Candelária, 1993

 01/10/2003

Mais de 50 crianças e adolescentes de rua costumavam dormir na praça da Igreja da Candelária, região central do Rio de Janeiro. Na madrugada de 23 de julho de 1993, policiais militares, em horário de folga, atiraram contra nove deles, com idades entre 11 e 20 anos – dos atingidos, apenas um sobreviveu. Durante as investigações, levantaram-se diferentes razões para o crime. De uma pedra atirada contra uma viatura da polícia por um dos garotos até o não pagamento de propina aos PMs coniventes com o tráfico de cocaína.

Quatro pessoas foram acusadas após a chacina: o ex-PM Marcus Vinícius Emmanuel, os PMs Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes de França. Em 1996, Nelson Cunha confessou sua participação no crime e acusou seus colegas policiais Marco Aurélio Alcântara, Arlindo Lisboa Afonso Júnior e Maurício da Conceição, assassinado em 1994.

Desses, apenas três estão presos: Emmanuel, Alcântara e Cunha, que cumprem penas de 300, 204 e 18 anos de reclusão, respectivamente. Arlindo foi condenado a dois anos porque uma das armas usadas na chacina foi encontrada em seu poder. Cláudio, Jurandir e Cortes foram inocentados com o depoimento de Cunha e absolvidos a pedido do Ministério Público. Os dois primeiros foram indenizados pelo Estado por ficarem presos injustamente por quase três anos.

Na época, os meninos afirmaram que oito policiais participaram da ação, e Wagner dos Santos, o único sobrevivente, foi contundente ao reconhecer Cortes como um de seus algozes. Hoje, a vítima mora na Suíça, após ter sofrido um atentado e recebido constantes ameaças de morte. "Certamente havia mais policiais envolvidos, mas durante as investigações não foi possível identificá-los", afirma Riscala Abdenur, atual promotor de justiça responsável pelo processo. Houve ainda o caso do PM Carlos Jorge Liaffa, também reconhecido por Wagner, mas que estranhamente não chegou a ser indiciado, mesmo com a comprovação da perícia de que uma das balas que atingiram Wagner era do revólver do padrasto do policial.

"Esse processo ficou aquém do que esperávamos, mas são pouquíssimos os casos em que o culpado é condenado", pondera James Cavallaro, diretor da organização não-governamental (ONG) Centro de Justiça Global. Para ele, não é tradição da polícia investigar quando se mata um marginal ou um menino de rua. As camadas privilegiadas da sociedade compactuam com isso, pois elas "entendem que polícia eficiente é a violenta", explica o jurista e professor titular da Faculdade de Direito da USP Dalmo Dallari. "Em termos ideais, poderia ter havido mais condenações, mas esse resultado já é uma vitória", diz ele.

A repercussão internacional decorrente da exploração do caso na mídia e do trabalho das ONGs ajudou na condenação dos policiais. "Nos primeiros julgamentos, o tribunal ficava lotado. Para entrar era preciso pegar senha", lembra Cavallaro. Mas essa pressão também trouxe problemas. Dallari acredita que a mídia prejudicou o andamento do processo por dar a ele um sentido de escândalo. "Isso serviu de pretexto para não haver aprofundamento na investigação", comenta o jurista. Yvonne Bezerra de Mello, artista plástica que prestava assistência social às crianças, considera que houve pressa em apontar os culpados e julgá-los. "Por isso, alguns foram injustiçados e outros saíram impunes."

O Estado, porém, não teve competência para garantir uma vida melhor ao restante dos jovens que dormiam sob as luzes da Igreja da Candelária. A chacina não foi interrompida nestes últimos dez anos – a diferença é que ela passou a ser lenta e silenciosa, para não chamar a atenção. Segundo Yvonne, das crianças e dos adolescentes que compartilhavam daquela praça, 39 morreram assassinados ou vítimas da Aids nesse período. Outros simplesmente desapareceram, e há os que, excluídos das políticas públicas, continuam servindo ao tráfico de drogas ou ganhando a vida com a prostituição. Sandro, o seqüestrador morto pela polícia no caso do ônibus 174, caso que inspirou um filme, era um dos sobreviventes da Candelária.

A memória da sociedade civil durou menos que a vida dos que foram assassinados há uma década. No mais recente julgamento de Marcus Vinícius Emmanuel, em fevereiro deste ano, o promotor Abdenur conta que não havia membro de nenhuma ONG presente, e a mídia pouco se pronunciou. O tribunal estava vazio.

Voltar para a matéria Dez anos de impunidade

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