A cidade do Recife enfrenta um racionamento na oferta de água que já dura praticamente 20 anos. Atualmente, tem-se água na cidade dia sim e dia não. Em passado mais recente, a coisa já esteve bem pior. A cidade chegou a amargar 9 dias de racionamento em alguns bairros.
Ao contrário do que muitos imaginam, a sua população já se adaptou às regras impostas pela companhia que abastece a região metropolitana com o precioso líquido. O fato é que, em matéria de racionamento d‘água o recifense é um verdadeiro craque, podendo servir de modelo às populações de outras regiões do país que venham a apresentar problemas semelhantes. E não poderia ser diferente. O chamado Grande Recife, região com mais de 3 milhões de habitantes, demanda um volume de cerca de 14 m³/s de água potável, e o sistema que o abastece só tem condições de ofertar 12 m³/s. Faça chuva ou faça sol, estejam as represas cheias ou vazias, o esquema é sempre o mesmo: há um déficit volumétrico antigo de abastecimento da população, implicando na necessidade dos racionamentos e na obrigatoriedade de a população praticar verdadeira ginástica para conviver com esse tipo de situação.
Traçando-se um paralelo entre o problema de abastecimento hídrico do Recife e o setor energético nordestino, pode-se dizer que a situação tem algumas semelhanças. O São Francisco, rio responsável por mais de 95% da energia que é gerada no Nordeste, vem apresentando sinais constantes de incapacidade para suprir as demandas da região. A prova disso foi o recente racionamento de energia havido no ano de 2001, motivado por um descompasso na caída das chuvas nas cabeceiras do Velho Chico, trazendo, por conseqüência, baixos volumes nas represas das usinas geradoras de energia e a necessidade de se proceder à economia energética.
Atualmente, novos sinais no rio dão conta da possibilidade de voltarmos à situação de penúria hídrica da época do racionamento, o que tem motivado as autoridades responsáveis pelo setor a iniciar a geração de energia através de termelétricas movidas a gás natural e diesel, como forma de complementar, no sistema de distribuição, a energia gerada nas hidrelétricas devido às indesejáveis características hidrológicas atualmente existentes.
Se fizermos uma avaliação da evolução dos problemas energéticos do Nordeste ao longo dos anos e aproveitando a adaptação demonstrada pela população recifense no enfrentamento de situações adversas – a exemplo do longo racionamento d‘água em sua região metropolitana -, iremos chegar à conclusão de que não deveríamos ter abandonado o racionamento de energia elétrica vivenciado por todos os nordestinos em 2001. Reduzi-lo a patamares aceitáveis, que não provocassem transtornos à população, talvez fosse a melhor opção, mas simplesmente extingui-lo certamente não foi a decisão mais acertada. O fato é que, diante da incapacidade de o rio São Francisco atender a atual demanda de energia do Nordeste, o governo federal vem acenando com a possibilidade de pôr em prática o programa de geração de energia através do acionamento de termelétricas a gás natural e diesel (proposta divulgada na mídia televisiva pelo diretor de operações da Chesf, no dia 2 de dezembro de 2003).
Acerca dessas questões, alguns pontos precisam de um maior esclarecimento:
· com o acionamento das térmicas, fica evidente que os investimentos havidos até então no setor, principalmente na ampliação das linhas de transmissão de energia, ainda não foram suficientes, pois não teria o menor sentido acionar as térmicas, sabendo-se que o custo da energia gerada nesse tipo de fonte é três vezes maior do que o daquela produzida em hidrelétricas;
· o usuário nordestino já vem pagando, desde março de 2002, o Encargo de Capacidade Emergencial, apelidado de Seguro Apagão, equivalente a R$ 4,90 para cada 1.000 Kwh consumidos, o que representa um acréscimo médio de cerca de 2% em sua tarifa de energia. Com o acionamento das térmicas, dois outros tributos irão entrar em vigor: o Encargo de Aquisição de Energia Elétrica Emergencial – EAEEE, para pagar a operação, o lucro e a depreciação das geradoras, do mercado atacadista de energia – MAE e das concessionárias; e o Encargo de Energia Livre Adquirida no Mercado Atacadista de Energia – EELAM, para pagar a diferença entre o valor de compra de energia da geradora e o valor pago ao MAE;
· além do mais, as térmicas poluem em demasia o ambiente, lançando na atmosfera grandes quantidades de óxidos de nitrogênio, principalmente o NO e NO2, produtos sabidamente nocivos à saúde das pessoas.
A necessidade do acionamento das térmicas tem relação estreita com a situação hidrológica vivida atualmente no país. Em termos hidrológicos, no Nordeste, o ano de 2003 está muito mais pobre do que aquele verificado no ano do racionamento de energia. Em dezembro de 2000, os reservatórios nordestinos contavam com cerca de 32% de sua capacidade acumulatória. Em dezembro de 2003, ou seja, 3 anos após o racionamento, os reservatórios contam com menos de 14%. O fato é que todos os reservatórios do país estão, no momento, com níveis que preocupam as autoridades do setor. Para se ter idéia dessa problemática, em outubro de 2003, no início do período chuvoso, os reservatórios da região Sul acumulavam cerca de 30,50% de sua capacidade; no Sudeste/Centro-Oeste cerca de 44,61%; no Norte aproximadamente 38,96% e no Nordeste, em situação mais crítica, cerca de 22,45%, com perspectiva de chegar no dia 17 de dezembro a apenas 10% de sua capacidade, percentual esse que põe em risco a segurança de todo o sistema. E o que ocorrerá se faltarem as chuvas providenciais para o enchimento dos reservatórios nordestinos, a exemplo do que ocorreu em 2001, período no qual o governo federal apostou todas as suas fichas nas chuvas que não caíram, tendo como resultado a mais séria crise energética de nossa história?
Consideramos que já é hora de se fazer um estudo sério para esclarecimento da população acerca da inconveniência de ter sido interrompido o racionamento de energia em 2001, levando-se em conta, como termos de comparação, os custos provenientes dos tributos pagos pela população e os problemas ambientais advindos com o acionamento das térmicas. Na nossa opinião, se tivéssemos mantido o racionamento de 2001 em patamares adequados à manutenção do conforto do usuário, o qual já estava adaptado às normas do racionamento em vigor naquela ocasião, teríamos economizado água suficiente no São Francisco para geração hidrelétrica, não estaríamos necessit
ando do acionamento das térmicas e não estaríamos aumentando ainda mais a carga tributária do contribuinte nordestino, que, por sinal, já se encontra bastante sacrificado.
A conclusão a que chegamos com esse breve relato é a de que a hidrologia na bacia do São Francisco já se encontra no seu limite. Usar as águas do São Francisco daqui para frente significa, antes de tudo, utilizar informações precisas sobre o ambiente nordestino, planejamento e prudência nas ações, principalmente por parte daqueles que têm o poder de decisão nas mãos.
João Suassuna , engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, é considerado um dos maiores especialistas na questão hídrica nordestina.