Governo liberta 22 escravos em fazenda no MT

Em ação iniciada no dia 20 de novembro, foram libertados 22 trabalhadores que estavam em situação de escravidão na fazenda Entre Rios – de plantação de arroz e soja – a 125 quilômetros do município de Sinop, norte do Estado de Mato Grosso. Os trabalhadores foram transferidos para a cidade e aguardam o ressarcimento de seus direitos trabalhistas. Um “gato” (contratador de mão-de-obra para a fazenda), que estava armado, foi preso em flagrante pela Polícia Federal. Uma empresa de prestação de serviços era usada como fachada para contratar as pessoas e maquiar a situação trabalhista.
Por Repórter Brasil
 22/11/2003

Em ação iniciada no dia 20 de novembro, foram libertados 22 trabalhadores que estavam em situação de escravidão na fazenda Entre Rios – de plantação de arroz e soja – a 125 quilômetros do município de Sinop, norte do Estado de Mato Grosso. Os trabalhadores foram transferidos para a cidade e aguardam o ressarcimento de seus direitos trabalhistas. Um “gato” (contratador de mão-de-obra para a fazenda), que estava armado, foi preso em flagrante pela Polícia Federal. Uma empresa de prestação de serviços era usada como fachada para contratar as pessoas e maquiar a situação trabalhista.

A operação, realizada por uma equipe do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), com o apoio da Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho, foi motivada por denúncias de maus-tratos e cerceamento da liberdade. De acordo com Valderez Monte, coordenadora do grupo, algumas pessoas não eram pagas há meses, recebendo apenas comida e alojamento – pequenas barracas de lona nas quais se amontoavam em suas redes famílias inteiras. A água que utilizavam era imprópria e servia ao mesmo tempo para consumo, banho e lavagem de roupa. Inicialmente, 40 pessoas haviam sido contratadas para a empreitada. Mas como não suportavam as duras condições impostas, muitos fugiram antes de a fiscalização chegar.

O proprietário, Manoel Barbosa Lopes Júnior, do grupo Rota-Oeste Veículos, representante da Scania no estado, tentou levar os peões de volta para a Entre Rios, afirmando que precisava dessa mão-de-obra para o serviço. Porém, apesar das alternativas oferecidas de contratação por ele, os trabalhadores negaram-se a retornar. Teriam medo de Clóvis, gerente da fazenda, de seu comportamento violento e das constantes ameaças de espancamento. Segundo os auditores do MTE, os trabalhadores também eram constantemente ameaçados pelos dois gatos da fazenda que, assim como o gerente, andavam armados. De acordo com Valderez, os trabalhadores sempre ouviam dizer do gerente que “maranhense tem que apanhar mesmo de facão”.

Depois que motosserras tombam a floresta na região, levas de trabalhadores percorrem a área desmatada para arrancar tocos de árvores e raízes, limpando o terreno para receber a soja ou o arroz. Na Entre Rios, uma grávida de quatro meses foi encontrada nessa tarefa. Como a fronteira agrícola avança diariamente no norte de Mato Grosso, o número de pessoas utilizadas no serviço é grande, principalmente nordestinos – fugitivos da falta de emprego e de terra. A maior parte dos libertados são do Maranhão, trazidos de lá por Chiquinho, o gato preso na ação.

Para inglês ver

De acordo com Valderez, uma empresa de prestação de serviços que respondia pela contratação para o serviço na fazenda estava em nome dos dois gatos. A “JS Prestadora de Serviços” funcionava como fachada para encobrir o desrespeito aos direitos trabalhistas. Para poderem entrar no caminhão, que os levaria ao sonhado emprego, os peões tinham que entregar as suas Carteira de Trabalho. Quem não entregasse, não viajava. Foram encontradas carteiras assinadas com data posterior à real e salário abaixo do que foi acordado.

O proprietário da fazenda está negociando com a equipe do grupo móvel, que aguarda o ressarcimento dos trabalhadores.

Os direitos dos trabalhadores rurais freqüentemente são ignorados na chamada “fronteira agrícola”, onde a floresta amazônica perde espaço a cada dia para grandes fazendas de gado. Péssimos alojamentos e alimentação, atraso ou não pagamento de salários e até privação de liberdade sob ameaça de morte acontecem com freqüência na região. Homens se tornam escravos do dia para a noite.

Para impedir que isso aconteça, grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho realizam vistorias de surpresa, aplicando multas e resgatando pessoas quando são constatadas irregularidades. De acordo com levantamento realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Pará e Mato Grosso são estados com maior incidência de utilização de trabalho escravo. Piauí, Tocantins e Maranhão são grandes fornecedores de mão-de-obra. Neste ano, a Bahia entrou no rol dos que mais utilizam trabalho escravo, com libertações de mais de 800 pessoas de uma só vez. A fiscalização do Ministério do Trabalho já libertou mais de 4 mil pessoas em 2003.

Como alguém se torna um escravo

A escravidão de hoje é diferente daquela existente no século 19, mas tão perversa quanto. Devido à seca, à falta de terra para plantar e de incentivos dos governos para fixação do homem no campo, ao desemprego nas pequenas cidades do interior ou a tudo isso junto, o trabalhador acaba não vendo outra saída senão deixar sua casa em busca de sustento para a família. Ao ouvir rumores de que existe serviço farto em fazendas, ele vai para esses locais espontaneamente ou é aliciado por gatos (contratadores de mão-de-obra que fazem a ponte entre o empregador e o peão). Estes, muitas vezes, vêm buscá-lo de ônibus ou caminhão – o velho pau-de-arara.

Já na chegada, o peão vê que a realidade é bem diferente. A dívida que tem por conta do transporte aumentará em um ritmo constante, uma vez que o material de trabalho pessoal, como botas, é comprado na “cantina” do próprio gato, do dono da fazenda ou de alguém indicado por eles. Os gastos com refeições, remédios, pilhas ou cigarros vão para um “caderninho”, e o que é cobrado por um produto dificilmente será o seu preço real. Um par de chinelos pode custar o triplo. Além disso, é costume do gato não informar o montante, só anotar. Saber o valor correto não adiantaria muito, pois, na maioria das vezes, o local de trabalho fica em áreas isoladas e os peões não têm dinheiro. Cobra-se por alojamentos precários, sem condições de higiene.

No dia do pagamento, a dívida do trabalhador é maior do que o total que ele teria a receber – isso considerando que o acordo verbal feito com o gato é quebrado, tendo o peão direito a um valor bem menor que o combinado. Em outras situações, até os próprios gatos da fazenda são enganados pelo proprietário. Ao final, quem trabalhou meses sem receber nada acaba devedor do gato e do dono da fazenda, e tem de continuar suando para poder quitar a dívida. Um poço sem fundo.

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM