ao fornecimento de energia elétrica e não ao abastecimento de água, a maior carência da região
Por Paula Bes
Fotos: Leonardo Sakamoto
 01/08/2003
Criança de comunidade no Vale do Jequitinhonha.

A construção da Usina Hidrelétrica de Murta, no Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, irá deslocar famílias de 22 comunidades diferentes, quebrando antigas redes de solidariedade baseadas nas relações de parentesco e vizinhança. É o que revela o sumário de impactos ambientais elaborado pelo Grupo de Estudos Sobre Temáticas Ambientais (Gesta) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Com capacidade instalada prevista de 120MW, a usina é um empreendimento do Consórcio Murta Energética S.A., composto pelas empresas Arcadis Logos Energia, EPTISA e EIT. Em outubro de 1998, o processo de licenciamento da barragem teve entrada na Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais (Feam). Desde então, aguarda-se a expedição da licença prévia da obra, que é concedida pelo Conselho de Proteção Ambiental (Copam) do estado. Geralmente, as decisões desse órgão são baseadas em subsídios fornecidos pela Feam a partir de Relatórios de Impacto Ambiental (Rima) apresentados pelos empreendedores.

A obra tem um orçamento estipulado de R$ 220 milhões, e a data de início da sua operação está prevista para fevereiro de 2006. Visa apenas ao fornecimento de energia elétrica e não ao abastecimento de água – que é a maior carência da região do Médio Jequitinhonha, onde será implantada.

O relatório de impacto ambiental do consórcio contabiliza 419 famílias a serem incluídas nos Programas de Reassentamento e Negociação, enquanto a Comissão de Atingidos, composta por representantes da população, fala no deslocamento compulsivo de aproximadamente 926 famílias de suas terras para viabilizar a inundação de 20,6 km². As pessoas atingidas pertenceriam a comunidades rurais dos municípios de Coronel Murta, Berilo, Grão-Mogol, Virgem da Lapa e Josenópolis.

Estudo polêmico

Segundo Andréa Zhouri, professora do departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG e integrante do Gesta, “os estudos feitos pela Murta Energética S.A. são muito falhos e incompletos”. De acordo com ela, a empresa não considerou o impacto acumulado de todos os empreendimentos hidrelétricos do Vale do Jequitinhonha, nem a escassez de terras cultiváveis disponíveis na região para reassentar a população atingida.

Richarles Caetano Rios, advogado da organização não-governamental Campo Vale, que dá assistência à população do Vale, também não acredita que o projeto trará benefícios. “O relatório do consórcio não provou a viabilidade sócio-ambiental do empreendimento”, avalia o advogado. Ele ressalta que seriam inundados principalmente fundos de vales – justamente as terras mais férteis da região. Levando-se em conta que essas comunidades ribeirinhas têm como principais atividades econômicas a lavoura e o garimpo artesanal, o impacto sócio-econômico, para não citar o ambiental, seria gravíssimo. Rios acredita que a população já pode estar sendo afetada pela hidrelétrica, uma vez que, quando uma área corre o risco de ser inundada, investimentos, como novas escolas, deixam de ser feitos.

O presidente da Arcadis Logos Energia, José da Costa, afirma que os primeiros questionamentos feitos pela Feam já foram respondidos e que as exigências adicionais de complementação das informações dos estudos, entregues em maio, seriam realizadas. Garante que os moradores serão realocados para “terras tão férteis como as que serão inundadas”, onde encontrarão uma condição de vida semelhante ou superior à que possuem atualmente. Porém, não há maiores esclarecimentos, de acordo com Rios, sobre como seriam feitas a realocação e a indenização da população local.

Barragem seca

Mas o que o consórcio e o Governo parecem realmente ignorar é o já avançado processo de assoreamento do Jequitinhonha e a instabilidade de chuvas da região. Mesmo sem a implantação da barragem, estudos apontam que há risco da vazão do rio ser permanentemente diminuída. Com a hidrelétrica, a situação se agravaria ainda mais rapidamente, já que a vazão de água dos rios Jequitinhonha e Salinas, entre outros tributários de intenso aproveitamento por parte dos ribeirinhos, ficaria ainda mais reduzida.

