Trabalho escravo é tema de oficina no Fórum Social

Belo Horizonte - “Fui vendido pela primeira vez por uma dona de hotel em Goiânia, no dia 5 de maio de 1971. Por três meses, realizei trabalho forçado em uma fazenda, onde até água me era negada. Saí sem receber nada. Quando procurei o delegado de polícia para saber o que fazer para ter meus direitos ressarcidos, ele me disse que, se eu havia comido e bebido, não podia querer mais nada. A mesma resposta foi dada para outros 83 trabalhadores que passaram pelo mesmo que eu. Só quem passou por isso sabe a dificuldade que é continuar a vida depois.”
Por Bia Barbosa
 08/11/2003

Belo Horizonte – “Fui vendido pela primeira vez por uma dona de hotel em Goiânia, no dia 5 de maio de 1971. Por três meses, realizei trabalho forçado em uma fazenda, onde até água me era negada. Saí sem receber nada. Quando procurei o delegado de polícia para saber o que fazer para ter meus direitos ressarcidos, ele me disse que, se eu havia comido e bebido, não podia querer mais nada. A mesma resposta foi dada para outros 83 trabalhadores que passaram pelo mesmo que eu. Só quem passou por isso sabe a dificuldade que é continuar a vida depois.”

O relato emocionado de Guilherme Pedro Neto, trabalhador rural de Goiânia e hoje membro da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), foi feito durante o seminário pela erradicação do trabalho escravo no país, uma das atividades desta sexta-feira (7) do Fórum Social Brasileiro (FSB).

Proposto pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e por diversas entidades ligadas aos direitos humanos, o debate foi ainda o palco do anúncio de uma condenação histórica para Justiça Brasileira. A vara trabalhista de Barra do Corda, no interior do Maranhão, condenou o deputado Inocêncio Oliveira a pagar uma indenização de R$ 530 mil por danos morais coletivos a trabalhadores que viviam em condições análogas à de escravos em sua fazenda em Gonçalves Dias, MA.

Em março de 2002, auditores fiscais do trabalho estiveram na fazenda do deputado e constataram a prática com 53 trabalhadores vindos do município de União, no Piauí. Na ocasião, os libertos tiveram seus direitos trabalhistas regularizados, mas agora receberão cerca de R$ 10 mil cada um pela humilhação pela qual passaram.

“É uma condenação exemplar para o país”, afirmou Luís Antonio Camargo de Melo, da Coordenadoria Nacional de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT). “Principalmente porque, no ano passado, quando a história apareceu, o governo federal pediu que os auditores saíssem da fazenda alegando que ali não havia trabalho escravo”, conta Melo.

O Ministério Público do Trabalho espera agora ganhar outra ação pública por danos morais coletivos que corre na vara trabalhista de Marabá, no Pará. O MPT pede R$ 22 milhões para os trabalhadores. “O valor parece absurdo, mas não é, porque trata-se de fazendeiros reincidentes”, explica Melo. No histórico da prática do trabalho escravo no país, os dez principais infratores têm uma média de cinco reincidências cada um.

Combate à causa
Um dos objetivos do seminário promovido no FSB foi levantar, junto com a sociedade civil, formas de se erradicar o trabalho escravo no país. A conclusão a que se chegou foi a de que é preciso, ao mesmo tempo em que aumentar a repressão e diminuir a impunidade, atacar as causas do problema.

Mais de 115 anos depois da abolição da escravatura, a prática permanece no Brasil, tendo aumentado na época de expansão das fronteiras agrícolas na Amazônia. Hoje, os Estados que mais empregam este tipo de mão-de-obra são Pará, Maranhão, Paraíba, Tocantins, Bahia e Alagoas. 80% dos casos estão na região da Amazônia legal. “E não é à toa que dois entre cada três trabalhadores escravos vêm do Nordeste; é ali que a falta de alternativas e de emprego propicia isso”, explica Frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

A partir de denúncias de trabalhadores que conseguiram escapar de fazendas, a CPT conseguiu entender o caminho pelo qual passam essas pessoas até perder sua liberdade. A maioria sai em busca de trabalho em regiões distantes, após ter ouvido promessas de emprego. Chegam num lugar completamente desconhecido e vão parar em uma pensão, onde começam a fazer uma dívida que não tem fim enquanto esperam o serviço aparecer.

O trabalho nunca aparece, mas aparece um homem (chamado de “gato”) que se propõe a pagar a dívida do trabalhador na pensão e levá-lo para uma fazenda, onde vai ganhar algum pagamento por um tipo de serviço, geralmente pesado. “Já vimos, nos cadernos dos gatos, registros do tipo ‘compra de liberdade do peão: R$ 52,25’”, conta Plassat.

O trabalhador chega na fazenda já devendo a pensão, o transporte e a alimentação para o “gato”. Lá descobre que vai ganhar muito menos do que o combinado, até que sua dívida, crescente e impagável, o priva de liberdade. Se ameaça ir embora, corre o risco de ser assassinado. “Isso configura trabalho escravo e é uma das formas mais comuns encontradas no Brasil”, diz Patrícia Audi, da OIT.

Acabar com esta cadeia significa romper com os elos que a provocam. Para o procurador da República Mário Lúcio de Avelar, o problema do trabalho escravo no Brasil não vai ser resolvido com a Justiça Penal. “Precisamos mudar o modelo econômico do país, que privilegia os latifúndios”, explica. Enquanto o campo não sofrer esta transformação e não fizer a reforma agrária, a prática persistirá, concluíram os palestrantes.

Um começo
Apesar de ainda registrar 25 mil escravos presos em território nacional, a atuação do Brasil na erradicação do trabalho escravo foi bastante elogiada durante o Fórum. Se comparado ao ano passado, o número de libertações promovidas pelos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho dobrou. Segundo dados a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), até a primeira quinzena de outubro, 4.404 trabalhadores foram libertados este ano. “E fizemos isso com o mesmo orçamento que tínhamos antes. A diferença é que agora há vontade política”, acredita Marcelo Campos, da SIT.

Em breve, o governo federal anunciará uma “lista suja” com as empresas e fazendas que utilizam esta mão-de-obra na sua produção. Elas serão proibidas de receber crédito do Banco da Amazônia, do Banco do Nordeste, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, Sudam e Sudene, todos órgãos que operam recursos públicos. “Trata-se de uma negativa de crédito e também de incentivos fiscais”, afirma o ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. “Precisamos cortar também este instrumento para evitar a impunidade”, completa. De 1974 a 2000, R$ 1,7 milhões dos cofres públicos foram dados indiscriminadamente a fazendeiros e empresários que utilizam a mão-de-obra escrava.

Outra proposta para o país seria a de identificar a cadeia produtiva que comercializa produtos desenvolvidos com a participação do trabalho escravo. A sociedade, se informada e conscientizada, não consumiria esses tipos de produtos. “Teríamos a participação da sociedade no papel represso
r a este crime”, acredita Patrícia. “Se tivéssemos feito um boicote em 1983, quando foi denunciado que a fazenda da Volkswagen no sul do Pará utilizava trabalho escravo, a montadora teria anulado esta prática. Mas eles continuaram, até a fazenda ser vendida um tempo depois”, lembra o padre Ricardo Rezende, da Rede Social.

Para conscientizar – e indignar – a população da existência, ainda hoje, do trabalho escravo no Brasil, a OIT lançou no mês passado uma campanha nacional. O objetivo é retratar, em peças publicitárias, as condições degradantes em que se encontram, em pleno século 21, milhares de brasileiros que ainda não conhecem o significado da palavra dignidade.

Da Agência Carta Maior

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