Trabalhadores escravos são libertados na Bahia

Grupo de 45 trabalhadores foi libertado durante fiscalização do Ministério do Trabalho em São Desidério, BA. Com eles, são mais de 3.300 libertações nos nove primeiros meses de 2003, número 50% superior ao total do ano passado - mas 25 mil pessoas ainda vivem como escravas no Brasil.
Bia Barbosa
 13/10/2003

Um dos grupos de fiscalização móvel do Ministério do Trabalho libertou nesta segunda-feira (13) 45 trabalhadores que viviam em condições de escravidão na Bahia. “Empregados” da Fazenda Laranjeiras, localizada no município de São Desidério, a 887 quilômetros de Salvador, os trabalhadores não recebiam pelos serviços prestados e foram encontrados em condições degradantes.

Segundo Valderez Rodrigues, da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), que coordenou a ação de libertação, havia pessoas com menos de 16 anos no grupo. “O número de crianças bem pequenas, que acompanhavam os pais, também chamou nossa atenção”, disse Valderez. A negociação com o proprietário da Fazenda Laranjeiras ainda não foi concluída mas, conforme informou a SIT, ele não se opôs a regularizar a situação dos trabalhadores.

Para a representante da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Raquel Ferreira Dodge, o ano de 2003 será lembrado como um marco no combate ao trabalho escravo no Brasil, devido ao crescimento do número de libertações ocorridas desde o início do ano no país. Comparado a todo o ano passado, o total, somente nos nove primeiros meses de 2003, já é 50% superior. Em 2002, foram libertados no Brasil 2.196 trabalhadores que viviam em condições análogas ao trabalho escravo. Este ano, já foram libertas 3.277 pessoas, sendo que as libertações mais recentes ainda não foram computadas.

Os dados, divulgados esta semana pela Secretaria de Inspeção do Trabalho durante uma audiência pública na Câmara Federal, refletem uma mudança na política pública de combate ao trabalho escravo do país. O lançamento em março do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo demonstrou um maior comprometimento do governo com a solução do problema. “No nosso entendimento o crime capitulado no art. 149 do Código Penal (submissão de alguém à condição análoga à de escravo), além das dimensões trabalhista e penal, constitui-se em verdadeiro atentado aos direitos humanos. Portanto, não devem o governo e as instituições estatais limitarem-se ao seu mero combate. É preciso extirpar tais práticas”, afirma Raquel Moreira Teixeira, da Secretaria de Inspeção do Trabalho.

O secretário dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, chegou a afirmar, por exemplo, que o Brasil acabará com o trabalho escravo até 2006. Segundo Raquel, tem havido um aprofundamento das ações fiscais e um aumento na quantidade e qualidade das mesmas. E o resultado claro disso é o incremento nos números de trabalhadores até o momento libertados.

Mas, se por um lado os resultados são positivos, por outro ainda há muitos desafios pela frente. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) considera que há três cativos para cada libertado, de acordo com dados obtidos nas suas ações. Já a Comissão Pastoral da Terra (CPT) estima que 25 mil pessoas estejam hoje em situação de escravidão no país. Em relatório sobre a violência no campo em 2003 divulgado nesta sexta-feira (10), a CPT diz que recebeu mais de 200 denúncias de trabalho escravo este ano, envolvendo 7.500 trabalhadores. Metade dessas pessoas já teriam sido resgatadas, mas o déficit continua muito grande.

Os Estados campeões continuam sendo Rondônia, Pará e Bahia, mas o que impressiona é o crescimento das denúncias no Rio de Janeiro e Espírito Santo. No ano passado, no mesmo período, as denúncias recebidas pela CPT totalizavam 4.500 trabalhadores. “Apesar do bom desempenho do governo ser reconfortante, a situação continua preocupante”, diz frei Xavier Plassat, da coordenação nacional da campanha contra o trabalho escravo da CPT.