Entre os moradores que temem acabar prejudicados está o técnico agrônomo Edney José Oliveira Pêgo. Ele representa a quarta geração de sua família que está na região e sempre trabalhou em lavoura e garimpo artesanal. “O pessoal aqui já tem uma cultura nesses trabalhos”, afirma. Edney é membro da Comissão de Atingidos por Murta e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Acredita que será difícil encontrar uma área semelhante àquela onde os moradores vivem atualmente e garante que 98% da população da região é contra o projeto. “A maioria das famílias é de semi-analfabetos, mas mesmo assim discordam de questões absurdas dos estudos da Murta Energética.”

De acordo com ele, em novembro de 2002, durante uma reunião entre moradores e representantes das empresas, alguns engenheiros do consórcio disseram que os atingidos não deveriam tentar tirar proveito da barragem para mudar de vida. Após a declaração, os moradores, ainda mais revoltados, teriam forçado engenheiros que faziam estudos topográficos na região a parar o trabalho e deixar o local.

Costa diz desconhecer o acontecimento e acredita que a afirmação atribuída aos engenheiros não é verdadeira, uma vez que não se enquadraria com o posicionamento da empresa. “O que o consórcio quer é que as condições globais de vida no local melhorem”, justifica. Segundo ele, isso seria possível a partir da instalação de um sistema elétrico eficiente, que viabilizaria projetos de irrigação. No curto prazo, geraria de quatro a cinco mil empregos diretos e indiretos na região. Por isso mesmo, acredita que os moradores desejam a concretização do empreendimento. “A grande maioria dos moradores nos apóiam, porque sentem que é uma oportunidade muito grande para eles.”

Oportunidade?

Mas o principal benefício, segundo Costa, estaria na energia gerada pela usina, que possibilitaria a instalação de indústrias nesse trecho do Vale, levando empregos e desenvolvimento econômico para a população. Porém, até o momento, não há nenhuma implantação de indústria prevista para o local, mesmo com a concretizaç&a
tilde;o da barragem.
Rios adverte que não há garantias de que a energia gerada tenha como destino o Vale do Jequitinhonha, já que a eletricidade de Murta será integrada à rede de distribuição da concessionária local, que é a Cemig. “O que garante o abastecimento de uma zona rural qualquer é a existência de redes de distribuição, e não a proximidade de uma usina hidrelétrica. A Murta Energética não tem compromissos com a eletrificação rural, mas apenas com a geração de energia. É uma empresa geradora, e só.” Uma vez integrada à rede da Cemig, é mais provável que a eletricidade seja comprada por quem se dispuser a pagar mais caro por ela. Claramente, não serão os ribeirinhos.

Opções

“A região poderia ter alternativas técnicas”, destaca Andréa Zhouri, numa referência a outras formas de produção de energia que são absolutamente viáveis no Médio Jequitinhonha e causariam impactos muito menores do que a implantação de hidrelétricas. É o caso do aproveitamento elétrico das energias solar, eólica e de transformação da biomassa. Segundo o sumário do Gesta, esta última opção poderia utilizar como combustível os resíduos provenientes da madeira das plantações de eucalipto existentes na região.

Em 15 de outubro de 2002, foi realizada no povoado de Barra de Salinas uma audiência pública (solicitada em janeiro de 1999), que contou com a participação de cerca de1500 pessoas. Na audiência, tornou-se clara a posição contrária das comunidades locais quanto à implantação da barragem. Hoje, o processo aguarda o parecer favorável ou não da Feam e a votação do Copam. Enquanto os investidores criticam a lentidão dos órgãos ambientais, o morador Edney tem esperança neles. Acredita que, se a decisão do Copam for baseada nos estudos da Feam, o empreendimento não se realizará.

Agosto de 2003

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