A principal hipótese para explicar o crescimento das denúncias é o anúncio do plano pelo governo e o incremento do trabalho dos grupos móveis de fiscalização. O governo nega, por exemplo, que o número de trabalhadores escravos esteja crescendo no país. “O que existe hoje é uma maior pressão dos órgãos repressores. Antes não havia uma política tão incrementada”, afirma Marcelo Campos, assessor da Secretaria de Inspeção do Trabalho. “Isso faz com que a sociedade fique mais confiante e denuncie mais. Encontrar escravos no Brasil não é uma questão de existir ou não, mas de procurar”, diz Campos.

Barreiras Para as organizações da sociedade civil que combatem o trabalho escravo no Brasil, o plano do governo federal expressa uma vontade de acabar com este problema e de repartir a responsabilidade do Estado com a Justiça e a própria sociedade. Mas os obstáculos são muitos. Faltam recursos para os grupos móveis, que poderiam trabalhar melhor se tivessem maior apoio operacional e infra-estrutura adequada.

Um das 76 medidas de combate à prática previstas no Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo seria a atuação permanente no Grupo de Fiscalização Móvel de seis equipes no Pará, duas no Maranhão, duas no Mato Grosso e duas equipes para os demais Estados. Até o momento, por falta de recursos, são apenas cinco equipes – em vez de 12 – para atender a todo o território nacional. “Temos conseguido atender a todas as denúncias, mas trabalharíamos muito mais rápido se houvesse mais equipes”, diz Campos.

O maior entrave, no entanto, é a legislação. A própria falta de definição sobre o que seria hoje "trabalho escravo" tem dificultado a aplicação de penas e garantido a impunidade. O artigo 149 do Código Penal estabelece pena de dois a oito anos de prisão para quem reduzir alguém à condição análoga à de escravo, mas não especifica o que seria esta "condição análoga à de escravo", deixando a interpretação aberta a cada juiz e fazendo com que pouquíssimas pessoas tenham sido condenadas por utilizar trabalho escravo no país.

O dono da fazenda Roda Velha Agroindustrial, em São Desidério, na Bahia, onde foi feita a maior libertação de escravos em todo o país, com o resgate de 800 trabalhadores, pode sair impune. O mesmo vale para Constantino Oliveira, dono da fazenda Tabuleiro, onde uma equipe do Ministério do Trabalho e Emprego encontrou 200 pessoas submetidas a condições de escravidão.

Só no papel

O plano nacional prevê, por exemplo, a aprovação de diversos projetos de lei e de emenda constitucional que acelerariam o combate ao trabalho escravo, mas que continuam no papel. Entre eles, o PL nº 2.022/1996, de autoria do deputado Eduardo Jorge, que dispõe sobre as “vedações à formalização de contratos com órgãos e entidades da administração pública e &a
grave; participação em licitações por eles promovidas às empresas que, direta ou indiretamente, utilizem trabalho escravo na produção de bens e serviços”.

Outro projeto, que altera o artigo 243 da Constituição Federal e dispõe sobre a expropriação de terras onde forem encontrados trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo, já foi aprovado pelo Senado. O deputado Paulo Rocha, um dos autores deste projeto, garante que ele será votado este mês na Câmara Federal. A mudança estabelece que as áreas sejam destinadas à reforma agrária, com prioridade para quem já trabalhava no local, sem qualquer indenização ao proprietário.

Para a Comissão Pastoral da Terra, no entanto, a mudança mais importante a ser feita na legislação é a transferência para a esfera federal do julgamento dos crimes contra os direitos humanos, de responsabilidade da Justiça comum. “Nos tribunais estaduais, os juízes estão disponíveis às pressões e ameaças locais, o que acaba levando ao engavetamento dos casos”, explica frei Xavier. “Os congressistas precisam se conscientizar da urgência em criar os instrumentos necessários para acabar com a escravidão no país”, diz.

Segundo a CPT, a Justiça do Trabalho avançou em alguns pontos, como o bloqueio das contas e a penhora de fazendas que utilizam o trabalho escravo. “Mas essas ações não encontram valores dissuasivos em relação ao tamanho do delinqüente. Temos sinais interessantes de mudança pela frente, mas a realidade continua preocupante”, completa frei Xavier.

Bia Barbosa é repórter da Agência Carta Maior

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